terça-feira, 30 de novembro de 2010

Peru - Trilha Inca e Cordilheira Blanca (parte 3/3)

...continuação
Poucos turistas pelas trilhas, a maioria em sentido contrário, o mais popular e citado nos guias turísticos. Chegada no meio da tarde em Huaripampa, a 3.600 metros de altitude. Desejava lavar as partes crônicas do corpo no riacho ao lado, enquanto ainda havia luz. Consegui passar água sob os braços e nas partes baixas. A sensação não poderia ser mais refrescante.
O jantar compôs-se de creme de cogumelos, lombo, salada de tomate, melão fatiado, vinho tinto. Antes do anoitecer foi servido junto com o tradicional chá, creme de queijo, com aji, batata e ovo cozido.
Por mais que tentasse e me concentrasse, não evitava a tradicional saída do saco de dormir, e da barraca, para urinar. Até que enrolava, meia hora, o máximo que podia, na vã esperança da vontade passar e o sono voltar. Não adiantava. A sensação de ardor aumentava e eu tinha que sair imediatamente.
Amanheceu nublado e pouco se via de céu azul. A umidade pairava no ar. Foi um dos melhores cafés da manhã da travessia. Além dos itens normais, foi servido iogurte, salada de frutas, cereais, tudo em quantidade livre e abundante.
A trilha cruzou trechos com pequenos vilarejos cobertos de sujeira, mas ocupados por moradores simpáticos. As crianças, vestidas a caráter, chamavam a atenção pelo colorido e charme no vilarejo de Vaqueria. Horas depois, a estrada e o furgão rumo à segunda parte da travessia. O caminho seguiu por estrada estreita e absurdamente sinuosa. Subimos bastante até novo passo, a 4.800 metros de altitude. O visual que se abria à frente impressionava pelo desnível, abismos, escarpas, picos nevados, lagoas ao fundo. Nem as nuvens, que cortavam os topos das montanhas mais altas, tirou o brilho daquele cenário bruto. Exageradamente estreita, a estrada provocava calafrios nas inúmeras curvas fechadas. Os olhos não despregavam e sentiam o impacto da paisagem. Mais abaixo, as águas de degelo escorriam das geleiras nas encostas das montanhas, se juntavam aos outros fios e engrossavam os riachos gelados, os mesmos onde sofríamos na higiene pessoal.

Caminhada em pequeno trecho até o ponto de acampamento, Cebollapampa, a 3.900 metros de altitude, na beira do riacho. As barracas foram montadas sobre piso irregular e coberto de bostas de vaca. Mais ao fundo elevava-se enorme pico nevado parcialmente coberto pelas nuvens. Desinfetei a tesoura embutida no canivete, furei a bolha do pé, pressionei o líquido para fora com pedaço de gaze, reforcei a desinfecção do dedo, fechei com gaze e esparadrapo.
Bastante chá com bolachas antes de apreciar as montanhas se livrarem das nuvens e se exporem abertamente, inclusive o topo da mais alta, Huascaran, bem atrás do morro amarelado e alaranjado pelo pôr-do-sol. O jantar veio de sopa de queijo, frango ensopado com arroz, batatas e legumes, pêssego em calda e, como não poderia faltar, vinho tinto.
O burburinho do riacho ajudou e fez da noite a melhor da travessia. Dormi bastante, acordei pouco, sonhei muito. Amanheceu dia claro e brilhante. O topo do Huascaran surgia nítido atrás de outras montanhas.
Subida íngreme e constante até o campo base do pico Pisco, a 4.650 metros de altitude, local do acampamento. Foram 700 metros de desnível, montanha acima. O visual da cordilheira ao redor era impressionante. Na segunda metade do percurso o Pisco se revelou à frente, completamente nevado. Cenário de prender a respiração. O cortante vento, com rajadas constantes, não permitia que a temperatura se elevasse, ao meio-dia, acima dos 5 graus.
Acampamento no final de extenso gramado, já próximo às subidas para as geleiras e vias de escaladas. As ininterruptas rajadas de vento romperam a cobertura da barraca-refeitório. Usamos e abusamos de esparadrapos para remendar e garantir aquele espaço tão valioso. O almoço quente caiu como luva, na base de macarrão e chá.
À tarde, subimos a colina e entramos no refúgio do parque nacional. Poucos turistas europeus e estadunidenses mergulhavam os rostos sisudos nos livros. E não liam grandes livros, apenas lixos descartáveis. Ninguém olhava para ninguém, ninguém se dirigia a ninguém. O silêncio cobria tudo. O coitado do funcionário caía de tristeza por não ter com quem conversar. Mas logo se juntou a nós e se divertiu por boas horas. Folheamos revistas, jogamos baralho, nos protegemos do frio, conversamos, rimos bastante. Só retornamos às barracas geladas ao anoitecer.

Jantamos sopa de queijo, frango, arroz, batatas, legumes, creme de uva, vinho tinto. O céu se abrira cheio de estrelas e, ao redor, as montanhas se exibiam sem obstáculos.
A altitude, o frio inferior a 10 graus negativos, o silêncio cortado de vez em quando pelos gritos estridentes das mulas e burros, prejudicaram o sono. Os animais pastavam nas proximidades e repentinamente saíam em disparada a poucos metros das barracas. Antes do amanhecer e sob a temperatura negativa, saí para ir ao banheiro e me deparei com visual estupendo. Finas camadas de neve e gelo cobriam o chão e as barracas. Os picos nevados da cordilheira se exibiam ao redor, nítidos, sem nuvens. Não queria voltar para a barraca. O frio terrível não impedia o imenso prazer daquele momento.
Fazia sol tímido e decidimos comer o café da manhã ao ar livre. Comemos bastante, tudo o que tinha direito, até nos sentirmos lotados. Subimos o morro em frente. A visão do topo, a 4.850 metros de altitude, era simplesmente espetacular, de quase 360 graus de montanhas nevadas, das geleiras abaixo, do gramado do acampamento, das barracas minúsculas. Permaneci ali sozinho, livre para pensar, apreciar. Ruídos de avalanches e rompimentos de gelo vinham lá de baixo das geleiras. Escaladores desciam do cume do Pisco, provavelmente depois de tentativa bem sucedida. Permaneci no topo da morena por bom tempo e alternava o olhar entre os lados opostos.
De volta à barraca, estendi o saco de dormir, as botas, meias ao sol para retirar, ainda que parcialmente, o mau cheiro. As unhas das mãos e arredores revelavam aspecto desagradável, com manchas sujas, enegrecidas, fedidas. A flatulência também acompanhava na altitude. As explosões e liberações de gás se tornavam frequentes. Os odores não eram perfumados. Mas o decorrer do tempo deixava à vontade e logo ninguém se importava mais.

Descansei, li, conversei com o cozinheiro da equipe, curioso e observador. Queria saber a altitude do Brasil. Tinha plano de aposentadoria apenas havia três anos. Garantiu que o campo base do Pisco era muito diferente antes do terremoto de 1970, contando com lagoas e outra disposição física. Condenou a hipocrisia estadunidense no suposto combate às drogas e tinha certeza que os imperialistas pretendiam, na verdade, ocupar e dominar a América do Sul.
Saboreamos o último jantar da trilha sob a temperatura de 2 graus negativos.
Amanheceu céu azul, sol, com paisagem nítida e desimpedida de nuvens. As montanhas, todas elas, se revelavam brilhantes e imponentes. Desse jeito, ninguém queria voltar e encerrar a travessia. Tomamos o último café da manhã sob o sol, arrumamos as coisas e iniciamos a descida.
Chegamos à estradinha e pegamos a perua a Huaraz. Ainda paramos em lagoa para apreciar as águas verde-azuladas. As montanhas nevadas se sucediam na paisagem. Próximas a vilarejos, plantações na entressafra, situadas nos altos da cordilheira negra ou no fundo dos vales úmidos. Crianças saíam das escolas vestindo sóbrios uniformes azuis. As estradas e cidadezinhas ferviam de gente. As montanhas nevadas a leste, sempre presente, não queriam nos abandonar. O rádio da perua tocava músicas caribenhas e andinas.
Já no quarto do hotel de Huaraz, cansados, imundos e felizes, esparramamos as coisas pelo chão. Tentamos localizar roupas ainda limpas, antes de tirar a barba e tomar banho merecido e demorado, o primeiro após sete dias de sujeira. O ralo entupiu e transbordou. Logo a água preta subiu acima do meu tornozelo. O porteiro veio com arame fino e pontudo. Cutucou o ralo de várias posições durante bastante tempo. Mas a água mantinha-se no mesmo lugar.
Demos boas voltas pela acolhedora Huaraz. Reunimos a turma toda para o jantar. Conversamos, rimos, contamos e ouvimos boas histórias, apesar do forte cansaço que nos abatia. Deveríamos acordar cedo no dia seguinte.
O café da manhã foi bem servido pela moça da recepção. Na despedida, ela agradeceu a oportunidade de ter conhecido grupo tão alegre, comunicativo e amigável. A maioria dos povos adora os brasileiros, pois não colocamos barreiras na comunicação. Deixamos todos à vontade, conversamos espontaneamente. E o futebol nunca foi o mote para as abordagens e descontrações.
O Peru se preparava para as festividades da independência. Bandeiras hasteadas em diversos pontos das cidades, broches afixados nas roupas, estudantes em ensaios para os desfiles, coreografias, enfeitavam o país.
Partida com destino a Lima, Andes abaixo, entre montanhas nevadas, lhamas, campos floridos. Almoço novamente em Barrancas, na margem da rodovia panamericana. A areia do deserto se encontrava com a da praia de mar bravio. Milhos coloridos e temperos estendidos para secar contrastavam com o ocre pedregoso e monocromático das encostas.
Dos primeiros subúrbios de Lima até Miraflores tráfego intenso e caótico. A periferia da capital assustava pela feiúra, casas e barracos semiconstruídos ou semidestruídos, favelas, lixo, sujeira, abandono. O bairro das elites de Miraflores parecia oásis em meio ao caos e miséria do restante da cidade. Arborizado, urbanizado, dezenas de lojas caras, restaurantes, bares, edifícios suntuosos, desfile de gente bem nutrida, o bairro nobre localizava-se ao lado do mar. Inúmeros restaurantes se espalhavam pelas ruas, sobretudo em calçadão tomado em ambos os lados por estabelecimentos oferecendo cardápios de diferentes culinárias. Os garçons saíam dos restaurantes e praticamente atacavam, insistindo para entrar. Jantar em restaurante no meio da praça, vazio e tranquilo. O cardápio oferecia delícias tais como ceviches, tamales, aji de galinha, mariscos, acompanhadas de doses generosas de pisco peruano.

Noite muito bem dormida em cama larga do hotel acima dos padrões costumeiros.
No percurso ao aeroporto, praias sem atrativos. O voo brindou com a vista privilegiada da cordilheira dos Andes.
Em La Paz imediatamente nos dirigimos para o pico Chacaltaya, a 5.500 metros de altitude. A perua nos levou até os 5.300 metros, de onde partimos a pé rumo ao cume. Apesar de aclimatados depois da cordilheira Blanca, faltava ar, o coração bombeava com mais intensidade. Interrompíamos a caminhada a todo instante para recuperar o fôlego. A sensação era de andarmos em material gelatinoso. Chacaltaya se resumia a pista de esqui abandonada. Em campo de visão de 360 graus, avistávamos a cordilheira Real, com o pico Huayna Potosi muito perto e o Illimani mais à frente, as cidades de La Paz e El Alto mais ao fundo.
De volta à capital, jantar em local simples que servia a picante e saborosa comida boliviana. Detonei diversas salteñas antes do prato principal.
De madrugada ao aeroporto na cidade de El Alto, cruzando as ruas escuras e ainda vazias de La Paz.
Aterrissagem em São Paulo com sol, céu azul e calor. Entre as conversas na chegada, se comentou que o grupo de escaladores que cruzou trilha do campo base do Alpamayo, bem ao nosso lado, sofreu acidente durante a ascensão. Morreram oito pessoas.
Carona ao metrô. Logo chegava em casa no final de julho, feliz por mais uma viagem por paisagens e povos encantadores.

8 comentários:

  1. Trilha Inca e Cordilheira Blanca, boquiaberta diante da descrição de tanta beleza. Nas alturas, onde a terra encontra o céu, quem não ficaria extasiado diante da paisagem fascinante? Escreveu: - Permaneci ali sozinho, livre para pensar, apreciar. Não poderia ser diferente, se fosse eu, diria simplesmente: - Obrigada Deus!
    Viajante Sustentável, li com gula, adorei! Obrigada! Continuo na carona. Abraços.

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  2. Obrigado pelos comentários, Ivete.
    Diante de comentários assim, tão elogiosos e alentadores, só posso continuar viajando e relatando, cada vez mais e melhor.
    Valeu pelos incentivos. Que outros relatos deste blog, que não são poucos, a contagiem da mesma maneira.
    Abraços!

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  3. Existem outras opções de caminhadas em Cusco que não são tão famosas como a trilha inca, mas são tão fascinantes quanto ela. Uma delas é a Trilha Inca Jungle.

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  4. Oi Paulo, obrigado pela atenção e pelo comentário.
    A região possui, sim, diversas opções de trilhas, longas ou curtas, leves ou pesadas, todas fascinantes. Ainda bem que tem havido controle e limite para número máximo de pessoas. A natureza e os próximos visitantes agradecem.
    Abraços e comente sempre.

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  5. Ola!

    Estou começando a pesquisar um mochilão por Chile, Bolivia e Peru.
    Quais as dicas vocês poderiam me passar sobre passagens, hospedagens e etc...

    Desde já, agradeço.

    meu e-mail: rickamaral@yahoo.com.br

    Parabéns pelo blog!!!


    Ricardo Amaral

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  6. Bom dia, Ricardo, obrigado pela visita e pelos comentários.
    Nesses relatos do blog, pelos interiores do Brasil e de países da América, Ásia, Europa, priorizo o meu olhar sobre as paisagens e culturas visitadas, destacando críticas e questionamentos socioambientais.
    Infelizmente não são relatos que enfatizem dicas e sugestões. Para isso, há guias digitais e impressos que o auxiliarão muito melhor.
    De qualquer maneira, recomendo que viaje sem pressa, sem roteiro engessado, privilegie o transporte coletivo e o contato com as pessoas do local. Dê tempo aos destinos e a você mesmo. Nada de sair correndo para visitar as atrações turísticas, fotografar de qualquer jeito, comprar inutilidades. Relaxe e deixe sua mente interagir com os lugares e pessoas.
    Creio que da maneira como relato minhas experiências ajudam mais que eventuais dicas "objetivas".
    Aproveite a viagem e depois conte como foi.
    Comente sempre...
    Abraços!

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  7. Olá, esta é obrigatório faz Inca Trail, onde você pode ir fora do comum e limpar sua mente caminhando pelas trilhas incas.
    Parabéns pelo blog. Eu abraço a todos vocês.

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  8. Olá Carlos!
    Obrigado pela visita e pelos comentários.
    Fique à vontade de ler, pesquisar e compartilhar os relatos desse blog de viagens pelo Brasil e diversos países de América, África, Ásia, Europa.
    Comente sempre.
    Abraços.

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