sexta-feira, 12 de novembro de 2010

do Amazonas a Sergipe (parte 2/7)

...continuação
A ilha alongada, em frente à cidade, impedia a visão da distante margem direita do rio Japurá. Circulei com mais calma pelas ruas da cidade, carente de investimentos sociais para a população. A madeira prevalecia nas construções, comumente sujas e mal conservadas. Por outro lado, os templos fundamentalistas evangélicos proliferavam, para a felicidade dos pastores e proprietários das empresas comerciais da fé que faturavam os tubos em cima da ignorância generalizada.
Levei a mochila ao mesmo barco da subida, desta vez com menos passageiros. Formou-se logo grupo para conversar, contar piadas, rir muito, antes de eles jogarem dominó. Havia técnico de telecomunicações, comandante da polícia de Tefé, educador ambiental lotado na reserva de desenvolvimento sustentável de Mamirauá, vendedores que atuavam no vale dos rios da região. A cidade de Japurá, um dia e meio rio acima de Maraã, foi eleita a pior cidade do Amazonas. Pequena, abandonada, suja, com apenas cinquenta metros de rua calçada, sem locais dignos de hospedagem, obrigando os visitantes a permanecerem nas redes do próprio barco semanal.
Comi pouco no jantar do barco. Assisti a partidas de dominó, enrolei por ali antes de me instalar na rede a fim de tentar adormecer.
Saltei da rede ainda no escuro para tomar vento na popa do barco e assistir ao deslumbrante nascer do sol. O morador de comunidade abaixo de Maraã, embarcado no meio da noite, me ensinou bastante sobre peixe e frutas regionais. A embarcação atingiu a boca do Japurá e entrou no Solimões. No meio da manhã atracava nas areias sujas do lago de Tefé, a capital dos urubus. Avistei nas areias do lago pelo menos cinco imensas concentrações deles, sem falar naqueles que caminhavam ou voavam baixo, impunemente, pelas ruas da cidade, como se fossem os donos do pedaço.
Optei em ficar aquela noite na cidade e descer rumo a Manaus apenas no dia seguinte. Hospedei-me no mesmo hotel de dois anos antes, cada vez mais mal cuidado, caindo aos pedaços. Os quartos imensos, cheios de camas, parecendo enfermarias, escancaravam a decadência avançada do estabelecimento. Praticamente tudo estava quebrado ou em vias de quebrar.
Não choveu à tarde e a noite surgiu estrelada com a lua quarto crescente. Após o jantar dei breve volta pela cidade sem graça e retornei ao hotel.

Amanheceu nublado, cinzento e chuvoso. Se Tefé repelia sob o céu azul, pior ainda cinzenta e chuvosa. O farto e saboroso café da manhã do hotel compensava a mediocridade geral da cidade.
Me instalei no camarote do barco, limpo, confortável e com banheiro privativo. A chuva logo voltou e fiquei no convés intermediário, ainda vazio naquela hora. O sol saiu mais tarde. Circulei pela praia, ao lado de barracas sujas, com pouca gente, a maioria putas e afins. Mais tarde, gente, muita gente embarcava e atava redes, lotando o convés. Reencontrei o manauara técnico em telecomunicações, companheiro da descida do rio Japurá.
Os urubus, o trânsito agressivo e sem regras, as casas feias, a sujeira, os moradores sérios de Tefé ficavam para trás. Eu descia novamente o Solimões a caminho da capital amazonense. A maioria a bordo ainda circulava no anonimato comum aos inícios de viagem. A sopa substanciosa foi servida ao anoitecer. O tempo abriu, a lua quarto crescente brilhou no céu estrelado. A maioria dos passageiros, ao contrário da subida do rio, utilizava as lixeiras distribuídas pelos três pisos do navio.
O navio atracou no começo da amanhã no porto de Coari e houve tempo suficiente para passear pela cidade junto com o manaura. Reencontrei pelas ruas o mineiro da subida do Solimões. Cidade média em acelerado ritmo de crescimento devido à produção de gás e petróleo pela Petrobrás no rio Urucu, Coari era só asfalto, cimento, praças peladas, nada de árvores, aconchego ou beleza. Paramos na rua um morador que acabara de comprar um tambaqui de quinze quilos pela exorbitância de cento e cinquenta reais. Dilema inaceitável na Amazônia em crise, a maioria dos peixes da região custava mais, muito mais, que carne de frango ou gado, inclusive as partes nobres como picanha ou filé. E, peixes nas refeições dos barcos amazônicos, nem pensar.
No convés superior do barco eu lia as páginas de O Beijo Não Vem Da Boca, de Ignácio de Loyola Brandão, sob os olhares espantados da maioria dos passageiros que jamais teve acesso a livros.
Parada rápida em Codajás, cuja linha de frente aparentava mais capricho que as demais cidades da região. Os vendedores ambulantes do porto subiam no barco e ofereciam a saborosa banana frita, salgada ou doce, bolos, doces, queijos, além do sempre delicioso açaí, em sacos plásticos de um litro.
Dia e noite de céu limpo. Calor sob o sol, estrelas e luar durante a noite. A imensidão das águas do Solimões se estendia para ambos os lados, por quilômetros e quilômetros, mas se mantinha calma, para o alívio de passageiros e tripulação. Percorremos o paraná que corta caminho ao rio Negro.
Pela manhã o navio atracava na estação hidroviária de Manaus.
Almocei carne de sol em simples e saboroso restaurante nordestino, cuja sobremesa, de sonho de cupuaçu, mereceu estalos de língua. Comprei jornal e me sentei na área externa da estação hidroviária. Um guaraná com tudo o que tinha direito encerrou a tarde escaldante. O sol derretia o cérebro. O mormaço devido ao excesso de concreto e asfalto multiplicava ao infinito o efeito do calor.
Saí na noite quente e estrelada para enganar o estômago e circular pelo largo de São Sebastião, oferecendo programação cultural ao ar livre. O teatro Amazonas não ficava atrás com a programação diária. Do outro lado da avenida Eduardo Ribeiro, imponente e iluminado com luz amarelada, o antigo Palácio da Justiça transformara-se em museu e galeria de artes.

Longe de ser problema exclusivo de Manaus, a paranóia com os telefones celulares na cidade beirava epidemia. A maior parte das pessoas manipulava o brinquedinho a todo instante. Atendiam ou faziam ligações, fotografavam, olhavam as fotos recém-tiradas, cutucavam para verificar supostas mensagens, testavam tons de chamada entre tantas atividades vitais para o rumo da humanidade. Preferiam cutucar o brinquedinho a aproveitar o local, as pessoas ao redor, eventuais paqueras ou olhares insinuantes, as músicas e danças ao vivo, a noite suave, o céu, as construções históricas. De ferramenta o telefone celular tornava-se um fim em si mesmo. E as grandes empresas, auxiliadas pela publicidade sufocante, manipulavam com extrema facilidade os corações e mentes dos consumidores.
Embarquei cedo no navio Clívia, já tomado de redes dos passageiros no piso intermediário. O aspecto geral do navio era desolador. Havia banheiro reservado para os camarotes, mas era somente um por convés, e sem janela. Bastava começar a me enxugar após o banho e já sentia o suor escorrer. A aérea de lazer coberta no convés superior, pela primeira vez em viagens que eu realizara na Amazônia, entupia-se de mais redes de passageiros. Era o fim da área sombreada, outrora livre para lazer, conversar, ler, relaxar, descansar.
O som do bar logo foi ligado em volume ensurdecedor. Impossível conversar, dormir, passar por ali. Seria cômico se eu não estivesse a bordo, apenas a um camarote e um banheiro da barulheira. Metade dos passageiros debandou e se amontoou no piso inferior, onde normalmente só havia carga e não era permitido armar redes.
O navio Clívia zarpou atrasado. O colorido pôr-do-sol e a lua quase cheia, bem à frente, deram espetáculos. Sem a tradicional sopa das tardes, ou qualquer coisa que lembrasse jantar, os passageiros desprevenidos tiveram que comprar sanduíches no bar. Apenas um coitado, sempre suado com o calor da chapa, atendia aquela multidão.

Apelando para sacos plásticos e fita adesiva, vedei as extremidades da saída do ar condicionado do camarote, controlado apenas centralmente. Fazia frio à noite com o navio em movimento. A barulheira do lixo musical no bar encerrou-se às 23h em ponto. Somente depois disso consegui adormecer.
Durante o dia eu fugia da poluição sonora insana do convés superior que começava às 8h da manhã. Descia ao convés intermediário, estacionava na proa e por ali permanecia, sem ruídos incômodos, apenas vozes, o som do vento e da água. As refeições eram servidas no convés inferior, o das cargas, ao lado dos motores em funcionamento. Ninguém conseguia conversar durante as refeições. Eu me livrava de um barulho e caía em outro.
Logo após a parada em Parintins, a passageira do camarote ao lado do meu, turista potiguar, acusou o desaparecimento da bolsa que deixara sobre a cama superior do beliche. Imediatamente comunicou ao comandante e a outros tripulantes. Em vão. Os indivíduos transferiram para a vítima a responsabilidade do roubo. Nem queriam permitir a abertura do boletim de ocorrência na parada seguinte. E as portas da maioria dos demais camarotes foram forçadas durante a noite. Inclusive a minha que apresentava novo e estranho defeito próximo à fechadura.
As águas do rio Amazonas baixavam, ilhas apareciam, em direção às quais iniciava a migração de criações de gado e de famílias de caboclos, rumo às casas e pastos abandonados durante as cheias.
Na poluição sonora do bar predominava o lixo das bandas assim chamadas de forró. As letras faziam apologia ao alcoolismo, vadiagem, sexo mecânico, adultério, mulheres e homens vulgares, aliciamento de mulheres. Bêbados e bêbadas acompanhavam ao lado das caixas de som.
O posto de fiscalização antes da cidade de Óbidos incluía o IBAMA, Receita Federal, Receita Estadual, Polícia Federal. Anoitecia e o navio foi parado para fiscalização. Os fiscais entraram, investigaram as bagagens das redes, camarotes, áreas comuns. Recolheram sacolas de roupas, mais objetos cilíndricos de metal. Espalharam tudo sobre a plataforma flutuante do posto. Enquanto uns fiscais tentavam descobrir a quem pertenciam, outros investigavam os conteúdos. Testaram quimicamente os interiores dos objetos, confirmando serem tóxicos. Separaram os suspeitos, pediram documentos, fizeram dezenas de perguntas. Um jovem colombiano, carregando violão e objetos de malabaristas, foi levado ao escritório do posto de fiscalização para interrogatórios. A maior parte dos procedimentos se dava na plataforma flutuante, diante da plateia dos passageiros aglomerados na borda dos três pisos do navio, provocando inclinação preocupante da embarcação. As investigações prolongaram-se até tarde da noite. Apreenderam as drogas, mas não os transportadores. Os suspeitos foram liberados para seguir viagem.
Chegada a Santarém ao amanhecer, com desembarque de muita carga e passageiros. O encontro das águas verdes do rio Tapajós com as águas barrentas do Amazonas se destacava pelo contraste sob o sol brilhante.
continua...

Nenhum comentário:

Postar um comentário