Finalmente realizaria o antigo sonho de explorar o Nepal,
a cordilheira do Himalaia, a Índia, o Vietnã, outros países da Ásia.
Embarquei em outubro, no aeroporto de Cumbica, rumo ao
primeiro trecho aéreo. Não havia espaço para as pernas no avião apertado da
empresa aérea inglesa. O avião pousou em Londres no início da manhã. O voo de
conexão só sairia à noitinha. Comprei bilhete de metrô válido para um dia e saí
às ruas. Ainda me lembrava da cidade desde a visita de oito anos antes. Londres
continuava a deliciosa salada cultural de sempre. O frio e a garoa obrigaram a
me refugiar nas dependências da Galeria Nacional. Bateu o sono e cochilei nos
sofás.
Embarquei em voo noturno com destino a Delhi. Mais um
avião da mesma empresa aérea inglesa. Mais aperto e desconforto. O atraso
causado pelo passageiro inglês em Londres me custou a perda da conexão para
Kathmandu. A estonteante beleza das indianas que me atenderam no desembarque em
Delhi compensou a transferência da passagem para o dia seguinte e o transporte
ao hotel. Dormi cedo para tentar recuperar o sono perdido. A enorme diferença
de fuso horário começava a bagunçar o relógio biológico.
Baixei cedo no aeroporto. No avião menor da empresa aérea
indiana, mais espaço para as pernas. As comissárias indianas serviram balas e
potes com grãos perfumados e esverdeados, parecendo alpiste. O voo rápido levou
ao aeroporto de Kathmandu. As bagagens demoraram a aparecer e foram vistoriadas
aleatoriamente. Paguei o visto de entrada no balcão de imigração.
Estava no Nepal, início de minha viagem à Ásia. No caminho
ao hotel deu para sentir o trânsito caótico pelas ruas estreitas, entupidas de
carros, ônibus, bicicletas, motos, riquixás e gente, muita gente. Jantei e dei
uma volta básica pelas redondezas. O cansaço me empurrou de volta ao quarto do
hotel.
Delicioso o café da manhã ao ar livre. Inúmeras opções de
comida, cruas ou cozidas, salgadas e doces, sólidas e líquidas. Mais descansado,
o ânimo crescera para explorar a cidade.
Passeio pela praça Durbar e arredores do centro. Templos e
mais templos budistas e hindus, o antigo e imponente palácio real e a casa da Cumari,
a rainha viva, cujo pátio interno guardava portas e janelas ricamente talhadas
em madeira. Era desgastante caminhar nas ruas, invariavelmente estreitas, sem
calçadas, com trânsito infernal e barulhento. Mas de todos os lados surgiam
imagens interessantes. Segui ao templo budista de Swayambhunath, situado no
alto do morro e com vista privilegiada da cidade. As nuvens deixavam tudo com
tonalidade acinzentada e pouca luminosidade. Os monges, vestidos com túnicas
avermelhadas, eram simples e bem humorados.
O pequeno avião que nos levou a Lukla pousou em pista de
terra inclinada.
Teve início a travessia de vinte dias pela cordilheira do
Himalaia, acompanhando o vale do rio de água verde leitosa. A trilha não
chegava a encher de turistas, exceto nos mirantes e pontes suspensas, as quais,
extensas, muito altas e sustentadas por cabos de aço flexível, emocionavam ao
transpô-las, sobretudo ao oscilarem pelo vento ou pela passagem dos iaques.
As águas do rio corriam com violência assustadora, bem abaixo de nós.
Chegada ao anoitecer em Monjo, ponto do primeiro
acampamento, a 2.850 metros de altitude. Durante a madrugada a vontade
insuportável de urinar me tirou do saco de dormir e da barraca. Fazia frio
intenso, mas o céu estrelado deslumbrante fez esquecer o desconforto.
Amanheceu com céu azul e temperatura na marca de 2 graus
negativos. Enormes montanhas nevadas se erguiam ao redor. A caminhada exigiu
mais esforço e subi de altitude por trilha com fortes desníveis. O cansaço era
deixado de lado diante do impacto visual da sucessão de belas montanhas. Primeira
visão do monte Sagarmatha (Everest), com o Nuptse e o Lotse ao lado, dentro dos
limites do Parque Nacional Sagarmatha. Atravessei outras pontes suspensas, mais
altas, mais oscilantes, mais fascinantes. Acampamento em Nanche Bazar, a 3.410
metros de altitude, povoado colorido e alegre encravado na encosta da montanha.
Subi mais de 400 metros de desnível até o patamar com a
privilegiada vista do Nuptse, Lotse, Sagarmatha (Everest), Amadablan, entre
outras montanhas nevadas. Prossegui aos pequenos vilarejos de Kunde e Kunjung,
ambos cercados por pedras e exibindo visual impressionante dos picos.
Uma grande bolha surgiu no dedão do pé direito. Tive que
furá-la com agulha esterilizada para soltar o líquido e manter a linha de costura
por dentro durante a noite.
O jantar iniciava sempre com sopa. Naquela noite foi de
gengibre com legumes. Depois serviram momo (pastel tibetano fervido) e
bolo de frutas. Para beber, opções de chá, suco artificial ou limonada, tudo
invariavelmente quente.
Circulei pela manhã na animada feira semanal de Nanche
Bazar. O açougue, ao vivo e em cores, expunha cabeças, pernas e demais pedaços
de animais ao ar livre. Os habitantes utilizavam a bosta dos iaques como
combustível nos fogões e aquecedores.
Retomada da trilha, oscilando entre subidas abruptas e
trechos planos, tendo, ao lado, precipícios respeitáveis. O pico Transekur se
erguia bem à frente. Do outro lado do vale, as vilas de Portse e Tengboche, com
o mosteiro budista em evidência. A caminhada na parte da tarde foi mais dura
com interminável subida até o templo budista a 3.950 metros de altitude. Desci em
seguida ao ponto de acampamento em Portse Dranka, a 3630 metros de altitude,
próximo ao rio, com temperaturas mais baixas. Nenhum turista acampado por ali.
Nos horários livres escrevíamos, líamos ou jogávamos
cartas. Mais uma noite com o céu estrelado e ao som relaxante das águas do rio.
A caminhada curta levou a Dole, a 4.015 metros de
altitude. O objetivo era a aclimatação lenta e gradual. Os rios estavam quase
cobertos de gelo. As quedas d’água congeladas chamavam a atenção. Dole
consistia de extenso gramado, algumas casinhas e refúgios, o pequeno córrego ao
lado. E foi ali, no quinto dia de caminhada, que consegui tomar o primeiro
banho na trilha.
A equipe de apoio era composta de sete sherpas,
sempre atenciosos, simpáticos e prestativos. Nunca reclamavam de nada,
suportavam cargas pesadas, sorriam com frequência.
Amanheceu com 7 graus negativos. A grama estava
esbranquiçada, a toalha de borracha, deixada fora, congelada, a barraca coberta
de gelo.
Caminhada curta até Machermo, a 4.400 metros de altitude.
A quantidade de neve era mais expressiva, inclusive no acampamento, próxima às
barracas. As geleiras surgiam nas encostas das montanhas e a vegetação
tornava-se mais escassa e rala. Praticamente não havia árvores. Os pequenos
povoados encravados nas encostas íngremes das montanhas encantavam pela
simpatia. A temperatura não parava de cair, mesmo durante do dia, graças ao
vento. Começou a nevar à tarde, cada vez mais forte. O frio tornou-se
insuportável e nos escondemos no refúgio, permanecendo ali até o jantar, ao
lado do aquecedor à base de bosta de iaque. O tempo se acalmou depois
das 20h, abrindo céu estrelado, mas o chão do acampamento e as barracas se
cobriram de neve.
A flatulência dava o ar da graça acima dos 3 mil metros de
altitude. E os gases acumulados tinham que ser liberados. Eram peidos e mais
peidos, involuntários, constantes, barulhentos, fedidos. Não havia hora e nem
lugar. A situação constrangia no primeiro momento, obrigando a sair do refúgio
ou da barraca-refeitório e aliviar do lado de fora. Depois desistíamos e
relaxávamos ali mesmo. Ninguém mais se incomodava. Nas paredes internas dos
refúgios, no entanto, o desenho e a frase em inglês advertiam: “proibido
peidar”.
Amanheceu com 16 graus negativos. A neve cobria toda a
área do acampamento. Assim que abri o zíper externo da barraca, o gelo e a neve
caíram sobre as mãos. O chão escorregava e exigia cuidados para manter o
equilíbrio. O sol brilhava forte e refletia na neve. A barraca-refeitório foi
desmontada para o café da manhã ao ar livre. Ao redor, tudo nevado e branco.
Gorro, luvas e toda a roupa não aqueciam o necessário.
Reinício da caminhada, subindo mais e mais. Todo cuidado
era pouco para não escorregar na trilha nevada. A vegetação resumia-se a tufos
rasteiros. Os rios transformaram-se em blocos de gelo. A paisagem branca e a
infinidade de picos nevados tornavam a paisagem inóspita e encantadora.
Atravessei o rio caminhando sobre gelo e pedras. Pequenas cascatas congeladas
despontavam aqui e ali. Os lagos da região de Gokio apareceram um a um, cujas
águas esverdeadas contrastavam com as geleiras e picos nevados ao fundo. Atingi
o ponto de acampamento de Gokio, a 4.750 metros de altitude.
Subindo a crista do outro lado do vilarejo me deparei com
a imensa geleira e a morena com areia e rocha acinzentada. Blocos se despedaçavam
e causavam estrondo considerável. Caminhei ao longo da faixa estreita da
crista. O tempo fechou no meio da tarde. Começou a nevar acentuadamente e o
frio castigou. Desci imediatamente e me escondi no refúgio, ao lado de outros
caminhantes. Formávamos círculo amplo ao redor do aquecedor. Parecia que cada
país do mundo estava ali representado, tal a diversidade de tipos e línguas.
Quase não dormi durante a noite. O colega de barraca, que
ia de mal pior, roncou feito trator na subida com afogador entupido. O processo
de tristeza dele evoluíra para depressão. Nem subiu o pico de Gokio no dia
seguinte.
Despertar antes do amanhecer. Engoli a grande tigela de
sopa, bem quente, com tudo dentro, que levantaria até defunto. Início da
caminhada ainda no escuro. Antes de começar a subida, trechos alagados e
congelados. Foram 500 metros de desnível até o cume. O traçado bastante sinuoso
da trilha amenizava o esforço físico. Depois de duas horas, quase sem fôlego e
sem pernas, eu atingi o topo, a 5.250 metros de altitude. A vista de 360 graus
era indescritível. Além da pirâmide negra do Everest e toda a cadeia de picos
ao lado dele, havia o pico do Cho Oyu, mais e mais montanhas nevadas, extensas
geleiras, lagos esverdeados, o povoado de Gokio e o extenso vale do dia
anterior. Mesmo com o aparecimento das primeiras nuvens, ninguém queria deixar
aquela maravilha.
Pelo outro lado do vale, descida à vila de Na, a 4.350
metros de altitude. O colega de barraca apresentou sintomas de hipoglicemia. Quase
não comia, teve princípios de edema cerebral. A fraqueza o impedia de andar sem
auxílio. A descida foi suave, mas a situação dele preocupava. O acampamento em
Na e o refúgio ao lado estavam completamente vazios. Garantia de noite tranquila.
Os pães servidos nas refeições variavam quase todos os
dias, com formatos, espessuras e sabores variados. Mas eram invariavelmente
deliciosos.
A caminhada prosseguia em descida, com raras subidas.
Foram mais de sete horas de caminhada. A neve fraca que caiu não incomodou.
Acampamento em Portse, a 3.850 metros de altitude, vilarejo construído em
degraus na encosta da montanha, sobre os quais havia o cultivo de batatas.
A cozinha montada pelos sherpas para o preparo da
comida nos fazia voltar séculos no tempo. Era escura, com tudo espalhado pelo
chão, o fogo improvisado. Nada parecia ter o mínimo de ordem ou planejamento.
Mas funcionava a contento.
O estado do colega de barraca piorava. À noite no refúgio,
cambaleante, perdeu o equilíbrio e se apoiou no cano da chaminé do aquecedor,
derretendo a luva e causando fortes queimaduras nas mãos. Olhou a mão e os
fiapos da luva sem expressão nenhuma. Não demonstrou sentir dor ou irritação na
pele. Ameaçou sorrir e se sentou.
Ao amanhecer acordei com os movimentos atormentados dele,
ainda dentro do saco de dormir, exibindo expressões de pânico e desconsolo. A
cena era absurda. Ele simplesmente havia cagado horrores dentro do saco de
dormir. Diarreia crônica o atacara durante a madrugada e não houve tempo ou
condições de reagir. Estava atolado na própria merda. O espaço interno do saco
de dormir não era dos maiores e a bosta quase alcançou o pescoço dele. Afastei
minhas coisas para o canto oposto e saí da barraca imediatamente. O guia
destacou um sherpa para acompanhá-lo até Tengboche, nossa penúltima parada
antes do final da travessia. Nada tinha a ver com altitude ou desgaste físico.
Como ciclista esportivo era o mais preparado fisicamente do grupo. Mas estava
no lugar errado. E quando tomou consciência de não querer estar ali, o
organismo entrou em parafuso.
A caminhada exigia mais esforço. Trilhas estreitas,
precipícios, subidas e descidas. A neve e o vento, acompanhados de mais frio,
complicou ainda mais à tarde. O almoço frio foi servido nas imediações de
Pengboche, vilarejo com mosteiro budista, um dos mais antigos da região. Fomos
abençoados na casa ao lado pelo Lama local que nos presenteou com postal
autografado. Com sorrisos e mais sorrisos, ele aguardou nossa contribuição
financeira e “espontânea”. No mosteiro, novamente, nos forçaram a contribuir
com dinheiro. Recusamos o golpe, a despeito da insistência dos monges, que nada
tinha de religiosa ou filosófica. Continuação da subida contra o vento e os
flocos de neve. Chegamos ao povoado de Periche, a 4.250 metros de altitude,
entre construções sobre areal cercado de montanhas.
continua...
estou iniciando uma viagem...me encontrem esta semana no Nepal...
ResponderExcluirEsta realmente é uma viagem que não está nos meus planos...mas...que bom que vc contou um pouco pra mim!!!!...que vontade de ver o povoado colorido de Nanche Bazar, vc tem foto?...a foto do café da manhã urrrrr...congeleia a 5.250 metros de altitude mas a vista que falou...indescritivel...tb o que li depois...rsrsrs...obrigado...
ResponderExcluirTenho slides sim da trilha toda, inclusive de Nanche Bazar, onde acampamos duas noites para a aclimatação. A partir dali a trilha subiu, subiu, e esfriou, esfriou, mas a paisagem era simplesmente deslumbrante. Valeu e muito a pena. Mas somnete para quem gosta realmente de longas caminhadas, senão....Já chegou na parte sobre meu colega de barraca rsss?
ResponderExcluirInteressante sua viagem! Para os mais aventureiros e esportistas!
ResponderExcluirOlá!
ResponderExcluirObrigado pelo comentário, Katia Mendonca.
Não se subestime. Quando queremos de verdade, ultrapassamos todos os eventuais obstáculos.
É o que constatei com os demias viajantes por lá.
Ouse...
Abraços!
AQUI ESTOU DE MALA E CUIA...RSRSRS. ARRUMASTES UMA MALA. VIAJEI JUNTINHO,CONHECI TEMPLOS, O PALÁCIO REAL, A CASA DE CUMARI, ADMIREI AS MONTANHAS,OS PRECIPÍCIOS, APRENDI A RESPEITAR AS INTEMPÉRIES DO CLIMA, SENTI O MEDO, FIQUEI FASCINADA PELA BELEZAS,ADOREI O CAFÉ À 16º -, RI DO SEU AMIGO, EXPERIMENTEI A CULINÁRIA, FIQUEI INDIGNADA COM OS PEDÁGIOS RELIGIOSOS...APESAR DE TODAS AS DIFICULDADES, CHEGAR AO TOPO DO HIMALAIA É UMA BENÇÃO, ACHO QUE É O ENCONTRO DO HOMEM COM DEUS. A SENSAÇÃO DE PAZ DEVE SER INFINITA, ALGO QUE A ALMA GUARDA PARA SEMPRE. PARTINDO PARA A PRÓXIMA...AGUARDE SUA CARONEIRA VIRTUAL. RSRRS ABRAÇOS
ResponderExcluirIvete, obrigadão pela visita, pela atenção, pelos comentários.
ResponderExcluirFico feliz que tenha gostado e sintetizado com tamanha precisão os pontos altos e baixos de mais uma das minhas explorações.
Desse jeito vou me gabar de escrever bem, me animando a relatar cada vez mais.
Valeu.
Abraços!