...continuação
Poucos turistas pelas trilhas, a maioria em sentido
contrário, o mais popular e citado nos guias turísticos. Chegada no meio da
tarde em Huaripampa, a 3.600 metros de altitude. Desejava lavar as partes
crônicas do corpo no riacho ao lado, enquanto ainda havia luz. Consegui passar
água sob os braços e nas partes baixas. A sensação não poderia ser mais
refrescante.
O jantar compôs-se de creme de cogumelos, lombo, salada de
tomate, melão fatiado, vinho tinto. Antes do anoitecer foi servido junto com o
tradicional chá, creme de queijo, com aji, batata e ovo cozido.
Por mais que tentasse e me concentrasse, não evitava a
tradicional saída do saco de dormir, e da barraca, para urinar. Até que
enrolava, meia hora, o máximo que podia, na vã esperança da vontade passar e o
sono voltar. Não adiantava. A sensação de ardor aumentava e eu tinha que sair
imediatamente.
Amanheceu nublado e pouco se via de céu azul. A umidade
pairava no ar. Foi um dos melhores cafés da manhã da travessia. Além dos itens
normais, foi servido iogurte, salada de frutas, cereais, tudo em quantidade
livre e abundante.
A trilha cruzou trechos com pequenos vilarejos cobertos de
sujeira, mas ocupados por moradores simpáticos. As crianças, vestidas a
caráter, chamavam a atenção pelo colorido e charme no vilarejo de Vaqueria.
Horas depois, a estrada e o furgão rumo à segunda parte da travessia. O caminho
seguiu por estrada estreita e absurdamente sinuosa. Subimos bastante até novo
passo, a 4.800 metros de altitude. O visual que se abria à frente impressionava
pelo desnível, abismos, escarpas, picos nevados, lagoas ao fundo. Nem as
nuvens, que cortavam os topos das montanhas mais altas, tirou o brilho daquele
cenário bruto. Exageradamente estreita, a estrada provocava calafrios nas
inúmeras curvas fechadas. Os olhos não despregavam e sentiam o impacto da
paisagem. Mais abaixo, as águas de degelo escorriam das geleiras nas encostas
das montanhas, se juntavam aos outros fios e engrossavam os riachos gelados, os
mesmos onde sofríamos na higiene pessoal.
Caminhada em pequeno trecho até o ponto de acampamento,
Cebollapampa, a 3.900 metros de altitude, na beira do riacho. As barracas foram
montadas sobre piso irregular e coberto de bostas de vaca. Mais ao fundo
elevava-se enorme pico nevado parcialmente coberto pelas nuvens. Desinfetei a
tesoura embutida no canivete, furei a bolha do pé, pressionei o líquido para
fora com pedaço de gaze, reforcei a desinfecção do dedo, fechei com gaze e
esparadrapo.
Bastante chá com bolachas antes de apreciar as montanhas
se livrarem das nuvens e se exporem abertamente, inclusive o topo da mais alta,
Huascaran, bem atrás do morro amarelado e alaranjado pelo pôr-do-sol. O jantar
veio de sopa de queijo, frango ensopado com arroz, batatas e legumes, pêssego
em calda e, como não poderia faltar, vinho tinto.
O burburinho do riacho ajudou e fez da noite a melhor da
travessia. Dormi bastante, acordei pouco, sonhei muito. Amanheceu dia claro e
brilhante. O topo do Huascaran surgia nítido atrás de outras montanhas.
Subida íngreme e constante até o campo base do pico Pisco,
a 4.650 metros de altitude, local do acampamento. Foram 700 metros de desnível,
montanha acima. O visual da cordilheira ao redor era impressionante. Na segunda
metade do percurso o Pisco se revelou à frente, completamente nevado. Cenário
de prender a respiração. O cortante vento, com rajadas constantes, não permitia
que a temperatura se elevasse, ao meio-dia, acima dos 5 graus.
Acampamento no final de extenso gramado, já próximo às
subidas para as geleiras e vias de escaladas. As ininterruptas rajadas de vento
romperam a cobertura da barraca-refeitório. Usamos e abusamos de esparadrapos
para remendar e garantir aquele espaço tão valioso. O almoço quente caiu como
luva, na base de macarrão e chá.
À tarde, subimos a colina e entramos no refúgio do parque
nacional. Poucos turistas europeus e estadunidenses mergulhavam os rostos
sisudos nos livros. E não liam grandes livros, apenas lixos descartáveis.
Ninguém olhava para ninguém, ninguém se dirigia a ninguém. O silêncio cobria
tudo. O coitado do funcionário caía de tristeza por não ter com quem conversar.
Mas logo se juntou a nós e se divertiu por boas horas. Folheamos revistas,
jogamos baralho, nos protegemos do frio, conversamos, rimos bastante. Só
retornamos às barracas geladas ao anoitecer.
Jantamos sopa de queijo, frango, arroz, batatas, legumes,
creme de uva, vinho tinto. O céu se abrira cheio de estrelas e, ao redor, as
montanhas se exibiam sem obstáculos.
A altitude, o frio inferior a 10 graus negativos, o
silêncio cortado de vez em quando pelos gritos estridentes das mulas e burros,
prejudicaram o sono. Os animais pastavam nas proximidades e repentinamente saíam
em disparada a poucos metros das barracas. Antes do amanhecer e sob a temperatura
negativa, saí para ir ao banheiro e me deparei com visual estupendo. Finas
camadas de neve e gelo cobriam o chão e as barracas. Os picos nevados da
cordilheira se exibiam ao redor, nítidos, sem nuvens. Não queria voltar para a
barraca. O frio terrível não impedia o imenso prazer daquele momento.
Fazia sol tímido e decidimos comer o café da manhã ao ar
livre. Comemos bastante, tudo o que tinha direito, até nos sentirmos lotados. Subimos
o morro em frente. A visão do topo, a 4.850 metros de altitude, era
simplesmente espetacular, de quase 360 graus de montanhas nevadas, das geleiras
abaixo, do gramado do acampamento, das barracas minúsculas. Permaneci ali
sozinho, livre para pensar, apreciar. Ruídos de avalanches e rompimentos de
gelo vinham lá de baixo das geleiras. Escaladores desciam do cume do Pisco,
provavelmente depois de tentativa bem sucedida. Permaneci no topo da morena por
bom tempo e alternava o olhar entre os lados opostos.
De volta à barraca, estendi o saco de dormir, as botas,
meias ao sol para retirar, ainda que parcialmente, o mau cheiro. As unhas das
mãos e arredores revelavam aspecto desagradável, com manchas sujas,
enegrecidas, fedidas. A flatulência também acompanhava na altitude. As
explosões e liberações de gás se tornavam frequentes. Os odores não eram
perfumados. Mas o decorrer do tempo deixava à vontade e logo ninguém se
importava mais.
Descansei, li, conversei com o cozinheiro da equipe,
curioso e observador. Queria saber a altitude do Brasil. Tinha plano de
aposentadoria apenas havia três anos. Garantiu que o campo base do Pisco era
muito diferente antes do terremoto de 1970, contando com lagoas e outra
disposição física. Condenou a hipocrisia estadunidense no suposto combate às
drogas e tinha certeza que os imperialistas pretendiam, na verdade, ocupar e
dominar a América do Sul.
Saboreamos o último jantar da trilha sob a temperatura de
2 graus negativos.
Amanheceu céu azul, sol, com paisagem nítida e desimpedida
de nuvens. As montanhas, todas elas, se revelavam brilhantes e imponentes.
Desse jeito, ninguém queria voltar e encerrar a travessia. Tomamos o último
café da manhã sob o sol, arrumamos as coisas e iniciamos a descida.
Chegamos à estradinha e pegamos a perua a Huaraz. Ainda
paramos em lagoa para apreciar as águas verde-azuladas. As montanhas nevadas se
sucediam na paisagem. Próximas a vilarejos, plantações na entressafra, situadas
nos altos da cordilheira negra ou no fundo dos vales úmidos. Crianças saíam das
escolas vestindo sóbrios uniformes azuis. As estradas e cidadezinhas ferviam de
gente. As montanhas nevadas a leste, sempre presente, não queriam nos
abandonar. O rádio da perua tocava músicas caribenhas e andinas.
Já no quarto do hotel de Huaraz, cansados, imundos e
felizes, esparramamos as coisas pelo chão. Tentamos localizar roupas ainda
limpas, antes de tirar a barba e tomar banho merecido e demorado, o primeiro
após sete dias de sujeira. O ralo entupiu e transbordou. Logo a água preta
subiu acima do meu tornozelo. O porteiro veio com arame fino e pontudo. Cutucou
o ralo de várias posições durante bastante tempo. Mas a água mantinha-se no
mesmo lugar.
Demos boas voltas pela acolhedora Huaraz. Reunimos a turma
toda para o jantar. Conversamos, rimos, contamos e ouvimos boas histórias,
apesar do forte cansaço que nos abatia. Deveríamos acordar cedo no dia
seguinte.
O café da manhã foi bem servido pela moça da recepção. Na
despedida, ela agradeceu a oportunidade de ter conhecido grupo tão alegre, comunicativo
e amigável. A maioria dos povos adora os brasileiros, pois não colocamos
barreiras na comunicação. Deixamos todos à vontade, conversamos
espontaneamente. E o futebol nunca foi o mote para as abordagens e
descontrações.
O Peru se preparava para as festividades da independência.
Bandeiras hasteadas em diversos pontos das cidades, broches afixados nas
roupas, estudantes em ensaios para os desfiles, coreografias, enfeitavam o
país.
Partida com destino a Lima, Andes abaixo, entre montanhas
nevadas, lhamas, campos floridos. Almoço novamente em Barrancas, na margem da
rodovia panamericana. A areia do deserto se encontrava com a da praia de mar
bravio. Milhos coloridos e temperos estendidos para secar contrastavam com o
ocre pedregoso e monocromático das encostas.
Dos primeiros subúrbios de Lima até Miraflores tráfego
intenso e caótico. A periferia da capital assustava pela feiúra, casas e
barracos semiconstruídos ou semidestruídos, favelas, lixo, sujeira, abandono. O
bairro das elites de Miraflores parecia oásis em meio ao caos e miséria do
restante da cidade. Arborizado, urbanizado, dezenas de lojas caras,
restaurantes, bares, edifícios suntuosos, desfile de gente bem nutrida, o
bairro nobre localizava-se ao lado do mar. Inúmeros restaurantes se espalhavam pelas
ruas, sobretudo em calçadão tomado em ambos os lados por estabelecimentos
oferecendo cardápios de diferentes culinárias. Os garçons saíam dos
restaurantes e praticamente atacavam, insistindo para entrar. Jantar em
restaurante no meio da praça, vazio e tranquilo. O cardápio oferecia delícias
tais como ceviches, tamales, aji de galinha, mariscos, acompanhadas de doses
generosas de pisco peruano.
Noite muito bem dormida em cama larga do hotel acima dos
padrões costumeiros.
No percurso ao aeroporto, praias sem atrativos. O voo
brindou com a vista privilegiada da cordilheira dos Andes.
Em La Paz imediatamente nos dirigimos para o pico
Chacaltaya, a 5.500 metros de altitude. A perua nos levou até os 5.300 metros,
de onde partimos a pé rumo ao cume. Apesar de aclimatados depois da cordilheira
Blanca, faltava ar, o coração bombeava com mais intensidade. Interrompíamos a
caminhada a todo instante para recuperar o fôlego. A sensação era de andarmos
em material gelatinoso. Chacaltaya se resumia a pista de esqui abandonada. Em
campo de visão de 360 graus, avistávamos a cordilheira Real, com o pico Huayna
Potosi muito perto e o Illimani mais à frente, as cidades de La Paz e El Alto
mais ao fundo.
De volta à capital, jantar em local simples que servia a
picante e saborosa comida boliviana. Detonei diversas salteñas antes do
prato principal.
De madrugada ao aeroporto na cidade de El Alto, cruzando
as ruas escuras e ainda vazias de La Paz.
Aterrissagem em São Paulo com sol, céu azul e calor. Entre
as conversas na chegada, se comentou que o grupo de escaladores que cruzou
trilha do campo base do Alpamayo, bem ao nosso lado, sofreu acidente durante a
ascensão. Morreram oito pessoas.
Carona ao metrô. Logo chegava em casa no final de
julho, feliz por mais uma viagem por paisagens e povos encantadores.
Trilha Inca e Cordilheira Blanca, boquiaberta diante da descrição de tanta beleza. Nas alturas, onde a terra encontra o céu, quem não ficaria extasiado diante da paisagem fascinante? Escreveu: - Permaneci ali sozinho, livre para pensar, apreciar. Não poderia ser diferente, se fosse eu, diria simplesmente: - Obrigada Deus!
ResponderExcluirViajante Sustentável, li com gula, adorei! Obrigada! Continuo na carona. Abraços.
Obrigado pelos comentários, Ivete.
ResponderExcluirDiante de comentários assim, tão elogiosos e alentadores, só posso continuar viajando e relatando, cada vez mais e melhor.
Valeu pelos incentivos. Que outros relatos deste blog, que não são poucos, a contagiem da mesma maneira.
Abraços!
Existem outras opções de caminhadas em Cusco que não são tão famosas como a trilha inca, mas são tão fascinantes quanto ela. Uma delas é a Trilha Inca Jungle.
ResponderExcluirOi Paulo, obrigado pela atenção e pelo comentário.
ResponderExcluirA região possui, sim, diversas opções de trilhas, longas ou curtas, leves ou pesadas, todas fascinantes. Ainda bem que tem havido controle e limite para número máximo de pessoas. A natureza e os próximos visitantes agradecem.
Abraços e comente sempre.
Ola!
ResponderExcluirEstou começando a pesquisar um mochilão por Chile, Bolivia e Peru.
Quais as dicas vocês poderiam me passar sobre passagens, hospedagens e etc...
Desde já, agradeço.
meu e-mail: rickamaral@yahoo.com.br
Parabéns pelo blog!!!
Ricardo Amaral
Bom dia, Ricardo, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirNesses relatos do blog, pelos interiores do Brasil e de países da América, Ásia, Europa, priorizo o meu olhar sobre as paisagens e culturas visitadas, destacando críticas e questionamentos socioambientais.
Infelizmente não são relatos que enfatizem dicas e sugestões. Para isso, há guias digitais e impressos que o auxiliarão muito melhor.
De qualquer maneira, recomendo que viaje sem pressa, sem roteiro engessado, privilegie o transporte coletivo e o contato com as pessoas do local. Dê tempo aos destinos e a você mesmo. Nada de sair correndo para visitar as atrações turísticas, fotografar de qualquer jeito, comprar inutilidades. Relaxe e deixe sua mente interagir com os lugares e pessoas.
Creio que da maneira como relato minhas experiências ajudam mais que eventuais dicas "objetivas".
Aproveite a viagem e depois conte como foi.
Comente sempre...
Abraços!
Olá, esta é obrigatório faz Inca Trail, onde você pode ir fora do comum e limpar sua mente caminhando pelas trilhas incas.
ResponderExcluirParabéns pelo blog. Eu abraço a todos vocês.
Olá Carlos!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Fique à vontade de ler, pesquisar e compartilhar os relatos desse blog de viagens pelo Brasil e diversos países de América, África, Ásia, Europa.
Comente sempre.
Abraços.