quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O Rio Negro (parte 2/2)

...continuação
As ONG´s se multiplicavam em São Gabriel da Cachoeira que nem chuchu na cerca. Estimavam-se em mais de cem no município, brasileiras e estrangeiras, fazendo não sei o quê, servindo a não sei quem, torrando verbas de não sei quais empresas ou governos. O certo é que não foram chamadas pela população, não são e nem representam os movimentos sociais ou os povos originários da região. E pude sentir o ressentimento da população diante de tantos forasteiros que apareciam sem serem chamados, perguntavam de tudo, registravam tudo, eventualmente roubavam plantas, insetos, sementes, raízes, conhecimentos milenares, para depois darem palpites esdrúxulos, se intrometerem no cotidiano, ou simplesmente irem embora sem maiores satisfações.
Volta leve pela beira do rio Negro ao lado da cidade, ali encachoeirado, com corredeiras e aquele som gostoso das águas em movimento. Serras e serrotes apontavam ao fundo. Praias bem cotadas nos finais de tarde, pescadores, de linha ou tarrafa, nas pedras junto às águas. Não se notava o tempo passar diante daquele cenário exuberante.
Diversos povos originários, com destaque para os Tukano, predominavam entre os moradores da cidade. E militares, muitos militares, do exército, da marinha e da aeronáutica. Não faltavam quartéis, batalhões, agrupamentos, centros disso e daquilo, envolvendo fardados das três armas. Somados aos demais funcionários públicos, os militares englobavam contingente que recebia em dia, movimentando o comércio e os serviços locais.

A cidade fascinava com o relevo acidentado das ruas, a vegetação exuberante, o verde vivo, as árvores, frutíferas ou não, a população majoritariamente indígena, o estupendo rio Negro com ilhas, praias, corredeiras, blocos rochosos, vaivém de canoas. Mas a presença indígena, de várias etnias do noroeste do Amazonas, era o que chamava mais atenção. Em grupos, familiares ou sozinhos, sempre me cumprimentavam sorrindo.
Caminhei bastante pelos bairros e comunidades rio acima, atingindo vilarejos bucólicos na margem do Negro, com enseadas tranquilas, costões rochosos, casebres esparsos, igarapés de águas escuras e frias, povo acolhedor e bom de conversa. Reencontrei passageiro do barco da subida que planejava sair, rio acima, com novo regatão no dia seguinte. Passaria dias com a voadeira. Ataria a rede na beira dos igarapés à noite, faria o que tinha para fazer e retornaria com dinheiro no bolso e muitas histórias para contar.
O sol subiu a pino, o calor começava a massacrar. Dei meia volta ao hotel, na frente do qual, sobre a calçada, cadeiras de plástico espalhadas ainda na sombra abrigavam hóspedes e conhecidos para bate-papos variados. As discussões giravam em torno da vocação de São Gabriel da Cachoeira. Segundo o dono do hotel, a terra da região era infértil, o rio pouco piscoso, montar qualquer empreendimento ligado à produção de alimentos custoso e inviável. Citei as frutas regionais e a possibilidade de cultivá-las para comercialização das mesmas, sucos, doces, castanhas, polpas, cremes, sorvetes, etc. A resposta dele:
“mas isso aí são frutas regionais, não servem para nada, ninguém se interessa”.
Pois é, uma das muitas vocações regionais na cara deles, de grande potencial se o poder público andasse junto da população organizada, e se ficava batendo na mesma e gasta tecla da suposta infertilidade do solo, corrupção, os prefeitos não querem nada, precisamos de estradas, fábricas. Aquele velho equívoco de encarar a floresta, o clima, a cultura e a sabedoria indígenas, não como aliados, mas como obstáculos que devem ser destruídos e superados.
O garimpeiro de ouro, há mais de trinta anos na luta, contou aventuras e desventuras pelos quatros cantos do Brasil, Venezuela, Colômbia, as Guianas. Bamburrou mais de uma vez para torrar tudo logo em seguida com bebida, mulheres, farras sem limites. Jurava de pés juntos que abandonaria a atividade pra viver de maneira regular.

Três alemães hospedados no hotel partiram com dois guias contratados em busca de um tipo específico de peixe. Alegando serem meros turistas, fumavam um cigarro após o outro, se mostravam exageradamente ansiosos. Não se interessaram em conversar ou cumprimentar outros hóspedes.
Definitivamente não tinham preço as trocas de informações, opiniões, sensações, impressões, entre hóspedes e curiosos naquelas rodas de cadeiras em frente a tantos hotéis simples por esse país afora.
Subi o morro da via sacra, com oratórios das cenas de cristo pelo caminho, até a minúscula capela no topo, de onde se avistava a cidade, o rio Negro, as serras, as planícies, a floresta.
Amanheceu feio depois de forte pancada de chuva durante a madrugada. Acordei bem cedo e fui ao ponto esperar o ônibus urbano que me levaria ao distante porto.
Embarquei no mesmo barco que partiu pela manhã. Atracado no barranco de terra, o navio do governo estadual atendia a longa fila dos que vieram para resolver problemas de documentação, exames médicos e odontológicos, casamentos, registros de nascimento, aposentadorias, regularização disso e daquilo. O navio funcionava como cartório e posto de serviços gerais, itinerante, atingindo cidades ribeirinhas do Amazonas.
Entre os passageiros da descida, o veterano vendedor, pernambucano, gerou gostosas risadas em cima de assuntos variados, sob o sol fraco ou sob a lua cheia na área do piso de Lazer. E as conversas com o instalador de redes de computadores renderam dicas atualizadas sobre a situação de diversas cidades do interior do Amazonas.
Pôr-do-sol avermelhado, passando a lilás e finalmente roxo. Demais! À noite esfriou e tive que entrar sob o lençol da cama da suíte. Nem percebi a parada noturna em Santa Isabel do Rio Negro.
Nascer do sol impressionante, com a bola de fogo se elevando sobre as águas do horizonte à frente do barco.
Mais churrasco de curimatã no piso superior do barco, acompanhado de farinha de mandioca e molho apimentado. Era muito peixe na grelha. As colheres compartilhadas se enchiam e se esvaziavam nas bocas de todos.

O Tayrano que nasceu e se criou no alto Uaupés falava, além do português, nhengatu, tukano e espanhol, já que o vilarejo natal se situa na fronteira com a Colômbia. Bastava cruzar o igarapé e mudar de país. Aproveitou para contar dos massacres do exército colombiano e dos paramilitares sobre a população local em cidade supostamente base de apoio da guerrilha rural. Em operação de terra arrasada, com muita crueldade, os dois grupos militares que suportam o governo colombiano, executam indiscriminadamente a população urbana e rural, para, em seguida, alardear pela mídia burguesa que derrotou uma base guerrilheira. Assisti em celular a vídeo documentando uma suposta emboscada do exército colombiano sobre lancha dirigida por supostos guerrilheiros. Verdadeira carnificina, com direito a closes dos corpos e rostos estourados dos mortos. Restavam dúvidas se eram ataques forjados a moradores, os quais, depois de assassinados, eram vestidos de guerrilheiros e taxados como tais na mídia oficial, em farsas internacionalmente conhecidas como “falsos positivos”.
Acordei cansado de tanto dormir. Nem notei quando o casco do barco bateu em banco de areia, obrigando a se arrastar para não encalhar.
Experimentei creme de bacaba, que, embora de coloração mais clara, tinha sabor semelhante ao do açaí, ou seja, delicioso.
Deveras engraçada a geringonça para regular a posição da antena parabólica da televisão do piso de Lazer do barco. Diversos tipos de ajustes que se combinavam para obter a sintonia ideal. Mas bastava uma curva do rio, ou o leme se movimentar para desviar de algo, para alguém ter que se levantar e tentar obter novamente a combinação perfeita dos ajustes na antena.
  Churrasco de carne de gado de primeira na área de lazer, almoço de despedida, últimas conversas. Queria gravar as belas imagens do Negro, as águas escuras e calmas, as ilhas alongadas, as margens cobertas pela floresta, as raras comunidades avistadas.
Desembarquei no imundo cais de São Raimundo à tarde. Carros e caminhonetes particulares ofereciam corridas a preços de assaltantes. Caminhei até o asfalto da avenida e peguei transporte comum.
Acordei e já estava com saudades das viagens fluviais. Que cruzeiro de luxo em transatlântico que nada! Que escadarias acarpetadas, abusos de paredes espelhadas, das quais os passageiros deslumbrados dos cruzeiros não se cansavam de fotografar, que nada! Quem navegasse dias e dias pelos rios amazônicos, em barcos ou navios comuns de passageiros, jamais precisaria gastar com terapias, análises, remédios antidepressivos e afins. Viagens fluviais pela Amazônia curavam tudo, sem contraindicações ou efeitos colaterais.
Terminei de ler o livro O Fim do Terceiro Mundo, de Márcio Souza. Fui ao sebo em quiosque da praça Gonçalves Dias. Conversei com o livreiro sobre temas políticos, sociais, literários, musicais, debates sempre enriquecidos pelos visitantes e curiosos que entravam ali. O quiosque de ferro, no mesmo estilo do mercado municipal, era padronizado como os demais da praça, outrora suja e desmazelada, agora revitalizada e prestigiada pela população. E o ar condicionado, claro, se fazia presente para tentar amenizar a caldeira que se transformou a Manaus de concreto e asfalto. Os frequentadores me recomendaram eventos literários e musicais na cidade, muitos dos quais ocorreriam, infelizmente, após minha volta para casa.

Almocei pela segunda vez em restaurante que, além da boa comida, oferecia frequência peculiar, entre engravatados, mocinhas de escritório vestindo aqueles conjuntos escuros, muito parecidos com os que minha avó usava. Emergentes e afins da cidade também marcavam presença, formando fauna única. Mulheres produzidas nas roupas, cabelos, maquiagem, em pleno meio-dia, para verem e serem vistas. Casais nos quais o homem enlaçava a mulher como propriedade privada. Só faltava exibir a nota fiscal de compra. Sentavam-se lado a lado. Ele jamais desgrudava o braço da presa, para ostentar quem mandava por ali. Determinados casais indicavam claramente que iam ou vinham de encontros picantes pelos hotéis decadentes da rua Joaquim Nabuco.
Suculento açaí, fresco e cremoso, encerrou a tarde tórrida pelas ruas sem árvores e sem sombras de Manaus.
Com poucos hóspedes circulando, o hotel parecia se esvaziar com a aproximação das eleições. Mas os gringos estavam lá. Enquanto eu pegava o que comer na bancada do café da manhã, uma canadense fedendo latrina de rodoviária, provavelmente sem banho ou troca de roupas havia dias, me perguntou em espanhol se a água ali servida era boa para estrangeiros. Respondi em português que a água era boa para todos. Ela ainda insistiu, dizendo ser canadense, se a água podia ser bebida por pessoas como ela, de outros países. Repeti que a água era boa para todos, brasileiros ou estrangeiros. Entendeu sem compreender. Não agradeceu e voltou à mesa. E sem pegar a água.
A construção onde funcionava o tribunal de justiça do estado era imponente e elegante, datada do primeiro ciclo da borracha. Os interiores impressionavam pela suntuosidade e, como mania da Manaus estrangeira da época, utilizou diversos materiais importados. Mais uma ostentação que engoliu as riquezas geradas naqueles tempos. Tempos que só foram bons para a minoria da classe dominante manauara, a mesma que como hoje em dia mantém a maioria na miséria.
Embarquei em ônibus vazio para Rio Preto da Eva. Vilarejo feio. Um amontoado de construções na beira da estrada. O lugar era famoso pelos banhos no rio. O banho central desanimou de tão sem graça. Barracas de alvenaria e palha de buriti em ambas as margens, estreita faixa de areia, parte urbanizada e de concreto, parte ainda mantendo árvores esparsas garantindo sombras providenciais, música em alto volume na base dos lixos descartáveis da indústria cultural. Dei o fora rapidinho.
Como acontece em Manaus nas noites de quarta-feira, houve apresentação de músicas regionais no largo de São Sebastião. Abriu com compositor que se destacava pelas letras com ironia política, social e pessoal. No meio da vasta plateia que lotou o espaço estavam presentes músicos amazonenses e roraimenses, poetas, artistas e afins. Parecia grande confraternização entre amigos de uma pequena comunidade e não da metrópole de mais de dois milhões de habitantes. Reencontrei o livreiro do sebo que visitara. Eu me sentia em cidadezinha onde os moradores formam grande família imbricada de relacionamentos pessoais, artísticos, profissionais, afetivos. E os manauaras ganharam muitos pontos no meu conceito depois dessa noite.
O calor, no entanto, estava pegajoso, abafado, tórrido, indecente. Ficava até difícil movimentar ou respirar, tal a sensação de solidez do ar. Poderia agarrar pedaços daquele ar quente e pesado. Nada de brisa, nada de vento. Os manauaras ansiavam pelo fim da estação seca, pela volta das chuvas, pelo fim da névoa que esquentava ainda mais. Os concretos e asfaltos de Manaus se aproximavam do ponto de fusão. E o verde, para onde foi o verde?
Enrolei no quarto até antes do meio-dia. Peguei ônibus urbano até o aeroporto. Li bastante no saguão o livro adquirido no sebo de Manaus, Os Sinos da Agonia, de Autran Dourado. Embarquei em voo longo e cansativo. Li mais.
Desembarquei em São Paulo em fins de setembro. Ônibus comum de linha, metrô e logo entrava em casa, satisfeito com os poucos, mas bem aproveitados, dias na Amazônia fluvial.

2 comentários:

  1. Essa viagem fluvial, pelo que li nos dois relatos, foi uma das mais tranquilas. A experiência ao observar a natureza realmente não impede de criticar as mazelas encontradas nas cidades do alto Rio Negro.
    Observei que fizeste diversas considerações sobre a população indígena, mas certamente não tiveste conhecimento do surto de suicídios de jovens nas populações indígenas em São Gabriel da Cachoeira. Até porque os moradores da cidade não gostam de falar a respeito.
    Mais detalhes (recomendo muito a leitura)nesta reportagem da Agência Pública: http://apublica.org/2015/05/sao-gabriel-e-seus-demonios/
    Att, Jafé Praia

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  2. Oi Jafé,
    Obrigado pelas considerações e sugestões.
    Realmente eu desconhecia esse surto de suicídios entre os jovens indígenas. Além de não reparamos os crimes cometidos contra eles desde a invasão dos europeus a partir de 1500, ainda prosseguimos com mais massacres, sobretudo contra as culturas desses povos. Imperdoável.
    Lerei sim o artigo sugerido.
    Comente sempre!
    Abraços.

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