...continuação
A ilha alongada, em frente à cidade, impedia a visão da
distante margem direita do rio Japurá. Circulei com mais calma pelas ruas da
cidade, carente de investimentos sociais para a população. A madeira prevalecia
nas construções, comumente sujas e mal conservadas. Por outro lado, os templos
fundamentalistas evangélicos proliferavam, para a felicidade dos pastores e
proprietários das empresas comerciais da fé que faturavam os tubos em cima da
ignorância generalizada.
Levei a mochila ao mesmo barco da subida, desta vez com
menos passageiros. Formou-se logo grupo para conversar, contar piadas, rir
muito, antes de eles jogarem dominó. Havia técnico de telecomunicações,
comandante da polícia de Tefé, educador ambiental lotado na reserva de
desenvolvimento sustentável de Mamirauá, vendedores que atuavam no vale dos
rios da região. A cidade de Japurá, um dia e meio rio acima de Maraã, foi
eleita a pior cidade do Amazonas. Pequena, abandonada, suja, com apenas cinquenta
metros de rua calçada, sem locais dignos de hospedagem, obrigando os visitantes
a permanecerem nas redes do próprio barco semanal.
Comi pouco no jantar do barco. Assisti a partidas de
dominó, enrolei por ali antes de me instalar na rede a fim de tentar adormecer.
Saltei da rede ainda no escuro para tomar vento na popa do
barco e assistir ao deslumbrante nascer do sol. O morador de comunidade abaixo
de Maraã, embarcado no meio da noite, me ensinou bastante sobre peixe e frutas
regionais. A embarcação atingiu a boca do Japurá e entrou no Solimões. No meio
da manhã atracava nas areias sujas do lago de Tefé, a capital dos urubus.
Avistei nas areias do lago pelo menos cinco imensas concentrações deles, sem
falar naqueles que caminhavam ou voavam baixo, impunemente, pelas ruas da
cidade, como se fossem os donos do pedaço.
Optei em ficar aquela noite na cidade e descer rumo a
Manaus apenas no dia seguinte. Hospedei-me no mesmo hotel de dois anos antes,
cada vez mais mal cuidado, caindo aos pedaços. Os quartos imensos, cheios de
camas, parecendo enfermarias, escancaravam a decadência avançada do
estabelecimento. Praticamente tudo estava quebrado ou em vias de quebrar.
Não choveu à tarde e a noite surgiu estrelada com a lua
quarto crescente. Após o jantar dei breve volta pela cidade sem graça e
retornei ao hotel.
Amanheceu nublado, cinzento e chuvoso. Se Tefé repelia sob
o céu azul, pior ainda cinzenta e chuvosa. O farto e saboroso café da manhã do
hotel compensava a mediocridade geral da cidade.
Me instalei no camarote do barco, limpo, confortável e com
banheiro privativo. A chuva logo voltou e fiquei no convés intermediário, ainda
vazio naquela hora. O sol saiu mais tarde. Circulei pela praia, ao lado de
barracas sujas, com pouca gente, a maioria putas e afins. Mais tarde, gente,
muita gente embarcava e atava redes, lotando o convés. Reencontrei o manauara
técnico em telecomunicações, companheiro da descida do rio Japurá.
Os urubus, o trânsito agressivo e sem regras, as casas
feias, a sujeira, os moradores sérios de Tefé ficavam para trás. Eu descia
novamente o Solimões a caminho da capital amazonense. A maioria a bordo ainda
circulava no anonimato comum aos inícios de viagem. A sopa substanciosa foi
servida ao anoitecer. O tempo abriu, a lua quarto crescente brilhou no céu
estrelado. A maioria dos passageiros, ao contrário da subida do rio, utilizava
as lixeiras distribuídas pelos três pisos do navio.
O navio atracou no começo da amanhã no porto de Coari e
houve tempo suficiente para passear pela cidade junto com o manaura.
Reencontrei pelas ruas o mineiro da subida do Solimões. Cidade média em
acelerado ritmo de crescimento devido à produção de gás e petróleo pela
Petrobrás no rio Urucu, Coari era só asfalto, cimento, praças peladas, nada de
árvores, aconchego ou beleza. Paramos na rua um morador que acabara de comprar
um tambaqui de quinze quilos pela exorbitância de cento e cinquenta reais.
Dilema inaceitável na Amazônia em crise, a maioria dos peixes da região custava
mais, muito mais, que carne de frango ou gado, inclusive as partes nobres como
picanha ou filé. E, peixes nas refeições dos barcos amazônicos, nem pensar.
No convés superior do barco eu lia as páginas de O Beijo Não Vem Da Boca, de Ignácio de Loyola
Brandão, sob os olhares espantados da maioria dos passageiros que jamais teve
acesso a livros.
Parada rápida em Codajás, cuja linha de frente aparentava
mais capricho que as demais cidades da região. Os vendedores ambulantes do
porto subiam no barco e ofereciam a saborosa banana frita, salgada ou doce,
bolos, doces, queijos, além do sempre delicioso açaí, em sacos plásticos de um
litro.
Dia e noite de céu limpo. Calor sob o sol, estrelas e luar
durante a noite. A imensidão das águas do Solimões se estendia para ambos os
lados, por quilômetros e quilômetros, mas se mantinha calma, para o alívio de
passageiros e tripulação. Percorremos o paraná que corta caminho ao rio Negro.
Pela manhã o navio atracava na estação hidroviária de
Manaus.
Almocei carne de sol em simples e saboroso restaurante
nordestino, cuja sobremesa, de sonho de cupuaçu, mereceu estalos de língua.
Comprei jornal e me sentei na área externa da estação hidroviária. Um guaraná
com tudo o que tinha direito encerrou a tarde escaldante. O sol derretia o
cérebro. O mormaço devido ao excesso de concreto e asfalto multiplicava ao
infinito o efeito do calor.
Saí na noite quente e estrelada para enganar o estômago e
circular pelo largo de São Sebastião, oferecendo programação cultural ao ar
livre. O teatro Amazonas não ficava atrás com a programação diária. Do outro
lado da avenida Eduardo Ribeiro, imponente e iluminado com luz amarelada, o
antigo Palácio da Justiça transformara-se em museu e galeria de artes.
Longe de ser problema exclusivo de Manaus, a paranóia com
os telefones celulares na cidade beirava epidemia. A maior parte das pessoas
manipulava o brinquedinho a todo instante. Atendiam ou faziam ligações,
fotografavam, olhavam as fotos recém-tiradas, cutucavam para verificar supostas
mensagens, testavam tons de chamada entre tantas atividades vitais para o rumo
da humanidade. Preferiam cutucar o brinquedinho a aproveitar o local, as
pessoas ao redor, eventuais paqueras ou olhares insinuantes, as músicas e
danças ao vivo, a noite suave, o céu, as construções históricas. De ferramenta
o telefone celular tornava-se um fim em si mesmo. E as grandes empresas,
auxiliadas pela publicidade sufocante, manipulavam com extrema facilidade os
corações e mentes dos consumidores.
Embarquei cedo no navio Clívia, já tomado de redes dos
passageiros no piso intermediário. O aspecto geral do navio era desolador.
Havia banheiro reservado para os camarotes, mas era somente um por convés, e
sem janela. Bastava começar a me enxugar após o banho e já sentia o suor
escorrer. A aérea de lazer coberta no convés superior, pela primeira vez em
viagens que eu realizara na Amazônia, entupia-se de mais redes de passageiros.
Era o fim da área sombreada, outrora livre para lazer, conversar, ler, relaxar,
descansar.
O som do bar logo foi ligado em volume ensurdecedor.
Impossível conversar, dormir, passar por ali. Seria cômico se eu não estivesse
a bordo, apenas a um camarote e um banheiro da barulheira. Metade dos
passageiros debandou e se amontoou no piso inferior, onde normalmente só havia
carga e não era permitido armar redes.
O navio Clívia zarpou atrasado. O colorido pôr-do-sol e a
lua quase cheia, bem à frente, deram espetáculos. Sem a tradicional sopa das
tardes, ou qualquer coisa que lembrasse jantar, os passageiros desprevenidos
tiveram que comprar sanduíches no bar. Apenas um coitado, sempre suado com o
calor da chapa, atendia aquela multidão.
Apelando para sacos plásticos e fita adesiva, vedei as
extremidades da saída do ar condicionado do camarote, controlado apenas
centralmente. Fazia frio à noite com o navio em movimento. A barulheira do lixo
musical no bar encerrou-se às 23h em ponto. Somente depois disso consegui
adormecer.
Durante o dia eu fugia da poluição sonora insana do convés
superior que começava às 8h da manhã. Descia ao convés intermediário,
estacionava na proa e por ali permanecia, sem ruídos incômodos, apenas vozes, o
som do vento e da água. As refeições eram servidas no convés inferior, o das
cargas, ao lado dos motores em funcionamento. Ninguém conseguia conversar
durante as refeições. Eu me livrava de um barulho e caía em outro.
Logo após a parada em Parintins, a passageira do camarote
ao lado do meu, turista potiguar, acusou o desaparecimento da bolsa que deixara
sobre a cama superior do beliche. Imediatamente comunicou ao comandante e a
outros tripulantes. Em vão. Os indivíduos transferiram para a vítima a
responsabilidade do roubo. Nem queriam permitir a abertura do boletim de
ocorrência na parada seguinte. E as portas da maioria dos demais camarotes
foram forçadas durante a noite. Inclusive a minha que apresentava novo e
estranho defeito próximo à fechadura.
As águas do rio Amazonas baixavam, ilhas apareciam, em
direção às quais iniciava a migração de criações de gado e de famílias de
caboclos, rumo às casas e pastos abandonados durante as cheias.
Na poluição sonora do bar predominava o lixo das bandas
assim chamadas de forró. As letras faziam apologia ao alcoolismo, vadiagem,
sexo mecânico, adultério, mulheres e homens vulgares, aliciamento de mulheres.
Bêbados e bêbadas acompanhavam ao lado das caixas de som.
O posto de fiscalização antes da cidade de Óbidos incluía
o IBAMA, Receita Federal, Receita Estadual, Polícia Federal. Anoitecia e o
navio foi parado para fiscalização. Os fiscais entraram, investigaram as
bagagens das redes, camarotes, áreas comuns. Recolheram sacolas de roupas, mais
objetos cilíndricos de metal. Espalharam tudo sobre a plataforma flutuante do
posto. Enquanto uns fiscais tentavam descobrir a quem pertenciam, outros
investigavam os conteúdos. Testaram quimicamente os interiores dos objetos,
confirmando serem tóxicos. Separaram os suspeitos, pediram documentos, fizeram
dezenas de perguntas. Um jovem colombiano, carregando violão e objetos de
malabaristas, foi levado ao escritório do posto de fiscalização para
interrogatórios. A maior parte dos procedimentos se dava na plataforma
flutuante, diante da plateia dos passageiros aglomerados na borda dos três
pisos do navio, provocando inclinação preocupante da embarcação. As
investigações prolongaram-se até tarde da noite. Apreenderam as drogas, mas não
os transportadores. Os suspeitos foram liberados para seguir viagem.
Chegada a Santarém ao amanhecer, com desembarque de
muita carga e passageiros. O encontro das águas verdes do rio Tapajós com as
águas barrentas do Amazonas se destacava pelo contraste sob o sol brilhante.
continua...
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