...continuação
A caldeira do hotel de Águas Calientes estava desligada e
a água quente terminou em minutos. Só mais tarde consegui tomar banho e remover
os cascões, sebos, sujeira grossa e fina. E parte das lembranças dos quatro
dias na Trilha Inca. Fomos aos banhos termais, ao ar livre, em piscinas
rústicas, a maior contando com gostosa água quente. Não era permitido nadar ou
mergulhar nas águas quentes e sulfurosas, apenas boiar e relaxar. A temperatura
beirava os 35 graus, amortecendo os músculos, causando sonolência, preguiça.
Valia a pena, apesar de apinhada de turistas.
Jantar em restaurante agradável e bonito, mas caro e onde
a comida era apenas pequena decoração. Minúsculos pedaços de bife, legumes e
salada verde mal cobriam o fundo do prato. O sabor agradava o que fazia a fome
ir às alturas. Bastante pisco, muitas risadas de tudo e de todos. Voltei ao
hotel e desabei na cama. Sono mais que merecido.
Novamente o ônibus subindo a Machu Pichu para visitação
completa, como o lugar exigia. Nuvens espessas e úmidas forneciam clima
misterioso às ruínas. Machu Pichu continuava bela e fascinante. Acordamos bem
cedo para evitar, pelo menos no início da manhã, as hordas de turistas.
Circulavam rumores de fechamento de Machu Pichu para o turismo. Construções
danificadas, paredes e muros deslocados apareciam como causas principais.
Nesses momentos, as tais organizações internacionais, as ONG´s, sumiam do mapa
ou se submetiam às pressões do turismo predatório.
Arguto e crítico professor de história, o guia local
explanou com toda a calma e paciência sobre o mau uso que os invasores europeus
faziam da história do “descobrimento” de Machu Pichu. Esclareceu os equívocos
preconceituosos e arrogantes dos espanhóis e da maioria do ocidente frente à
cidade e sabedoria dos Incas. Sempre afirmava com orgulho que pisava a terra
dos avós. E que os demais guias fizessem o mesmo para os turistas provenientes
de países invasores.
De volta a Águas Calientes, almoço em restaurante ao lado
da ferrovia, sobre antiga plataforma de carga e passageiros. Comida farta e
saborosa em local inusitado.
Embarque no trem rumo a Cuzco, onde haveria jantar de
despedida com os receptivos da cidade. O grupo caía de sono e cansaço. Forramos
o bucho, nos despedimos da maneira mais educada possível e voltamos ao quarto
do hotel. Ainda teríamos que arrumar as bagagens, acordar cedo no dia seguinte,
tomar rapidamente o café da manhã e pegar o voo para Lima. Não via a hora de
poder parar, relaxar, dormir, coçar o saco, descansar, não fazer nada.
O companheiro de quarto passou mal durante noite curta.
Vomitou, cagou tudo e mais um pouco. A expressão do rosto dele não poderia ser
mais desanimadora. Acordei zonzo e sonolento. Comi pouco no café da manhã antes
de correr para o aeroporto.
Em voo rápido para Lima, visão de mais picos nevados dos
Andes. O colega enfermo nada viu e permaneceu apagado durante o percurso. O
furgão do receptivo esperava. O adoentado cambaleava de fraqueza e mal
carregava as mochilas. Ao atravessar o estacionamento do aeroporto, parou de
repente e fez sinal de quem esquecera algo para trás. Largou a bagagem no chão
e saiu correndo. O intestino dele dera o sinal de emergência. Por duas vezes
foi ao banheiro dali antes de seguirmos. E o restante do grupo debochava e ria
muito. Compramos remédios em Lima e lá fomos nós Andes acima.
A rodovia começava no litoral peruano, extremidade norte
do deserto do Atacama, entre morros de areia e deserto puro. Poucos e pobres
vilarejos se alinhavam nas margens da estrada. Parada para almoçar na feia e
cinzenta cidade de Barrancas, perto do mar.
A estrada se afastou do litoral e iniciou a lenta e
constante subida da cordilheira. O visual permanecia de areia, rocha, pequenos
vilarejos miseráveis da cor do deserto, cortados por impressionantes vales
férteis com milho dourado e temperos coloridos estendidos sob o sol. Ouvíamos
música popular peruana no toca-fitas do furgão. O colega doente permanecia
apagado e deitado no banco traseiro, com expressão desoladora. Nada comia e
tudo expelia nos banheiros. Sonolento, raramente acordava, se deitava de
barriga para cima, abraçado à garrafa plástica com o líquido vermelho comprado
na farmácia em Lima. Parecia desmaiado, mas não largava a garrafa plástica. A
cena dele deitado e agarrado ao líquido vermelho não deixava de ser engraçada.
Não dava para evitar os risos e as gargalhadas, ainda mais pelo motorista
chamado Leiba. Somente a coincidência poderia explicar a tragicomédia de termos
um colega com diarreia junto ao motorista com nome de laxante.
A estrada não parava de subir. Perfilava escarpas
rochosas, cruzava pontes sobre abismos sem fim. A temperatura despencava e
precisamos fechar as janelas do furgão. Cruzamos o passo a 4.100 metros de
altitude, ao lado de uma lagoa. Surgiram os primeiros picos nevados do Calejon
de Huyalas, da cordilheira Blanca. As rochas de coloração avermelhada, as
nuvens, a lua quase cheia, desenhavam cenário impressionante no fundo do
horizonte. Descemos para apreciar a paisagem da lagoa, mas o vento cortante nos
levou de volta ao furgão.
Parada para tomar chá de coca em bar no vilarejo de Catac.
O ambiente era para lá de simples. As mulheres que nos atendiam se assanharam.
A mais jovem delas, com fortes traços indígenas, perguntou o estado civil ao
guia. Entristeceu-se quando ouviu “casado”, repetindo que o achara muito
bonito. O enfermo nada percebia e se mantinha fora do ar. Apenas entrava nos
banheiros ou se deitava no banco do furgão agarrado à garrafa de plástico com
líquido vermelho.
À tarde em Huaraz, a 3.100 metros de altitude, hospedagem
em pousada familiar, simples e simpática. A visão parcial das montanhas
nevadas, com a luz refletida pelo luar, aumentava as expectativas. Cansados,
sonolentos e sem vontade de fazer nada, jantamos rapidamente, voltamos à
pousada a fim de dormir cedo e acordar tarde. Precisávamos e merecíamos.
Maravilhoso dormir bem e bastante! Quatro cobertores e o
silêncio necessário garantiram sono profundo e reconfortante. Acordei bem
tarde, tomei banho demorado e desci para o café da manhã servido em mesa
redonda no quintal da casa. Apreciei o céu azul, o sol, os picos nevados da
parte norte da cidade, aumentando ainda mais o apetite e a disposição. Entre
pães frescos, sucos de laranja da própria fruta e demais quitutes, enchemos o
bucho, conversamos, nos descontraímos. Sentíamos que a energia voltava junto à
alegria e à disposição.
Circulada de leve e sem pretensões pela cidade. De tamanho
médio, Huaraz passara por vários terremotos. Estava meio destruída, meio em
reforma, meio em reconstrução. Lajes, cabos de aço, tijolos, cimento à vista,
pedreiros para lá e para cá. Por outro lado, envolvia pela simpatia do povo,
naturalmente acolhedor, sem o assédio comercial de Cuzco. Havia turistas na
cidade, mas em número reduzido, e de outro tipo, mais voltados às escaladas e
longas caminhadas. Paravam pouco na cidade, indo diretamente às montanhas. As
agências de turismo e as lojas de equipamentos especializados, para compras ou
aluguel, eram simples, pequenas, informais, assim como o atendimento.
De praticamente todos os pontos da cidade era possível
contemplar as montanhas nevadas que se erguiam ao norte, sobretudo os dois
cumes do Huascaran, os mais altos do Peru e que dão nome ao parque nacional.
Novamente noite bem dormida. Levantamos tarde para tomar o
saboroso e abundante café da manhã. Visando a aclimatação, caminhada à lagoa
Shurup, situada a 4.500 metros de altitude. Em toda a trilha eu parava e contemplava
as montanhas nevadas que se elevavam de todos os lados, inclusive o dramático
paredão do pico Shurup, mil metros acima das águas esverdeadas da lagoa. Lanche
e relaxamento em meio à bela paisagem. O sol se inclinara, aumentava a sombra e
o frio.
Um europeu lavava roupas no quintal durante o café da
manhã. Pegou uma faca da mesa de refeições para abrir o saco do sabão em pó. Usou,
limpou com o guardanapo, a largou sobre a mesa novamente. Não pediu, não se
desculpou, não agradeceu, nem sequer olhou na cara.
Acompanhamos de perto os últimos preparativos do grupo de
apoio com os itens de alimentação e equipamentos coletivos para a travessia.
Quatro galinhas vivas e gordas foram acondicionadas em caixas de madeira.
Seriam mortas e cozidas na trilha. Botijões extras de gás também constavam da
carga.
A estrada cruzou vários vilarejos, sempre com o vale e a
cordilheira Negra, sem neve, à esquerda, e a cordilheira Blanca, nevada, à
direita. Os dois cumes, norte e sul, do Huascaran, de tão próximos, pareciam
tocar nossas mãos. Plantações de milho, frutas, trigo se estendiam pelo vale. Passamos
pela vila de Yungai, reconstruída mais abaixo depois da original ter sido
completamente soterrada por parte do pico Huascaran durante o terremoto de
1970. Morreram cerca de 20 mil pessoas e a maioria dos corpos ainda estava lá,
debaixo da enorme quantidade de material deslizado. Na montanha faltava uma
fatia no formato de pedaço de bolo. Paramos na aconchegante cidade de Caraz e
sentamos na praça para acompanhar o movimento dos moradores. Depois seguimos
por estrada de terra, estreita e sinuosa, serra acima, com abismos muito
próximos, até o ponto inicial da travessia de sete dias pela cordilheira
Blanca. As casas contavam com banheiros externos, todos azuis, todos iguais,
todos com fossa.
Iniciamos a caminhada no meio do dia. Passamos pelo posto
de controle do parque nacional. Avançamos por garganta estreita e profunda. Subimos
pela margem do rio encachoeirado, cujo envolvente ruído nos acompanhava todo o
tempo. Riachos e pequenas quedas d’água surgiam dos paredões à esquerda e à
direita. No final da tarde, o gramado extenso de Llama Coral, a 3.800 metros de
altitude, o primeiro ponto de acampamento. Acima do vale, as primeiras montanhas
nevadas.
Dividíamos barracas mais amplas e confortáveis que na
Trilha Inca. Um brasileiro recém-incorporado ao grupo e a gaúcha se enganchavam
desde Huaraz e se ajeitaram na mesma barraca. Jantamos sopa de verdura e
legumes, truta com batata e arroz, salada de frutas, vinho tinto e muito chá,
sempre servido antes e depois das refeições.
Acordei mais cedo que o grupo, ainda antes do sol bater na
barraca. Uma aura brilhante formava-se atrás das montanhas, vale acima,
configurando efeito luminoso impressionante.
A trilha seguia entre escarpas rochosas elevadas de ambos
os lados, impedindo a visão das principais montanhas. Raras pontas brancas
surgiam acima dos paredões acinzentados. As quedas d’água do degelo se
sucediam. Banheiros de alvenaria em formato circular apareciam próximo às
trilhas. Dezenas de aves e pássaros acompanhavam, com destaque para os patos
brancos e marrons. Surgiu lagoa grande, calma, de águas esverdeadas, em cuja
margem paramos para comer, descansar, contemplar. Mais acima o vale ameaçava se
abrir e descortinar a cadeia de montanhas.
Após a lagoa, mais um longo trecho plano, alagadiço. Depois,
pequeno bosque em declive e as montanhas se revelavam de ambos os lados. Leve
almoço no gramado, na base de salada de frango com legumes, abacate e pão. Encerrou
com laranja e bastante chocolate.
A trilha vicinal rumo ao campo base do pico Alpamayo seguia
por subida muito íngreme, mas para lá de compensadora. Do outro lado do vale,
às minhas costas, se elevava imponente montanha toda branca pelo gelo e neve.
Era o tipo de imagem que valia por toda a viagem. Parada pouco antes do campo
base a fim de apreciar a face sul da montanha. Sentamos, relaxamos, observamos
grupo de escaladores a caminho do cume. O guia, que escalara a maioria das
montanhas, diversas vezes, afirmava que o Alpamayo era a montanha mais
procurada pelos escaladores pelas dificuldades técnicas. O Huascaran ganhava
disparado em acidentes devido a constantes avalanches.
Outra trilha atingiu o local de acampar. Taulipampa, a
4.150 metros de altitude, era deslumbrante. Enorme montanha nevada se erguia
bem na cara. Ainda não anoitecera. Tomei coragem e lavei os pés, braços, rosto,
nuca, orelhas, nas águas geladas do rio. Entramos na barraca-refeitório para
fugir do frio intenso do lado de fora. Para esquentar, chá e queijo. Jantei sopa
de cebola, carne com brócolis, couve flor e batata. Mamão com limão e açúcar
estrelou na sobremesa.
Gelou durante a noite e madrugada. A temperatura atingiu 7
graus negativos. Embora resistisse o máximo possível, levantei e saí da barraca
para urinar. O corpo e os membros pareciam congelar de tanto frio. Mas o visual
das montanhas ao redor, prateadas e refletindo o luar, fazia esquecer qualquer
desconforto.
Iniciamos cedo para encarar a trilha longa e bem íngreme
até o passo. O vento raramente dava tréguas e o frio castigava sem dó. Mesmo
sob o sol, a temperatura jamais superava os 8 graus, sem falar na sensação
térmica pelas rajadas geladas. A subida firme não deixava por menos e exigia
bastante dos pulmões e pernas. As providenciais paradas para apreciar a
paisagem restauravam as energias. Assim que ganhávamos altitude, mais montanhas
apareciam, cada vez mais próximas. Outra lagoa de águas esverdeadas se exibia
no pé da geleira.
Atingimos o passo da crista montanhosa, Punta Union, a 4.750
metros de altitude. A visão de ambos os lados hipnotizava pela beleza. Optamos
pelo lanche naquele ponto privilegiado. De todos os lados os olhos se
encantavam com o que viam. Montanhas nevadas, escarpas rochosas de cor negra,
geleiras, picos cônicos, lagoas, vales profundos, blocos de rocha cinzenta.
Mesmo depois de encher a pança e recuperar as forças, não queria deixar aquele
paraíso. Nem me importava com os ventos gelados provenientes de ambos os lados.
Os casacos protegiam. Qualquer cansaço, frio, desconforto ou falta de banhos ia
para o espaço diante daquela pintura.
A passagem exata pela crista da montanha se constituía
de corredor estreito entre paredes verticais de rocha pura. Era como se
deixasse um mundo e entrasse em outro, completamente diferente. Não dava para
não se emocionar. A longa descida do outro lado deu direito a paradas para
relaxar e apreciar tudo ao redor. Só queria me voltar e contemplar o paredão de
rocha negra, coberto parcialmente de neve. Era qualquer coisa de especial. Mais
abaixo, o verde voltava com toda a força, flores amarelas, brancas e amarelas,
sobretudo as de miolo amarelo e pétalas azuis, diâmetro de menos de um
centímetro, brilhantes nos gramados inclinados. A vegetação crescia no porte,
surgiam pequenos bosques de árvores com troncos dourados, rios com corredeiras.
À frente e à direita erguia-se nova cadeia de montanhas.
continua...
....A estrada se afastou do litoral e iniciou a lenta e constante subida da cordilheira. O visual permanecia de areia, rocha, pequenos vilarejos miseráveis da cor do deserto, cortados por impressionantes vales férteis com milho dourado e temperos coloridos estendidos sob o sol....
ResponderExcluirNão há como deter minha imaginação, ela viaja junto com seu relato. Obrigada.
Continuo na Cordilheira Blanca...espero não congelar. rsrrs Abraços.
Obrigado pelo comentário, Ivete.
ResponderExcluirNão se preocupe, não vai congelar, não, embora eu tenha pegado uma baita frio lá em cima. Qualquer coisa, um golinho de Pisco peruano, e tudo ficará bem.
Abraços!