domingo, 28 de novembro de 2010

Peru - Trilha Inca e Cordilheira Blanca (parte 2/3)

...continuação
A caldeira do hotel de Águas Calientes estava desligada e a água quente terminou em minutos. Só mais tarde consegui tomar banho e remover os cascões, sebos, sujeira grossa e fina. E parte das lembranças dos quatro dias na Trilha Inca. Fomos aos banhos termais, ao ar livre, em piscinas rústicas, a maior contando com gostosa água quente. Não era permitido nadar ou mergulhar nas águas quentes e sulfurosas, apenas boiar e relaxar. A temperatura beirava os 35 graus, amortecendo os músculos, causando sonolência, preguiça. Valia a pena, apesar de apinhada de turistas.
Jantar em restaurante agradável e bonito, mas caro e onde a comida era apenas pequena decoração. Minúsculos pedaços de bife, legumes e salada verde mal cobriam o fundo do prato. O sabor agradava o que fazia a fome ir às alturas. Bastante pisco, muitas risadas de tudo e de todos. Voltei ao hotel e desabei na cama. Sono mais que merecido.
Novamente o ônibus subindo a Machu Pichu para visitação completa, como o lugar exigia. Nuvens espessas e úmidas forneciam clima misterioso às ruínas. Machu Pichu continuava bela e fascinante. Acordamos bem cedo para evitar, pelo menos no início da manhã, as hordas de turistas. Circulavam rumores de fechamento de Machu Pichu para o turismo. Construções danificadas, paredes e muros deslocados apareciam como causas principais. Nesses momentos, as tais organizações internacionais, as ONG´s, sumiam do mapa ou se submetiam às pressões do turismo predatório.

Arguto e crítico professor de história, o guia local explanou com toda a calma e paciência sobre o mau uso que os invasores europeus faziam da história do “descobrimento” de Machu Pichu. Esclareceu os equívocos preconceituosos e arrogantes dos espanhóis e da maioria do ocidente frente à cidade e sabedoria dos Incas. Sempre afirmava com orgulho que pisava a terra dos avós. E que os demais guias fizessem o mesmo para os turistas provenientes de países invasores.
De volta a Águas Calientes, almoço em restaurante ao lado da ferrovia, sobre antiga plataforma de carga e passageiros. Comida farta e saborosa em local inusitado.
Embarque no trem rumo a Cuzco, onde haveria jantar de despedida com os receptivos da cidade. O grupo caía de sono e cansaço. Forramos o bucho, nos despedimos da maneira mais educada possível e voltamos ao quarto do hotel. Ainda teríamos que arrumar as bagagens, acordar cedo no dia seguinte, tomar rapidamente o café da manhã e pegar o voo para Lima. Não via a hora de poder parar, relaxar, dormir, coçar o saco, descansar, não fazer nada.
O companheiro de quarto passou mal durante noite curta. Vomitou, cagou tudo e mais um pouco. A expressão do rosto dele não poderia ser mais desanimadora. Acordei zonzo e sonolento. Comi pouco no café da manhã antes de correr para o aeroporto.
Em voo rápido para Lima, visão de mais picos nevados dos Andes. O colega enfermo nada viu e permaneceu apagado durante o percurso. O furgão do receptivo esperava. O adoentado cambaleava de fraqueza e mal carregava as mochilas. Ao atravessar o estacionamento do aeroporto, parou de repente e fez sinal de quem esquecera algo para trás. Largou a bagagem no chão e saiu correndo. O intestino dele dera o sinal de emergência. Por duas vezes foi ao banheiro dali antes de seguirmos. E o restante do grupo debochava e ria muito. Compramos remédios em Lima e lá fomos nós Andes acima.
A rodovia começava no litoral peruano, extremidade norte do deserto do Atacama, entre morros de areia e deserto puro. Poucos e pobres vilarejos se alinhavam nas margens da estrada. Parada para almoçar na feia e cinzenta cidade de Barrancas, perto do mar.
A estrada se afastou do litoral e iniciou a lenta e constante subida da cordilheira. O visual permanecia de areia, rocha, pequenos vilarejos miseráveis da cor do deserto, cortados por impressionantes vales férteis com milho dourado e temperos coloridos estendidos sob o sol. Ouvíamos música popular peruana no toca-fitas do furgão. O colega doente permanecia apagado e deitado no banco traseiro, com expressão desoladora. Nada comia e tudo expelia nos banheiros. Sonolento, raramente acordava, se deitava de barriga para cima, abraçado à garrafa plástica com o líquido vermelho comprado na farmácia em Lima. Parecia desmaiado, mas não largava a garrafa plástica. A cena dele deitado e agarrado ao líquido vermelho não deixava de ser engraçada. Não dava para evitar os risos e as gargalhadas, ainda mais pelo motorista chamado Leiba. Somente a coincidência poderia explicar a tragicomédia de termos um colega com diarreia junto ao motorista com nome de laxante.

A estrada não parava de subir. Perfilava escarpas rochosas, cruzava pontes sobre abismos sem fim. A temperatura despencava e precisamos fechar as janelas do furgão. Cruzamos o passo a 4.100 metros de altitude, ao lado de uma lagoa. Surgiram os primeiros picos nevados do Calejon de Huyalas, da cordilheira Blanca. As rochas de coloração avermelhada, as nuvens, a lua quase cheia, desenhavam cenário impressionante no fundo do horizonte. Descemos para apreciar a paisagem da lagoa, mas o vento cortante nos levou de volta ao furgão.
Parada para tomar chá de coca em bar no vilarejo de Catac. O ambiente era para lá de simples. As mulheres que nos atendiam se assanharam. A mais jovem delas, com fortes traços indígenas, perguntou o estado civil ao guia. Entristeceu-se quando ouviu “casado”, repetindo que o achara muito bonito. O enfermo nada percebia e se mantinha fora do ar. Apenas entrava nos banheiros ou se deitava no banco do furgão agarrado à garrafa de plástico com líquido vermelho.
À tarde em Huaraz, a 3.100 metros de altitude, hospedagem em pousada familiar, simples e simpática. A visão parcial das montanhas nevadas, com a luz refletida pelo luar, aumentava as expectativas. Cansados, sonolentos e sem vontade de fazer nada, jantamos rapidamente, voltamos à pousada a fim de dormir cedo e acordar tarde. Precisávamos e merecíamos.
Maravilhoso dormir bem e bastante! Quatro cobertores e o silêncio necessário garantiram sono profundo e reconfortante. Acordei bem tarde, tomei banho demorado e desci para o café da manhã servido em mesa redonda no quintal da casa. Apreciei o céu azul, o sol, os picos nevados da parte norte da cidade, aumentando ainda mais o apetite e a disposição. Entre pães frescos, sucos de laranja da própria fruta e demais quitutes, enchemos o bucho, conversamos, nos descontraímos. Sentíamos que a energia voltava junto à alegria e à disposição.
Circulada de leve e sem pretensões pela cidade. De tamanho médio, Huaraz passara por vários terremotos. Estava meio destruída, meio em reforma, meio em reconstrução. Lajes, cabos de aço, tijolos, cimento à vista, pedreiros para lá e para cá. Por outro lado, envolvia pela simpatia do povo, naturalmente acolhedor, sem o assédio comercial de Cuzco. Havia turistas na cidade, mas em número reduzido, e de outro tipo, mais voltados às escaladas e longas caminhadas. Paravam pouco na cidade, indo diretamente às montanhas. As agências de turismo e as lojas de equipamentos especializados, para compras ou aluguel, eram simples, pequenas, informais, assim como o atendimento.
De praticamente todos os pontos da cidade era possível contemplar as montanhas nevadas que se erguiam ao norte, sobretudo os dois cumes do Huascaran, os mais altos do Peru e que dão nome ao parque nacional.

Novamente noite bem dormida. Levantamos tarde para tomar o saboroso e abundante café da manhã. Visando a aclimatação, caminhada à lagoa Shurup, situada a 4.500 metros de altitude. Em toda a trilha eu parava e contemplava as montanhas nevadas que se elevavam de todos os lados, inclusive o dramático paredão do pico Shurup, mil metros acima das águas esverdeadas da lagoa. Lanche e relaxamento em meio à bela paisagem. O sol se inclinara, aumentava a sombra e o frio.
Um europeu lavava roupas no quintal durante o café da manhã. Pegou uma faca da mesa de refeições para abrir o saco do sabão em pó. Usou, limpou com o guardanapo, a largou sobre a mesa novamente. Não pediu, não se desculpou, não agradeceu, nem sequer olhou na cara.
Acompanhamos de perto os últimos preparativos do grupo de apoio com os itens de alimentação e equipamentos coletivos para a travessia. Quatro galinhas vivas e gordas foram acondicionadas em caixas de madeira. Seriam mortas e cozidas na trilha. Botijões extras de gás também constavam da carga.
A estrada cruzou vários vilarejos, sempre com o vale e a cordilheira Negra, sem neve, à esquerda, e a cordilheira Blanca, nevada, à direita. Os dois cumes, norte e sul, do Huascaran, de tão próximos, pareciam tocar nossas mãos. Plantações de milho, frutas, trigo se estendiam pelo vale. Passamos pela vila de Yungai, reconstruída mais abaixo depois da original ter sido completamente soterrada por parte do pico Huascaran durante o terremoto de 1970. Morreram cerca de 20 mil pessoas e a maioria dos corpos ainda estava lá, debaixo da enorme quantidade de material deslizado. Na montanha faltava uma fatia no formato de pedaço de bolo. Paramos na aconchegante cidade de Caraz e sentamos na praça para acompanhar o movimento dos moradores. Depois seguimos por estrada de terra, estreita e sinuosa, serra acima, com abismos muito próximos, até o ponto inicial da travessia de sete dias pela cordilheira Blanca. As casas contavam com banheiros externos, todos azuis, todos iguais, todos com fossa.
Iniciamos a caminhada no meio do dia. Passamos pelo posto de controle do parque nacional. Avançamos por garganta estreita e profunda. Subimos pela margem do rio encachoeirado, cujo envolvente ruído nos acompanhava todo o tempo. Riachos e pequenas quedas d’água surgiam dos paredões à esquerda e à direita. No final da tarde, o gramado extenso de Llama Coral, a 3.800 metros de altitude, o primeiro ponto de acampamento. Acima do vale, as primeiras montanhas nevadas.
Dividíamos barracas mais amplas e confortáveis que na Trilha Inca. Um brasileiro recém-incorporado ao grupo e a gaúcha se enganchavam desde Huaraz e se ajeitaram na mesma barraca. Jantamos sopa de verdura e legumes, truta com batata e arroz, salada de frutas, vinho tinto e muito chá, sempre servido antes e depois das refeições.
Acordei mais cedo que o grupo, ainda antes do sol bater na barraca. Uma aura brilhante formava-se atrás das montanhas, vale acima, configurando efeito luminoso impressionante.
A trilha seguia entre escarpas rochosas elevadas de ambos os lados, impedindo a visão das principais montanhas. Raras pontas brancas surgiam acima dos paredões acinzentados. As quedas d’água do degelo se sucediam. Banheiros de alvenaria em formato circular apareciam próximo às trilhas. Dezenas de aves e pássaros acompanhavam, com destaque para os patos brancos e marrons. Surgiu lagoa grande, calma, de águas esverdeadas, em cuja margem paramos para comer, descansar, contemplar. Mais acima o vale ameaçava se abrir e descortinar a cadeia de montanhas.

Após a lagoa, mais um longo trecho plano, alagadiço. Depois, pequeno bosque em declive e as montanhas se revelavam de ambos os lados. Leve almoço no gramado, na base de salada de frango com legumes, abacate e pão. Encerrou com laranja e bastante chocolate.
A trilha vicinal rumo ao campo base do pico Alpamayo seguia por subida muito íngreme, mas para lá de compensadora. Do outro lado do vale, às minhas costas, se elevava imponente montanha toda branca pelo gelo e neve. Era o tipo de imagem que valia por toda a viagem. Parada pouco antes do campo base a fim de apreciar a face sul da montanha. Sentamos, relaxamos, observamos grupo de escaladores a caminho do cume. O guia, que escalara a maioria das montanhas, diversas vezes, afirmava que o Alpamayo era a montanha mais procurada pelos escaladores pelas dificuldades técnicas. O Huascaran ganhava disparado em acidentes devido a constantes avalanches.
Outra trilha atingiu o local de acampar. Taulipampa, a 4.150 metros de altitude, era deslumbrante. Enorme montanha nevada se erguia bem na cara. Ainda não anoitecera. Tomei coragem e lavei os pés, braços, rosto, nuca, orelhas, nas águas geladas do rio. Entramos na barraca-refeitório para fugir do frio intenso do lado de fora. Para esquentar, chá e queijo. Jantei sopa de cebola, carne com brócolis, couve flor e batata. Mamão com limão e açúcar estrelou na sobremesa.
Gelou durante a noite e madrugada. A temperatura atingiu 7 graus negativos. Embora resistisse o máximo possível, levantei e saí da barraca para urinar. O corpo e os membros pareciam congelar de tanto frio. Mas o visual das montanhas ao redor, prateadas e refletindo o luar, fazia esquecer qualquer desconforto.
Iniciamos cedo para encarar a trilha longa e bem íngreme até o passo. O vento raramente dava tréguas e o frio castigava sem dó. Mesmo sob o sol, a temperatura jamais superava os 8 graus, sem falar na sensação térmica pelas rajadas geladas. A subida firme não deixava por menos e exigia bastante dos pulmões e pernas. As providenciais paradas para apreciar a paisagem restauravam as energias. Assim que ganhávamos altitude, mais montanhas apareciam, cada vez mais próximas. Outra lagoa de águas esverdeadas se exibia no pé da geleira.
Atingimos o passo da crista montanhosa, Punta Union, a 4.750 metros de altitude. A visão de ambos os lados hipnotizava pela beleza. Optamos pelo lanche naquele ponto privilegiado. De todos os lados os olhos se encantavam com o que viam. Montanhas nevadas, escarpas rochosas de cor negra, geleiras, picos cônicos, lagoas, vales profundos, blocos de rocha cinzenta. Mesmo depois de encher a pança e recuperar as forças, não queria deixar aquele paraíso. Nem me importava com os ventos gelados provenientes de ambos os lados. Os casacos protegiam. Qualquer cansaço, frio, desconforto ou falta de banhos ia para o espaço diante daquela pintura.
A passagem exata pela crista da montanha se constituía de corredor estreito entre paredes verticais de rocha pura. Era como se deixasse um mundo e entrasse em outro, completamente diferente. Não dava para não se emocionar. A longa descida do outro lado deu direito a paradas para relaxar e apreciar tudo ao redor. Só queria me voltar e contemplar o paredão de rocha negra, coberto parcialmente de neve. Era qualquer coisa de especial. Mais abaixo, o verde voltava com toda a força, flores amarelas, brancas e amarelas, sobretudo as de miolo amarelo e pétalas azuis, diâmetro de menos de um centímetro, brilhantes nos gramados inclinados. A vegetação crescia no porte, surgiam pequenos bosques de árvores com troncos dourados, rios com corredeiras. À frente e à direita erguia-se nova cadeia de montanhas.
continua...

2 comentários:

  1. ....A estrada se afastou do litoral e iniciou a lenta e constante subida da cordilheira. O visual permanecia de areia, rocha, pequenos vilarejos miseráveis da cor do deserto, cortados por impressionantes vales férteis com milho dourado e temperos coloridos estendidos sob o sol....
    Não há como deter minha imaginação, ela viaja junto com seu relato. Obrigada.

    Continuo na Cordilheira Blanca...espero não congelar. rsrrs Abraços.

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  2. Obrigado pelo comentário, Ivete.
    Não se preocupe, não vai congelar, não, embora eu tenha pegado uma baita frio lá em cima. Qualquer coisa, um golinho de Pisco peruano, e tudo ficará bem.
    Abraços!

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