sexta-feira, 19 de novembro de 2010

do Amazonas a Sergipe (parte 5/7)

...continuação
Amanheceu em Pernambuco, logo após a divisa da Paraíba, por entre relevo ondulado, com poucas serras, baixas e curtas, vegetação de médio porte, castanho-acinzentada, com raros tons de verde. O miolo do semiárido, a caatinga em perfeito estado, com muita personalidade, impunha respeito. Cidades pequenas, casas e casebres isolados, bodes e cabras, rios e açudes quase secos, cisternas novas instaladas ao lado das moradias, se alternavam. À medida que o ônibus se aproximava de Serra Talhada, a vegetação arbustiva parecia ainda mais seca.
Desembarquei, peguei lotação subindo a serra dos Cariris Velhos. A estrada estreita e sinuosa percorreu paredões rochosos, vales profundos, no fundo dos quais predominava o verde das lavouras de alimentos dos pequenos agricultores. Erguida na encosta da serra, a mil metros de altitude, a pequena e simpática cidade de Triunfo chamou a atenção pelo extenso lago.
Visitei os museus do Cangaço e da Cidade, singelos e simpáticos. A poucos quilômetros da fronteira da Paraíba, Triunfo guardava arquitetura bem preservada do final do século XIX e início do século XX, distribuída em ladeiras de paralelepípedos, principalmente nos arredores da igreja matriz e do teatro Guarany. Ao redor do grande lago, lanchonetes, bares, bancos sob as árvores concentravam a juventude local.
O restaurante que eu frequentava contava com ambiente descontraído, maior faixa etária e boa oferta de cachaças. Acabei por me juntar ao grupo de amigos voltando de partida de futebol, ainda com os uniformes, conversando animadamente sobre política regional, política nacional, futebol. Os demais moradores da cidade também demonstravam simpatia, sempre se dispondo a bater papo. Assistiam ao horário eleitoral com fervor, discutindo bastante política, antes, durante e depois da programação. Xingavam a demagogia barata e messiânica da candidatura Geraldo Alckmin do PSDB/PFL(DEM). Vibravam de paixão nos programas da candidatura Lula, apoiada pela esmagadora maioria dos nortistas e nordestinos.

À noite, o vento derrubava a temperatura, as ruas se esvaziaram rapidamente e eu retornei ao hotel para dormir o sono merecido.
Triunfo ganhou fama pelos engenhos de cana dos arredores, onde se produzia cachaça, melado, licores e, principalmente, rapadura, pura ou com ervas.
Subi as ladeiras da cidade, ultrapassei a igreja, o museu do Cangaço, atingi a parte mais alta, junto ao cruzeiro e ao cristo redentor. Segui em frente por estradinha calçada de pedras angulosas e irregulares, percorrendo a zona rural de Triunfo, com casinhas simples, chácaras, canaviais, diversos engenhos de cana. Lavadeiras estendiam as roupas coloridas para secar sobre as pedras. Duas horas de caminhada depois eu chegava nos altos da cachoeira dos Pingas. Desci a encosta da montanha até a primeira queda da cachoeira, de frente ao vale e à escarpa da serra, onde relaxei sob a sombra. O calor ia às alturas. Botei o chapéu e o pé na estrada de volta. Enquanto me hidratava em boteco para lá de simples, sentado em banco de madeira, os frequentadores jogavam baralho entre goles de pinga com limão.
Segui direto ao restaurante de sempre, agora mais cheio e com mesas sob as sombras da calçada do outro lado da rua. O repertório musical incluía extensa seleção do Altemar Dutra.
Peguei lotação montanha abaixo, rumo a Serra Talhada, a capital do xaxado, a terra natal de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, cidade bem mais quente e seca que Triunfo.
Serra Talhada contava com bom aspecto, limpeza, urbanismo discreto, comércio movimentado, vaivém nas calçadas. A igreja ficava na parte mais alta da praça retangular, estreita e alongada, ao longo da qual perfilavam lojas, bares e restaurantes simples, bancos. Formação serrana e com rochas expostas se erguia ao norte da cidade, fornecendo aspecto dramático ao cenário no meio da caatinga. A imponência dos paredões se destacava na aridez da planície.
Jantei em restaurante familiar, simples e agradável, no qual as mesas se dispunham ao ar livre, sobre o calçamento da rua. Pena que o televisor posto na calçada, de frente para as mesas, retinha os olhares bovinos dos clientes. Preferi apreciar a noite com céu estrelado e o pequeno movimento de pessoas na noite de sexta-feira.
As estradas pernambucanas deixavam a desejar com buracos e irregularidades. E a empresa Progresso impunha o monopólio das linhas intermunicipais no estado, com ônibus em mau estado, desrespeito ao cumprimento de horários e ao limite máximo de passageiros. Jamais marcava os assentos nas passagens, gerando tumulto nos momentos de embarque.

Embarquei à tarde rumo a Arcoverde. Peguei moto-táxi até o hotel instalado em construção grande, velha, mal conservada, com corredores longos e sombrios como dos hospitais. Vira à direita, vira à esquerda e entrei no quarto imenso, com cama de casal, cama de solteiro, uma mesa com tampo de vidro e duas cadeiras, um frigobar, um armário de duas portas, uma bancada, um móvel de sala com cinco portas. Para pendurar roupas apenas um cabide torto dentro do armário. O enorme banheiro de dois ambientes e as imediações da porta de entrada se cobriam de poeira moída pelos cupins. O sifão da pia vazava, ensopando o piso. Os azulejos das paredes foram brancos em algum dia no passado. Pó e resíduos sólidos não identificados se concentravam nos cantos.
Arcoverde contava com calçadas mal cuidadas, pouco ou nenhum verde, nada de praças, urbanismo desleixado, sem personalidade. Mas os pernambucanos não decepcionavam, sempre simpáticos, prestativos, alegres. Enfatizaram as manifestações culturais da região, como o Samba de Coco do Cruzeiro e o grupo Cordel do Fogo Encantado.
Após o saboroso jantar, na base de carne de sol, feijão verde, arroz, farofa e salada, eu circulei pela área da antiga estação ferroviária, abandonada. O Brasil, antes ferroviário, se submetera à imposição do transporte rodoviário pelas transnacionais. Nada mais de ferroviário funcionava em Arcoverde, assim como em todo o nordeste, outrora interligado por dezenas de linhas férreas.
Encarei o cruzeiro no alto do serrote ao norte da cidade. A trilha curta e íngreme passava pelas imagens da via sacra e logo alcançava a grande cruz branca de concreto com a pequena capela ao lado. Segui adiante por estradinha de chão cortando a caatinga. Vegetação seca e rala em tons que iam do castanho-acinzentado ao cinza-acastanhado. De arbustiva a médio porte, mandacarus, facheiros, macambiras, palmas, umbuzeiros, umburanas, favelas, calumbis, algarobas. Pequenas lavouras de milho e palma em meio a grandes extensões de terras improdutivas, bodes, cabras, gado. Cercas de pedra ou de paus secos, raramente de arame. Em lajedos de pedra nas partes mais altas apenas os facheiros e macambiras sobreviviam. Casas isoladas ou em pequenas comunidades, a maioria de alvenaria, com cisternas ao lado construídas pelo governo federal. A energia elétrica também alcançava todas as moradias. Não avistei nenhum rio ou riacho com água em todo o trajeto. Dezenas de lagartos pequenos, uma jararaca morta, um preá grande, pássaros variados compunham a fauna. Os moradores saíam às portas e janelas e respondiam alegremente aos meus cumprimentos. O sol não arrefeceu um segundo sequer, massacrando a cabeça, mesmo com chapéu e protetor solar. A brisa, no entanto, impedia a sensação exagerada de calor.

Ouvi o diálogo entre a camareira do hotel, senhora de cerca de cinquenta anos, e o recepcionista, bem mais jovem. Ele tentava a duras penas explicar-lhe em quais cargos ela teria que votar no segundo turno das eleições. Em Pernambuco haveria segundo turno para governador e para presidente da república. Ela não conseguia entender porque havia dois candidatos em disputa para cada cargo, nem porque deveria escolher dois candidatos ao todo. Nem sequer sabia que Lula era candidato a presidente. E aquela distinta senhora cantava alto, a todo instante, pelos corredores do hotel, versos evangélicos em transe hipnótico. Fundamentalismo, ignorância, alienação, sempre de mãos dadas. A maioria, felizmente, se envolvia nas acaloradas discussões políticas e se interessava em votar conscientemente.
No ônibus a Caruaru, em assento à minha frente, uma garota de vinte e poucos anos, morena jambo, baixinha, corpo arredondado, vestindo roupas insinuantes. Um senhor de mais de sessenta anos, depois de olhadas para lá de interessadas, sentou-se ao lado dela. Puxou conversa em voz baixa, quase aos sussurros, se roçando. Vira e mexe ela soltava risinhos envergonhados. Trocaram telefones e, enquanto ela anotava o número, ele a enlaçava na perna.
 Após deixar o sertão de Arcoverde para trás, a rodovia cruzou zona serrana, acidentada e sinuosa, a partir da qual a vegetação evoluiu da caatinga ao agreste. Em Pesqueira as montanhas cercavam a cidade encravada ao pé da serra e cheia de ladeiras e casario antigo.
Em Caruaru, depois de suculenta e saborosa bisteca de porco, eu visitei o museu do Forró, com destaque para a vida e obra de Luis Gonzaga. O museu do Barro, ao lado, exibia histórias e obras em barro cozido produzidas no Alto do Moura, em especial os delicados trabalhos de arte figurativa de Mestre Vitalino. O conjunto de figuras de barro representando cenas da vida real nordestina funcionava como preciosas crônicas materializadas pelo mestre.
Caruaru exalava ares de cidade grande. O centro era horroroso, poluído, confuso, tenso, lotado, sem qualquer atração arquitetônica ou urbanística. Na antiga e famosa feira de Caruaru se vendia de tudo em imenso conjunto de labirintos estreitos e extensos, barraca colada com barraca, mar de vendedores, produtos e clientes. Nada de especial ou diferente dos camelódromos tão comuns pelo Brasil afora.
Na manhã seguinte eu e a amiga pernambucana pegamos a estrada rumo à cidade de Buíque e depois à vila do Catimbau. O sol e o calor do meio do dia iriam nos agredir sem perdão. Mas lá fomos com o guia através de estrada de terra que cruzava o parque nacional.

Iniciamos a trilha da Pedra da Concha em caminho fofo e arenoso, descendente, cortando vegetação típica de caatinga. Ao fundo se erguiam os paredões do vale propriamente dito. A trilha compunha-se de grutas em arenito com pinturas rupestres nas paredes. Outras formações rochosas esculpidas pelo vento mostravam figuras de animais e afins. Marimbondos formavam enxames nas paredes do arenito. Seguimos adiante rumo à trilha da Igrejinha, onde dois imensos blocos rochosos de coloração avermelhada, como portais, realçavam-se sob a luz do sol. Na volta paramos na casa do artista plástico, popular e autodidata, José Bezerra. Ele exercitava a vocação artística em troncos de madeira seca, montando figuras, esculpidas ou não, de humanos e animais regionais, expostas informalmente pelo terreno descoberto da casa. Também fabricava e tocava instrumentos rústicos, inventados na hora, feitos de corda com panelas e outros objetos inusitados.
A tarde avançava, a fome e a sede nos pegaram de jeito. Imediatamente voltamos à vila a fim de almoçar comida caseira sob a sombra das árvores do quintal da casa.
O parque nacional do Vale do Catimbau abrangia áreas de quatro etnias indígenas e as influências se faziam sentir nos costumes locais. Assistimos no final da tarde à apresentação improvisada de adolescentes, que tocaram, cantaram e dançaram samba de coco e o toré, ritual de origem indígena. Contemplamos o pôr-do-sol onde havia nascentes de águas, cemitério indígena, grutas, chalés cônicos de cimento, que mais pareciam olarias de tão quentes.
Saltamos da cama antes do amanhecer e partimos para iniciar mais um dia de exploração no vale do Catimbau.
Trilhas, montanhas, planícies, flora, fauna, vales, grutas, simplesmente deslumbrantes, nos encantaram, apesar do desgaste físico com as distâncias percorridas sob o sol de rachar mamona. Cruzamos lajedos, formações rochosas impressionantes, vales, cânions. Exemplares característicos da flora da caatinga se sucediam como facheiro, macambira, mandacaru, palma com pequenas flores vermelhas, coroas de frade brotando na areia ou na pedra, babaçu, ouricuri, flores violetas, angico, umbuzeiro, cajueiro. Os sobes e desces nas formações rochosas valorizavam os ângulos de observação da paisagem e facilitavam a caminhada, em contraposição aos trechos arenosos e fofos, mais puxados. E nos deparamos com a gruta dos Homens sem Cabeça, composta de pinturas rupestres em pequena área da parede rochosa. As imagens exibiam cenas de batalha, homens com lanças em punho e os pênis eretos, algo como feiticeiros cabeludos ou mascarados em pleno ritual.
continua...

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