quarta-feira, 24 de novembro de 2010

do Amazonas a Sergipe (parte 7/7)

...continuação
Após a cidade de Alagoa Grande, terra de Jackson do Pandeiro e Margarida Maria Alves, o ônibus começou a subida da serra, percorrendo estrada estreita, cheia de curvas perigosas, sem acostamento. Nos altos do relevo apareceram as primeiras casas e ruas de Areia, berço do pintor Pedro Américo. A cidadezinha guardava casario do final do século XIX e início do século XX. Moradias, sobrados, escolas, prédios públicos se distribuíam por ruas estreitas, ladeiras, rampas bem acentuadas, calçadas de paralelepípedos. Havia também um teatro de meados do século XIX, infelizmente fechado e sem programação. Instalado em casarão de pé direito alto, o Bar do Chifre, entupido de chifres nas paredes e teto, exibia diversas mensagens alusivas aos cornos. “Se você não for chifrudo seja bem-vindo e toque o sino”, “chifre ficou para homem, boi usa de enxerido”, “O cavalo não tem chifre porque a mulher é uma besta”. O estabelecimento vendia garrafas e doses de cachaças produzidas nos engenhos da região. Tomei duas doses generosas de cachaça branca, não envelhecida, não perfumada, não aromatizada, pura, muito saborosa.
Retornei à capital paraibana somente à noite. O calçadão de Tambaú se alegrava com público variado, famílias, casais, grupos de amigos, aproveitando a noite ao ar livre, em espaço público e democrático. Nada de desfile em frente a vitrines luminosas e entupidas de supérfluos. Embora houvesse gente nos bares e restaurantes, a maioria circulava pelos calçadões e praças, se sentava em roda ou nos extensos bancos de cimento da praia. Gente de todas as idades, sexos, níveis sociais. Cada um da maneira que mais lhe aprouvesse, em enorme reunião de cidadãos na plenitude do lazer saudável e comunitário.
Entre cochilos breves, observei pela janela do ônibus a paisagem paraibana e pernambucana de relevo acidentado, ocupada quase que completamente por canaviais e engenhos antigos. Raros trechos de mata atlântica, em frangalhos. No trecho alagoano, os casebres de taipa, a miséria e o abandono me lembraram do interior maranhense.

O segundo ônibus partiu cedo com metade da lotação, mas logo, ainda em Maceió, transbordou de passageiros, enchendo o corredor de pobres diabos, de pé, tratados como gado. As paradas continuavam e o percurso evoluía lentamente. A partir da parada em Palmeira dos Índios a estrada penetrou de vez no sertão alagoano, com buracos, miséria, seca, abandono. O ônibus cruzou a cidadezinha de Olho D’Água do Casado na qual, após conselhos do motorista, desembarquei. Ali peguei carona colina abaixo, até o pé do morro em Piranhas.
Na beira do rio São Francisco comi peixe frito diante das águas esverdeadas e convidativas, dos barcos atracados, das encostas desabitadas do lado sergipano. Retornei à pousada, escadaria acima, a fim de cochilar e tentar me recuperar do cansaço dos últimos dias.
Piranhas estava mais limpa, organizada e preservada que seis anos antes. Casas pintadas com cores vivas, pracinhas revitalizadas, orla urbanizada com quiosques, bares, restaurantes de alvenaria, pequeno porto flutuante.
Me sentei no terraço da pousada. Já anoitecera e as luzes da cidade se acenderam. Sob os ventos refrescantes, a lua cheia apontou bem em frente, atrás da colina do cruzeiro, amarelada, brilhante, compondo espetáculo único sobre a cidade. As ruas embaixo logo mergulharam no silêncio. Só se ouvia o barulho suave do vento. A arquitetura fracamente iluminada fazia bem aos olhos.
Subi as escadarias rumo ao cruzeiro, erguido no alto do morro oposto à pousada. A irregularidade na altura e extensão dos degraus dificultava o ritmo dos passos, mais que a subida propriamente dita. Com bar e restaurante no topo, o local oferecia vista privilegiada da cidade, do vale do São Francisco, das encostas secas da caatinga. As águas transparentes do rio faziam os barcos parecerem flutuar.
Tomei a trilha da beira do rio, leito da antiga ferrovia. Caminhei para valer debaixo de sol abrasador, calor sufocante, mormaço tórrido. Sentia dificuldades até para respirar o ar quente. Mas valeu a pena avançar próximo à margem esquerda do Velho Chico. Ninguém por ali, somente os cactos, vegetação ressecada, pássaros, lagartos, as águas verde azuladas, transparentes mais abaixo. Mergulhei em seguida. A temperatura da água refrescava a alma. Me alojei em restaurante na beira da praia a fim de degustar caipirinhas e almoçar. O calor insuportável da tarde expulsava os moradores das ruas, lançando-os nas sombras dos interiores das casas. Piranhas dormia em silêncio profundo. Imitei os moradores e me recolhi também.

Caminhei rio abaixo pela estradinha calçada. No caminho, igreja pequena e bem conservada no meio de praça singela, casas e casebres muito simples, mas pintadas recentemente de cores vivas, algumas de taipa expondo a miséria local. Os moradores daquele trecho se ligavam direta ou indiretamente à pesca, sobretudo de surubins e pitus.
Mais mergulhos nas águas refrescantes do Velho Chico, enquanto o relógio avançava lentamente. Preguiça à tarde. O sol e o calor pareciam fundir tudo e todos. Andava apenas de sunga, e de chinelos para não fritar os pés. E sempre retornava à sacada da pousada para apreciar a vista da cidade e do rio, lá embaixo.
Tomei novamente o rumo sobre o leito da antiga ferrovia e avancei o mais que pude. Em dado momento a trilha se afastou da margem do rio e adentrou em outro vale estreito. Logo ouvia sons relaxantes de quedas d’água. E não era alucinação. No meio da caatinga ressecada havia olho d’água formando riacho estreito com algumas quedas nos trechos mais acidentados. O gado se deliciava com a preciosidade e não abandonava o vale. A pequena propriedade cultivava milho, coco, banana, outras frutas. No meio da plantação se destacava antigo pontilhão da ferrovia, as rochas de sustentação, os trilhos de aço corroídos pelo tempo e abandono. Torrado pelo sol, ensopado de suor, com pés e pernas cobertas de poeira seca, garganta sedenta, as águas refrescantes do São Francisco me esperavam para os mergulhos reanimadores.
Não havia linhas de barcos pelo São Francisco, ferrovia ou rodovia pelas margens, entre Piranhas e Pão de Açúcar. O transporte coletivo no interior de Alagoas forçava o longo e demorado trajeto por Xingó, Olho D’Água do Casado, Olho D’Água das Flores e finalmente Pão de Açúcar. Cada trecho teria que ser feito separadamente, em transportes diferentes, ônibus, moto-táxi, lotação, caminhonete.
Consegui carona até Olho D’Água das Flores, no trevo para Pão de Açúcar. Larguei a mochila sob a árvore da beira da estrada e aguardei o transporte. Duas peruas passaram caindo aos pedaços, lotadas de cargas e passageiros. Apareceu uma sergipana acompanhada do filho, ambos a espera do catastrófico transporte coletivo alagoano. Contou que acabara de pagar quatro reais à senhora passageira do ônibus anterior em troca de rezas pela felicidade dela e da família. Mas, ao descer do ônibus, a reza ainda não havia terminado e, por isso, ela temia que os votos da benzedeira se alterassem para serviços do mal. Um caminhão basculante da prefeitura de Pão de Açúcar parou e subimos os três na cabine. Não era uma carona e o motorista cobrou quatro reais.

Também na margem esquerda do São Francisco, Pão de Açúcar, cidade plana e alongada paralelamente ao rio, não atraía, na arquitetura e na praia. Barracas de comida, improvisadas e de mau aspecto, se estendiam entre a rua e a areia da praia, em meio ao mato rasteiro. O pedaço do canteiro central da avenida encontrava-se sem jardim, com calçadas arrebentadas, bancos quebrados e sujos. Tirando as casas dos ricos, as moradias assustavam pelos interiores miseráveis. Em sujos depósitos de gente, pobres, muito pobres, panos encardidos ou tijolos improvisados separavam os cômodos. Esgoto a céu aberto, nenhum saneamento básico, lixo e mau cheiro.
No topo do morro se erguia estátua do cristo redentor. O calor ia às alturas, não havia sombra pelo caminho, o chapéu pouco amenizava os raios solares. No alto da colina, com vista para as águas do rio, encostei o corpo sob a sombra da estátua do homem de braços abertos, que de tão quente nem me permitia sentar.
Durante as noites, em típica cidadezinha do interior, os moradores de Pão de Açúcar sentavam-se em cadeiras nas calçadas e praças, as crianças brincavam ao ar livre, os jovens andavam de bicicleta, os casais recatados escolhiam os pontos menos iluminados nos jardins ou dos pedaços mais aceitáveis no canteiro da avenida principal.
Pela estrada de terra que acompanhava a descida do rio, pastos, caatingas, casas antigas de fazenda com alpendre e tudo, vaqueiros de gibão e chapéu de couro. No final, no pé da serra, a estrada se afastava do vale e iniciava subidas sinuosas pelos morros. Leito acidentado, pedregoso, vegetação ressecada e espinhosa. E circulei pela praia naquele domingo ensolarado. Muita gente se empanturrava de bebidas alcoólicas de quinta categoria, litros e litros de refrigerante, carros com som no último volume, bêbados, famílias, casais. Mas era lazer real em um Brasil sertanejo real.
Presenteei a funcionária do hotel com o único livro lido que eu ainda guardava na mochila. Trabalhando seis dias por semana, das 5h às 18h, ela recebia apenas R$ 120 por mês. Menos de um terço do salário mínimo nacional, por uma semana de 72 horas. Sem registro em carteira profissional, não contava com direitos trabalhistas, como férias, décimo terceiro salário, fundo de garantia, saúde pública. Porém, a dona do hotel, tocada pela generosidade inerente aos patrões, deixava-a sair de vez em quando para resolver problemas urgentes. Por pouco tempo, obviamente. No terceiro ano do ensino médio, a funcionária pretendia seguir enfermagem, mas as mensalidades de R$ 180 da escola privada estavam além das possibilidades. A tia idosa, com quem morava, não podia ajudar. O pai abandonara a família. A mãe alcoólatra vivia no interior de Sergipe, no limite da miséria. E, noiva de aliança, ainda reclamava da gastrite e de dores de cabeça devido à vista fraca.

Acordei com os ruídos da feira semanal, típica de sertão onde se vendia de tudo. Bodes, cabras, bois eram comprados, vendidos, trocados na rua da orla do rio.
O barco na margem do rio São Francisco partiu lotado rumo ao lado sergipano. Os passageiros reclamaram com razão do excesso de passageiros e temiam acidentes.
O ônibus antigo partiu da vila de Niterói em direção a Aracaju. A primeira hora da viagem, até a cidade de Monte Alegre, percorreu quarenta quilômetros de estrada de terra do semiárido sergipano. A partir do início do asfalto a paisagem mudou radicalmente. Tornou-se mais verde e úmida, entre diversas propriedades, grandes e pequenas. O nível social evoluiu da miséria da caatinga para a pobreza dos trechos mais úmidos. A rodovia cruzou cidades pequenas, a maioria chamada Nossa Senhora de alguma coisa, até atingir a infernal BR-101, com tráfego pesado de carretas, caminhões, ônibus, veículos em geral. A tarde avançava quando o ônibus estacionou no moderno terminal rodoviário de Aracaju.
Aracaju parecia bem organizada, urbanizada, limpa, com muito verde e espaços públicos. Contava com urbanismo planejado, praças públicas, avenidas arborizadas, faixas exclusivas de ciclistas e pedestres. A população retribuía aproveitando a cidade. A região da praia de Atalaia, irreconhecível desde minha visita anterior, oferecia calçadões, quadras, lagos, chafariz, parques, pistas de skate e kart, bares, restaurantes, distribuídos na ampla área entre a areia e a avenida de pista dupla. A larga e extensa faixa de areia dava de cara com mar bravo, com as plataformas da Petrobrás no horizonte. Nada de edifícios altos, para a felicidade geral da nação. Poucas moradias, espaços vazios, sobretudo nas ruas paralelas e transversais à avenida da praia. Mas a intervenção urbanística exagerada ofuscou a natureza, independente das qualidades e defeitos de cada uma delas.
De ônibus para São Cristóvão, a antiga capital de Sergipe e a quarta cidade mais antiga do Brasil. Localizado no alto da colina, o local reservava rico patrimônio histórico e arquitetônico, entre igrejas, conventos, mosteiros, residências, museus, prédios públicos. Mas quase tudo passava por lento processo de reformas e restaurações. Exceto o museu de Arte Sacra e do complexo da igreja franciscana, apreciei as demais atrações apenas do lado de fora.
Os sergipanos aproveitaram o feriado e foram à praia. Larga e sem fim, jamais lotou, nem nos trechos mais procurados. O mar batido atraía poucos banhistas. Os surfistas quase não arriscavam.
O ônibus para São Paulo não lotou.
Amanheceu em Jequié. O sertão baiano exibia verde intenso pelas últimas chuvas. A miséria, no entanto, com ou sem água, permanecia assustadora.
Em Vitória da Conquista, a empresa Gontijo trocou de ônibus sempre com atendimento grosseiro, desumano, se recusando a maiores satisfações. Em Governador Valadares, nova troca, para ônibus de qualidade inferior. Eu e mais dois passageiros exigimos explicações e ônibus de qualidade similar ou superior. A maioria dos passageiros, porém, feito gado no curral, se calou e abaixou a cabeça. Muitos eram evangélicos, fundamentalistas, conformados, idiotizados pela indústria lucrativa do fanatismo. A empresa não cedeu e as ovelhas de rebanho entraram no terceiro e pior ônibus da viagem. Afinal, “foi o que Je$u$ quis”. Anotei tudo a fim de formalizar as reclamações junto à Agência Nacional de Transportes Terrestres.
As paradas impostas pela Gontijo continuavam caras e sujas. Cobravam até pelo uso dos banheiros imundos.
Em novembro, o ônibus estacionou no terminal rodoviário do Tietê, em São Paulo. 

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