quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Uzbequistão e Turquia (parte 8/8)

...continuação
Cruzei a porta da fortificação murada e entrei no complexo de ruínas pertencentes à Ani, antiga capital da Armênia e datada de cerca de mil anos. A cidade que chegou a abrigar cem mil habitantes foi abandonada e estava completamente deserta. Somente meia dúzia de turistas isolados perambulava pelas trilhas. Erguidas espaçadamente na ampla área da cidade murada, as construções apresentavam diferentes estágios de conservação.
Me perdi durante horas pelos caminhos que levavam de uma construção a outra, analisando carinhosamente uma a uma, não deixando de contemplar a garganta profunda pela qual corria riacho sinuoso e de águas nervosas, compondo acidente geográfico que dividia a Turquia da Armênia. Andei livremente, sem pressa e sem o roteiro pré-definido das páginas dos guias previsíveis. O tempo ajudava, nem frio, nem calor.  
Além das construções levantadas em escarpas improváveis, quase despencando paredão abaixo, me atraíram as duas igrejas de São Gregório, contendo afrescos e relevos ainda visíveis, além do Caravançarai, da Mesquita e da Catedral. O castelo, situado na extremidade alta e oposta ao portão de entrada, se resumia a escombros. Dali, visão panorâmica e completa de Ani, através da qual se poderia recompor na mente e no espaço a disposição de cada uma das construções, dos resquícios das muradas, do rio correndo veloz no vale profundo e contendo também ruínas da ponte de pedra, da desolação do lado armênio, da antiga e pequena igreja armênia inacessível e erguida acima da escarpa rochosa vertical, de outros vales ressecados e ocupados por rebanhos conduzidos por pastores que cantavam e gritavam. Eu e a companhia somente da paisagem, das ruinas históricas, do sol tépido, do vento incessante.
Como parte da antiga Rota da Seda durante séculos, de acordo com a placa indicando a trilha original, Ani funcionou com ponto de parada e reabastecimento, de trocas comerciais, culturais, filosóficas, religiosas, e outros tantos intercâmbios em ambos os sentidos, entre os povos ocidentais e orientais.
Do lado de fora, o motorista me aguardava numa improvisada casa de chá. Ambos para lá de famintos nos dirigimos à cidade de Kars, onde entramos em restaurante de esquina em que o proprietário e o único garçom exibiam expressões sonolentas. Comi bastante e bem, depois de escolher entre os pratos sob o balcão de vidro. Muitos pães, inclusive um longo, delgado e acinzentado, mais parecendo tecido de algodão de tão fino.
Andei sozinho pelos arredores do centro de Kars, por entre ruas comerciais e becos calçados de pedra. Casario antigo, muitos de origem russa, outros mesclados por influências armênias, persas, georgianas, da virada dos séculos XIX e XX, muitas das vezes utilizando rochas escuras nas paredes internas e externas. Mesquitas diversas, igrejas armênias exibindo o tradicional formato cilíndrico e de cúpula cônica, ladeiras com casas caindo aos pedaços que levavam aos altos da cidade, em cujo topo se erguia o castelo de Kars. Cafés, casas de doces, restaurantes, lojas de queijos e mel, a maioria bem decorada e prestigiada pelos moradores, se distribuíam pelas ruas centrais refletindo a variedade de culturas que a influenciaram ao longo da história.
Mais uma noite bem dormida sob o silêncio do hotel e da cidade.
No salão do café da manhã estava um grupo de europeus loiros. O que mais chamou a atenção, no entanto, foi o cheiro horrível que exalava do corpo deles. Um odor azedo, profundo, de vários dias ou semanas sem banho e troca de roupas. Fediam pavorosamente. O ambiente do salão, fechado pelo frio externo, beirava o insuportável. Assim que quatro turcos hóspedes entraram e sentiram a pestilência do salão, imediatamente franziram o cenho e tamparam os narizes. E abriram uma das janelas, justamente a mais próxima dos europeus fedorentos. O ar gelado e desconfortável do começo da manhã era infinitamente mais tolerável que a fedentina dos gringos provenientes do assim chamado primeiro mundo civilizado. Ao deixarem o salão, o mau cheiro começou a se dissipar, aliado à entrada de ar frio e fresco pela janela. Eu e os turcos respiramos aliviados e pudemos comer em paz, sem o risco de vomitar.
A partida de Kars ocorreu sob o céu nublado. À medida que a rodovia avançava para o oeste, subindo gradualmente o relevo, o céu começou a escurecer. No planalto, perto do acesso a Keçivan, a chuva caiu e irrigou naturalmente os campos sem fim em fase de semeadura da primavera. Junto com a chuva, a queda brusca da temperatura, forçando o fechamento das janelas do carro e o acionamento do aquecedor.
A viagem continuou por vale estreito e profundo, cercado por escarpas rochosas que afunilavam as águas do rio correndo ao lado esquerdo. Após o trevo para Sarikamis a chuva cessou, o relevo baixou gradualmente e a temperatura começou a amenizar.
A rodovia cruzou a cidadezinha de Horasan pela rua principal, movimentada pelo comércio e pelas inúmeras casas de chá, em frente das quais senhores sisudos e vestidos de cores escuras bebiam um copo atrás do outro, sempre dedilhando as contas na mão entre orações mentais, silenciosas, sussurradas.
Montanhas nevadas abauladas, sem cumes agudos e pronunciados, irrompiam em cada nova subida do relevo. E apontou no horizonte a cidade de Erzurum. O céu escurecia, as nuvens engrossavam e baixavam, ameaçando tempestades. Mesmo assim, abri bem as janelas do quarto do hotel para afastar o odor de cigarro impregnado.
Eu e o curdo andamos por ruas e avenidas na busca do típico prato de Erzurum, o cag kebap, preparado com carne de carneiro. Comemos muito e bem em restaurante decorado alegremente, cujas mesas externas se dispunham debaixo de tendas de madeira, contando com assentos atapetados e estofados e com o privativo samovar para tomarmos o chá.
A peça do carneiro era grelhada em fogo baixo ao redor de espeto alongado. Exceto pela posição horizontal da carne, o procedimento e o visual lembravam o famigerado churrasquinho grego de São Paulo e região. O gosto empolgou demais. As entradinhas do meze, entre iogurtes, pastas disso e daquilo, apimentadas na medida certa, arrombaram o apetite já aberto. E veio também a tigela repleta com o pão regional, alongado, largo, macio e finíssimo tal tecido de algodão. Para hidratar, água e copos de chá preto.
Erzurum se mostrava mais conservadora nos costumes que as demais cidades turcas pelas quais eu passara. Era menor o número de muçulmanas não praticantes. Menos mulheres com os cabelos e rostos descobertos. Aumentara a quantidade daquelas com rostos cobertos parcial ou totalmente, além dos mantos de cores leves, sobre a cabeça e os cabelos. E mais mulheres vestidas inteiramente de roupas pretas, compridas e largas, a fim de tapar tudo, deixando apenas a linha estreita para os olhos.
De expressões e posturas mais sisudas, os homens se vestiam de roupas escuras, tendo às mãos as inseparáveis contas de oração. Muitos se deixavam ficar horas e horas dentro das espartanas casas de chá, conversando em grupos, quietos com olhares parados, rezando em pensamento ou aos sussurros e, é claro, tomando sucessivos copos de chá preto. O costume dos homens andarem de braços dados se mantinha em Erzurum. O mesmo ocorria com os beijos nas duas faces do rosto quando eles se encontravam ou se despediam.
A despeito da aparência mais rigorosa, elas e eles se mostravam prestativos e acolhedores. Sorriam sempre aos encontros e despedidas. Em todas aquelas semanas pela Turquia, jamais me senti hostilizado ou mal tratado diante de nenhuma mulher ou homem, jovem ou adulto. Muito pelo contrário, os turcos e as turcas deixariam saudades pelo carinho, educação e simpatia.
Embora houvesse trabalhos de restauração nos principais monumentos históricos, como na madraça Çifte Minaroli, por exemplo, o casario antigo da parte velha da cidade estava sendo posto abaixo. Avistei sobrados abandonados, outros queimados ou em ruínas, a maioria faltando portas, janelas, paredes.
A modernização deliberada da Turquia, fato notado em várias cidades do interior e até mesmo nas imediações do bairro histórico de Sultanahmet em Istambul, vinha imposta, sem qualquer consulta ou debate com as populações afetadas. Como nos demais países da periferia do capitalismo, as demolições do antigo e as construções do novo atendiam ao grande capital financeiro de mãos dadas com o setor imobiliário. Do jeito que a coisa andava, pouco ou nada sobraria. Em futuro próximo, a Turquia contaria com ilhas de patrimônio histórico, dos quais a indústria do turismo aufere lucros astronômicos não revertidos para a população, mas cercadas por cidades modernizadas, padronizadas, sem personalidade. Os turistas em hordas visitariam as atrações turísticas isoladas, separadamente, e voltariam aos respectivos países sem qualquer contato com a Turquia real, com o povo e a cultura turca.
Problema social e cultural que não se restringe à Turquia e ao povo turco. A situação se repete pelo mundo afora. Em graus e ritmos distintos, mas está praticamente em todos os lugares.
E fez lembrar o instigante documentário A Síndrome de Veneza, exibido em festival de cinema em São Paulo. Embora não haja, por enquanto, previsões de demolições do casario veneziano, a busca do lucro a qualquer preço, o mercado imobiliário e a indústria predatória do turismo também têm implicado em sérios danos à população local. O documentário defende a tese de que o acelerado processo de fuga forçada dos moradores originais, em função da alta dos preços e da especulação imobiliária, transformará Veneza em cidade cenográfica antes de 2023. Uma Veneza sem venezianos. Veneza deixaria de ser uma cidade viva, mas apenas cenário de visitação.
Depois de cortar a planície fértil ao norte de Erzurum a rodovia começou a subir. À medida que aumentava o relevo, a temperatura diminuía e o vento gelado se acentuava. A estrada atingiu o topo no passo Kop Geçidi. Placas de neve cobriam a montanha árida e se aproximavam do leito da rodovia. Fora do carro e da casa de chá onde nos refugiamos fazia um frio terrível agravado pelo vento incessante. Os cachorros dos arredores nem pareciam sentir as baixas temperaturas, perambulando ou dormindo tranquilamente ao ar livre. Os copos de chá e o ambiente interno amenizaram o frio externo.
Pouco após o passo e estrada desceu lenta e sinuosamente. Depois de cruzar Bayburt, cidade guardada pela fortaleza no topo do morro, a estrada, entre altos e baixos do relevo, alcançou Gumushame, vila encravada no fundo do vale e cercada por escarpas rochosas.
Mais um passo, o Zigana Geçidi, a partir do qual a rodovia em obras desceu vertiginosamente, cortando vários túneis recém-construídos e serpenteando zonas úmidas, com florestas temperadas e muito verdes, casas esparsas posicionadas nas encostas, riachos com corredeiras.
Paramos para comer em restaurante simples e eficiente na beira da estrada com vista para as montanhas verdejantes. Fomos de carne de carneiro e koften grelhados, acompanhados de salada e cesta de pães abundantes e variados.
Mais abaixo, a vila de Maçka, onde dobramos rumo ao mosteiro de Sumela, via estradinha sinuosa e margeada por bosque de pinheiros, montanha acima, ao lado de riacho encachoeirado. O caminho ziguezagueava ao longo de vale estreito e profundo, entre curvas fechadas e precipícios, cruzando pontes frágeis, até o limite. A partir dali, somente a pé até o mosteiro.
O mosteiro de Sumela, construído por religiosos gregos no século X, e abandonado em 1923, quando da fundação da república da Turquia, foi erguido em posição improvável e espetacular na parede vertical da rocha, num claro desejo de isolamento de tudo e de todos.
Dentro, apenas a capela principal chamou a atenção, coberta de afrescos coloridos com temas religiosos, entre santos, cenas, textos, objetos sagrados. Infelizmente tudo estava violentamente depredado por turistas irresponsáveis e, conforme informações recebidas, por militares estadunidenses, sempre eles, durante exercícios militares na década de 1960.
Após a descida emocionante e não menos espetacular que a subida, e a passagem pelo vilarejo de Maçka, de volta à rodovia principal serra abaixo.
As ruas e avenidas de Trabzon surgiram ao entardecer. Fui esticar as pernas pela cidade na margem do Mar Negro. Mas nada atraía na beira nas águas. Largas e extensas avenidas, incluindo aí um minhocão ou viaduto longitudinal às vias e paralelo ao mar, verdadeiras aberrações urbanísticas, isolavam a população das águas marinhas.
Sob o céu nublado com chuviscos intermitentes visitei o museu da Aya Sophia que, assim como o homônimo em Istambul, já foi igreja cristã e mesquita.  A construção, pequena e charmosa, se erguia sobre colina com vistas para o Mar Negro.
Enchi o bucho com lamahcum e me hidratei com ayran em estabelecimento tocado pelo comunicativo e fanático torcedor do Trabzon, time de futebol muito popular na região. Pena que eu não falava e nem entendia turco.
Ao contrário da conservadora Erzurum, a cidade de Trabzon exibia leveza e descontração na aparência geral dos moradores. Claro, lá estavam eles e elas praticantes do islamismo, vestindo roupas indicativas. O jeitão geral, porém, apontava para o contrário. O urbanismo ao longo das encostas das colinas, em direção ao mar Negro sem praias, abrigava gente que também queria viver e se divertir livremente, se vestindo e se comportando mais ousadamente, pouco se importando com os ditames de comportamento religioso.
Acordei bem cedo para pegar o voo de volta a Istambul. Enganei o estômago sem café da manhã com um simit fresquinho e vendido próximo ao portão de embarque.
Fazia calor suave em Istambul, denunciando o avanço da primavera. As barraquinhas de castanhas assadas dos meses anteriores iam dando lugar às de melancias cortadas. Parecia impossível, mas Istambul no início do mês de maio estava mais cheia de turistas do que em março e abril. Mal se podia andar pelas ruas e becos de Sultanahmet. Os rebanhos de turistas eram vomitados dos ônibus, todos com as câmeras fotográficas nas mãos, armadas para disparar e registrar qualquer coisa que aparecesse pela frente, de qualquer maneira. Na verdade, mais se fotografavam próximos às atrações turísticas. Estas funcionavam apenas como pretextos ou cenário para poses e sorrisos previsíveis. E tudo rápido, muito rápido, pois o guia, hasteando a bandeirola de identificação, os tocava para seguir em frente a fim de ticar na lista a próxima atração do roteiro.
Me despedi da noite de Istambul dando uma caminhada sem pressa pela praça do Hipódromo, de onde se tinha visão privilegiada das colunas milenares dos conquistadores de Bizâncio e Constantinopla, da mesquita de Sultanahmet (Azul), da Aya Sophia, ambas charmosamente iluminadas.
Voltei ao hotel para madrugar na manhã seguinte.
Ainda estava escuro quando entrei na plataforma do bonde, que me levaria ao metrô e este ao aeroporto.
Encontrei o casal que viajara comigo pela Anatólia ocidental no acesso ao controle de passaportes. A fila quilométrica ziguezagueava pelas cordinhas de segurança. Muitos selvagens do chamado “mundo civilizado”, todos loiros e de olhos azuis, a furavam descaradamente, diante da complacência de alguns e a indignação de outros.
O voo correu tranquilo. Aproveitei para detonar o Ópera dos Mortos, de Autran Dourado. Li o livro de ponta a ponta entre as refeições, uns breves cochilos, providenciais esticadas de braços e pernas. Virei a última página antes do pouso em São Paulo no começo de maio.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Uzbequistão e Turquia (parte 7/8)

...continuação
Eu e o motorista curdo margeamos a borda sul do lago Van, nos aproximando cada vez mais das montanhas nevadas. Em cais na beira do lago, peguei barco para a ilha Akdamar. Desembarquei no terreno pedregoso e acidentado da ilha, em cuja encosta da colina se elevava a igreja cristã da Cruz Sagrada, erguida pelos armênios havia mais de mil anos.
Nas paredes externas da igreja, entalhadas diretamente na rocha, relevos de animais, personagens bíblicos, cruzes, figuras abstratas. Ao explorar as paredes e as abóbodas internas, afrescos gastos pelo tempo e a ausência de conservação chamaram a atenção logo de cara.
E a vista desde a ilha era de cair o queixo. As cadeias de montanhas para além da margem do lago, todas cobertas de neve, prendiam o olhar. Pequenas enseadas de pedras e areia grossa cortavam o entorno insular tocando as águas frias do lago.
Os barcos percorriam as águas naquele fim de semana de sol, trazendo e levando turistas regionais. Num deles, turcas ou curdas, muçulmanas praticantes e vestidas com mantos e roupas compridas em tom pastel, parecendo uniformizadas, lotavam o convés superior.
De volta à margem sul do lago, lá estava o curdo conversando com amigos e parentes no restaurante ao lado da estrada, especializado em peixe endêmico do lago Van, e também o único representante animal daquelas águas.
Os peixes pequenos e saborosos vieram acompanhados de arroz colorido, picles, salada e, como de praxe, muito pão. Auxiliei a digestão com dois copos de chá preto, sempre ele, sempre bem-vindo.
Ao voltarmos para Van, paramos no vilarejo de Gevas onde ele se encontrou com a esposa para ajeitar as coisas para a viagem. Visões deslumbrantes e mais próximas das montanhas nevadas, ao pé das quais se erguiam as casas ao longo das ruazinhas da vila.
Segundo o motorista, a situação dos curdos nos últimos anos ficou menos tensa. Somavam cerca de vinte e cinco milhões de pessoas na Turquia, a maioria absoluta se comparada aos residentes no Irã, Iraque, Síria, Palestina. Podiam se manifestar culturalmente, dentro de certos limites. Ouviam estações de rádio transmitidas em curdo. Liam livros e jornais editados em curdo, e assim por diante. A atividade guerrilheira dos separatistas curdos caiu de intensidade e praticamente não havia ações agressivas de ambos os lados, do Estado turco e das organizações curdas.
A rodovia no sentido sudeste levava às fronteiras oficiais da Turquia, uma com o Irã e outra com o Iraque. Contando com relevo acidentado, cercado de montanhas nevadas, especialmente ao sul, a terra se tornava cada vez mais seca e acastanhada quanto mais o veículo avançava.
As ruínas de Çavustepe abrangiam o antigo palácio de Sarduri, o rei dos urartus e originados da antiga Armênia, construído dois mil e oitocentos anos antes sobre os altos da colina. O povo urartu habitava áreas que abrangiam o planalto armênio, territórios que passaram a pertencer à Armênia, Geórgia e Turquia. O sítio revelava resquícios da base do palácio, contando com blocos de basalto contendo inscrições cuneiformes, porões para armazenar água e comida, partes de muralhas e paredes internas. A vista panorâmica dos vales, vilarejos, plantações, rebanhos de ovelhas, bem abaixo, e das cadeias de montanhas nevadas ao sul, de escarpas de rochas acastanhadas ao norte, compensou a subida.
Retomamos a rodovia até Guzelsu, vilarejo quase desértico contando com construções pardas em adobe, a mesma coloração das colinas ao redor. No topo do mais alto e íngreme dos morros, se elevava as ruínas do castelo Hosap, erguido pelos curdos no século XVII.
Em processo de restauração, a edificação guardava portal de entrada ricamente decorado em rocha entalhada. Ultrapassando a pesada porta de madeira, em meio à escuridão total, acessei a escadaria ascendente e em curva rumo ao pátio principal. Lá, torres, muros altos de pedra, outros de adobe, ameias a partir das quais se tinha vista privilegiada do vilarejo.
O vilarejo de Guzelsu, onde tomamos vários chás ao lado de senhores narigudos e bigodudos, vestindo roupas pretas, conversando ou jogando uma espécie de damas, empolgou mais que o castelo em si. Talvez pelo jeitão empoeirado e desleixado, marca de parada fronteiriça, pelo entorno desértico e inóspito, pela autenticidade, pela despretensão em agradar.
À noite, tomei saborosa sopa de lentilhas, bem temperada e levemente picante, em local pequeno, básico, exclusivo de sopas. Sobre a mesa, enorme cesta de pães, vasilha com salsinha, cebola, pimenta em pedaços ou em pó. Ao final me foi servido água e chá. Tentei dialogar com o dono do estabelecimento, com o garçom, com outros clientes. Usei a cola de palavras turcas que carregava sempre comigo. Não evoluiu. Pena. Me despedi sorrindo. Eles agradeceram sorrindo. E que delícia de refeição ligeira em ambiente curdo, ou turco.
As calçadas e ruas enchiam de moradores passeando para lá e para cá, entrando e saindo de inúmeros e variados pontos para comer, beliscar, degustar, beber chá, ou simplesmente rezar ou jogar conversa fora naquele meio de noite fria.
De manhã visitei a primeira igreja armênia da região, datada de mais de mil anos, situada no alto de encosta montanhosa e nos arredores da vila curda de Sete Igrejas. O terremoto de 2011 castigou severamente o vilarejo pobre com casebres de adobe acastanhado e o governo turco forneceu caixas emergenciais do tipo contêiner aos desabrigados.
Vestindo calça de veludo estufada, o vizinho curdo abriu o cadeado da pesada porta da igreja para que eu pudesse perambular pelos interiores sob a penumbra dos tempos, parcamente iluminado por lâmpadas fracas, penduradas de maneira tosca e improvisada.
A impressionante igreja, com o mesmo nome da vila, também sofreu com o abalo sísmico, mas ainda impunha respeito, exibindo um portão imponente e entalhado na madeira e pedra, interiores com afrescos de santos, paredes de pedras entalhadas, inscrições armênias, cúpulas intactas ou parcialmente desmoronadas, labirintos escuros e em ruínas.
Descemos o morro e seguimos margeando o lado sul do lago Van, cortando relevo montanhoso sobre rodovias em bom estado, entre vales estreitos e profundos, neves nos cumes e cristas das montanhas, vilarejos esparsos e pequenos, pastores conduzindo ovelhas.
Na feia e cinzenta cidade de Tatvan, comemos o famoso buryan, pedaços de carneiro acompanhados de fatias de pão, tomate, cebola, pimentão. Cada um comia como desejasse, misturando tudo dentro do pão, ou beliscando cada item separadamente. Hidratei a comilança com ayran, iogurte acrescido de água e sem açúcar.
O preparo do buryan chamava mais a atenção do que o sabor em si. Introduzia-se praticamente o carneiro inteiro, pendurado em ganchos, no forno cilíndrico abaixo do piso da cozinha. O funcionário fechava a pesada tampa e deixava a carne por horas assando no forno. A refeição matou a fome em restaurante simples, básico, apertado, frequentado por moradores e trabalhadores em horário comercial.
O céu escurecia mais. Ventos e chuviscos começavam a fustigar.
A Tumba de rei Selçuk, isolada em terreno abandonado, era rodeada de casinhas precárias, das quais saíram crianças para nos seguir e nos observar passo a passo. Assustadas, mal falavam ou reagiam aos meus movimentos, apenas fixavam os olhos em cada detalhe do que fazíamos ou ameaçavam sorrisos contidos.
Mais à frente, o cemitério do povo Selçuk. Espalhadas por vasto espaço, as lápides e tumbas do cemitério, construídas a partir da rocha ocre escura, eram datadas dos séculos XIII e XIV. Verticais e inclinadas devido aos sucessivos terremotos ao longo do tempo, as lápides continham inscrições e escritas entalhadas diretamente na rocha, parcialmente encobertas pelo líquen amarelado.
Ventava bastante e fazia frio. O caminhar por entre túmulos de mais de seiscentos anos de idade surtiu um efeito macabro e fascinante, pela disposição das lápides verticais, deslocadas e inclinadas, sob o céu cinzento e ameaçador, tendo ao fundo as encostas nevadas.
Me hospedei em hotel escuro e vazio na cidade de Ahlat. O janelão do quarto abria para as águas da margem norte do lago Van e para as montanhas nevadas do lado oposto. O céu se mantinha baixo e nublado. A paisagem se iluminava de vez em quando, conferindo efeitos maravilhosos.
Escolhi a cama mais distante do aquecedor instalado sob a janela ligeiramente aberta. Entrou o som relaxante das águas do lago revoltas pelo mau tempo e batendo na murada logo abaixo. Do breu absoluto do lado de fora vinham roncos de trovões e faíscas de relâmpagos.
Amanheceu claro e ensolarado, diante das águas azuladas do lago Van, tendo ao fundo a linha de montanhas nevadas.
Saindo de Ahlat a estrada tomou o rumo nordeste. Desci para fotografar a montanha Suphan, cujo cume e encostas se cobriam de neve. Em seguida, o motorista entrou em área de lazer em reformas para conversar com colega. Ao voltar, adiantou que decidira rever o amigo antigo que recentemente fora solto depois de anos em prisão condenado por assassinato.
A rodovia cruzou as cidadezinhas de Adilcevaz, Patnos, Tutak. Depois de Agri, a cachoeira nas imediações de Diyadin, cujo entorno se entupia de lixo jogado pelos frequentadores e jamais recolhido pelas autoridades.
A paisagem começou a melhorar conforme a estrada subia drasticamente o relevo. Extensa área de lava vulcânica resfriada e solidificada, de coloração negra a castanho escura, servia de primeiro plano sob as encostas de vulcão inativo, cujo cume e encostas se cobriam de neve. E a rodovia subia mais e mais. A linha da neve se aproximou e pude ver camadas dela bem próximas do asfalto. A estrada atingiu o máximo de altitude. Blocos de neve, duros, brancos, cinzentos pela poeira, apareciam no acostamento e em depressões abaixo do leito da estrada. Em curva ascendente mais acentuada, desembarquei, de camiseta mesmo, sob o vento gelado. Nem senti o frio. Apreciei, contemplei, registrei aquela paisagem árida, gelada, estonteantemente bela do extremo leste da Turquia.
Após cruzar o passo, a estrada ziguezagueou violentamente montanha abaixo, perdendo altitude enquanto a neve ficava para trás e o vento amainava. Irromperam pastos esverdeados, rebanhos de ovelhas, minúsculos vilarejos curdos com casas retangulares erguidas a partir de pedra e barro, e de cujas chaminés centrais a fumaça exalava, garantindo que ali dentro todos se aqueciam devidamente e tomavam copos de chá bem quente.
As emoções, entretanto, estavam longe de terminar. Do outro lado do vale, ao lado de um vulcão cônico cortado por linhas de neve nas encostas íngremes, apareceu imponente nada mais, nada menos, que o monte Ararat, ele mesmo, o personagem de textos bíblicos, a montanha mais alta da Turquia, contando com mais de cinco mil metros de altitude.
No final do vale alongado e alargado, estava Dogubayazit, cidade a apenas trinta quilômetros da fronteira com o Irã.
Depois de instalados, almoçamos bem e bastante a saborosa comida curda. O meze precedeu divinamente os kebaps, entre saladas, iogurtes, pastas avermelhadas e picantes, pães enormes e sem fermento. A decoração interna do restaurante imitava castelos e lendas antigas sob a iluminação tênue de clube noturno. A comida, no entanto, farta, variada, deliciosa, me recobrou a alegria de viver.
O veículo cruzou o empoeirado e bagunçado centro de Dogubayazit, típica e instigante cidade fronteiriça. Percorrendo as últimas ruas da cidade, subiu as colinas das cercanias rumo ao topo árido e acastanhado de uma delas, sobre o qual se erguia o palácio Ishak Pasa. Ao redor, ruínas de outras construções seculares, mesquita, vilarejo minúsculo, plantações de legumes e verduras da comunidade curda.
Os entornos e arredores do palácio encantaram mais que o próprio, em questionável processo de restauração, descaracterizando o original. Tudo ficou muito certinho, ajeitadinho, limpinho. A primeira cobertura, danificada ou perdida, fora substituída por estruturas de metal e vidro. Portais, relevos e entalhes nas paredes rochosas, no entanto, salvaram a beleza original do complexo construído nos séculos XVII e XVIII, e que serviu de hospedagem e repouso para integrantes da antiga Rota da Seda.
Mantive no jantar o mesmo e excelente restaurante de comida curda no qual me deliciara no almoço. Dei volta a pé pelo centro desmazelado de Dogubayazit. O comércio aberto garantia intenso movimento de veículos e pedestres.
Amanheceu com céu azul e sol brilhante. Nada impedia a visão estupenda dos cinco mil e tantos metros de altitude do monte Ararat.
Caminhei pela estrada em frente ao hotel, a que segue à fronteira com o Irã, para contemplar e fotografar o Ararat. Nenhuma nuvem no céu azul e límpido. O cume nevado, as encostas nevadas, a base esverdeada da montanha mais alta da Turquia, se mostravam explicitamente, sem obstáculos ou retoques.
Partimos rumo à cidade de Kars. Logo no início da rodovia, mais paradas para apreciar e registrar dezenas de vezes o deslumbrante monte Ararat, resplandecente sob os raios de sol que atingiam diretamente o cume e as encostas da montanha. Compulsivamente eu pressionava o obturador da câmera na busca do enquadramento perfeito, do ângulo perfeito, da luz perfeita, das cores perfeitas.
A montanha ia ficando para trás à medida que a estrada avançava, cruzando os vilarejos de Igdir e Tuzluca. Campos arados para a semeadura de primavera e verão, rebanhos de ovelhas e gado, serrotes bizarros com estratificações coloridas, mais montanhas nevadas no horizonte, planícies e vales cultivados de um verde intenso.
Paramos para tomar chá em pequeno restaurante localizado exatamente na fronteira com a Armênia. Pude ver casinhas e postos militares de fiscalização da fronteira do outro lado do riacho correndo sob o vale profundo.
Depois do vilarejo turco de Digor, o veículo dobrou à direita em direção ao sítio arqueológico situado também na fronteira com a Armênia.
continua...

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Uzbequistão e Turquia (parte 6/8)

...continuação
Na Kapadokia (Capadócia), para além da cidade de Nevsehir, estava a vila de Goreme, um verdadeiro museu a céu aberto. Grutas de moradias, igrejas, comércios, cavados nas rochas vulcânicas, se aglomeravam no alto da colina, muitas delas guardando afrescos pintados com sangue de animais, representando figuras de São Jorge entre outros santos. As cavernas dos primeiros séculos depois de Cristo foram construídas pelos cristãos com o objetivo de se protegerem das perseguições do Império Romano, então ainda não convertido ao cristianismo como religião oficial.
Ao redor da colina, vales e mais vales com cavernas e grutas cavadas nas escarpas vulcânicas, abandonadas com o tempo e depois proibidas como moradias pelo governo republicano turco.
A vila ao redor da fortaleza de Uçhisar, reservando mais chaminés, grutas, cavernas, nas paredes vulcânicas, contava com centrinho com lojas vendendo produtos típicos da região.
As Chaminés das Fadas em Urgup permitiu deliciosas caminhadas sem rumo pelas trilhas sinuosas e irregulares por entre formações rochosas, cônicas e cilíndricas, contendo grutas e cavernas outrora habitadas. As formas alongadas e as coberturas naturais lembrando chapeletas nos impeliram a rebatizar o local para “Parque das Circuncisões”, em alusão à tradição muçulmana da circuncisão entre os meninos pré-adolescentes da Turquia. A cirurgia transformava os órgãos genitais masculinos do formato salsicha para o formato cogumelo, conforme expressões usadas pela própria guia que ficava bastante constrangida ao mencioná-las.
Antes de assistir à dança dos dervixes, um membro da seita enfatizou que não se tratava de apresentação artística, mas de oração, e que durante o ritual era proibido fotografar, aplaudir ou conversar. Somente após o encerramento, dois dos cinco integrantes rodopiariam para serem fotografados. Agradou pelo espetáculo visual, religioso ou não, a despeito da monotonia da evolução e também do cheiro azedo das roupas usadas pelos dervixes que giravam a centímetros da plateia, composta exclusivamente de turistas.
 Embora a maioria do povo turco seja muçulmana, o Estado é laico na Turquia. A religião é separada do Estado e, portanto, não institucional. Cada um professa as próprias crenças, ou nenhuma, desde que não se sobreponha às leis seculares da república, nem assedie os que pensam diferentemente. Da mesma maneira que o laico Uzbequistão. E ao contrário das teocracias como a Arábia Saudita e demais emirados da península arábica, onde o Estado islâmico impõe as leis do Corão ou, no mais das vezes, inventa leis atribuídas ao Corão.
Amanheceu quente sob o céu azul com o sol brilhando forte desde cedo.
A Kapadokia (Capadócia) ficava para trás. À exceção das montanhas avistadas pela manhã, o relevo se manteve aplainado entre colinas abauladas, alguma terra irrigada e aproveitada para o plantio de cereais, especialmente trigo. A rodovia margeou o lado Tuz, de águas salgadas e em acelerado processo de redução em virtude das poucas chuvas. Dali se extraía o sal e a área secava completamente no auge do verão.
Almocei pide, pão pita coberto de carnes, verduras e queijo, em parada improvisada na beira da estrada e sem maiores alternativas de alimentação.
No começo da tarde surgiram as modernas avenidas da cidade de Ankara (Ancara), ladeadas de altos e modernos edifícios envidraçados. No mausoléu do Ataturk, o pai dos turcos, cujo nome era Mustafá Kermal, crianças e adolescentes, muitos com a bandeira turca nas mãos, cumpriam o ritual de adoração ao herói nacional da Turquia republicana.
Era noite avançada ao encerrar a exploração pela Anatólia ocidental e central e retornar a Istambul.
Subi tarde ao salão do café da manhã. Além de sobrevoar as águas do Estreito de Bósforo, principalmente atrás das embarcações, na busca de comida dos pescadores ou de quem lhes atirava pedaços de pão, as gaivotas também rondavam as coberturas dos hotéis atraídas pelos cafés da manhã. Vira e mexe se aproximavam dos janelões aguardando doações. Assim que o alimento era largado e as janelas se fechavam, colocavam o presente nos bicos e engoliam, voltando a olhar as janelas na esperança de mais comida.
Embarquei para o extremo leste da Turquia em voo que fluiu acima das nuvens. Nada se via abaixo, exceto o tapete branco acinzentado. Assim que o avião começou a descida, ultrapassando as nuvens mais espessas, deu-se o espetáculo. E surgiram as primeiras visões do sudeste da Turquia. E que visões! Muitas montanhas, todas cobertas de neve nas cristas e cumes. Mesmo sem o brilho do sol o panorama deslumbrava até não poder mais. Alguns vales alongados, pequenos lagos e, finalmente, o imenso lago Van, em cujo canto se localizava a cidade de Van, meu destino inicial.
Do lado externo do aeroporto, um homem aparentando meia idade, vestindo roupas surradas, de expressão cansada, desprovido de formalidades, se dirigiu a mim. Era o dono da empresa com o qual eu tinha fechado pela internet o aluguel de um veículo com motorista. Alegava esgotamento físico em razão de ter voltado aquele mesmo dia de percurso rodoviário ao Iraque. E me contou que duas semanas antes as temperaturas beiraram a 10 graus negativos e a região de Van se cobrira de neve.
Larguei as coisas no quarto do hotel, mal iluminado, apesar das cinco luminárias e da janela aberta que dava para uma parede cinzenta. A iluminação tênue, ao melhor estilo dos hoteizinhos dos interiores da Índia, não se restringia ao quarto. As áreas comuns do hotel, como corredores, entrada, recepção, também viviam na penumbra.
Saí pelas ruas do centro de Van, cidade que definitivamente não era bonita. Talvez jamais tivesse tido beleza, nem antes do terremoto que a sacudiu três anos antes, destruindo edifícios do centro e arredores. Mas compensava com povo discreto e acolhedor, além das paisagens naturais do entorno. Avistei a montanha nevada a oeste, outras acastanhadas ao norte. As calçadas lotavam de turcos, mas principalmente de curdos que compunham mais de 90% da população da cidade.
Vários homens caminhavam de braços dados, a dois, a três, às vezes até a quatro. Um deles caminhava com as mãos nos bolsos enquanto o outro enlaçava um dos braços do parceiro. Também se cumprimentavam com beijos em ambos as faces dos rostos, ao se encontrarem e ao se despedirem. Circulavam as muçulmanas praticantes, com mantos e roupas compridas de cores leves, ou as indiferentes, vestindo roupas ocidentalizadas. Vestindo roupas invariavelmente escuras, os homens se sentavam em banquinhos incrivelmente baixos e se serviam de chá preto nos copos transparentes sobre as mesinhas também incrivelmente baixas.
Jantei feito um sultão no restaurante em sobreloja da avenida principal de Van. Antes mesmo de eu escolher o prato no cardápio escrito somente em turco, os garçons, que também somente falavam e entendiam o turco ou o curdo, trouxeram uma cesta cheia de pães sem fermento, facílimos de cortar na longitudinal, mas difíceis de romperem na transversal, mais cinco tigelas contendo pasta avermelhada e picante, iogurte, tomates cortados e temperados, salada, pasta de grão-de-bico de sabor adocicado. E abriram uma garrafa de água mineral. Sem eu pedir absolutamente nada. Era o tradicional meze, onipresente nas mesas turcas. Escolhi no cardápio o Iskender Kebap, prato já experimentado em outros restaurantes e que ali veio muito bem servido. Me empanturrei de cada um daqueles itens, um mais saboroso que o outro. Ao encerrar o banquete, sobraram apenas pequenas lascas alongadas de pão. E novamente sem eu abrir a boca, assim que parei de comer, o garçom serviu chá preto, quente e quase transbordando naquele copo transparente e tipicamente turco. No final das contas, só cobraram o kebap que eu apontei no cardápio.
Dei uma volta no quarteirão, entupido de restaurantes, casas de chá, lojas de doces, lanchonetes, pontos de sopas. E dá-lhe cadeirinhas em volta das mesinhas cheias de turcos ou curdos tomando um chá atrás do outro, fumando um cigarro atrás do outro, muitos com os colares de contas nas mãos.
Os curdos possuem rostos maiores e arredondados, olhos e narizes grandes, os homens de bigodes enormes, normalmente de pele morena e cabelos escuros. Falam numa língua cujo tronco linguístico, indo-europeu, difere da língua turca, pertencente ao tronco uralo-altaico.
Naquele hotel até o salão do café da manhã era escuro. Entre as opções do bufê, sopa, vários tipos de azeitonas, queijos, pepino, tomate, ovo cozido com casca, ovo cozido descascado e temperado, iogurte, frios, doces em calda, geleias, pães. De líquido, somente chá preto.
O castelo de Van (Van Kalesi) se erguia sobre a colina na margem do lago Van. Subi a rampa que ladeia as muralhas até o topo da construção datada de três mil anos e originalmente utilizada como fortaleza do povo armênio. Entre ruínas de adobe, de pedra, trechos reconstruídos ou restaurados, o castelo reservava o peso da história como principal apelo e cuja atmosfera me envolveu, sobretudo naquele início da manhã, sem ninguém por perto, exatamente o oposto das atrações entupidas de turistas da Anatólia ocidental e central.
Do alto do morro, vista panorâmica da imensidão do lago, das montanhas nevadas, da cidade de Van, dos campos e moradias isoladas. Abaixo, próximas à colina do castelo, minúsculas ruínas esparsas de torres e construções retangulares.
Eu estava no extremo sudeste da Turquia, sobre as ruínas da fortificação armênia, hospedado em cidade de maioria curda, muito distante dos formigueiros de turistas. A terceira parte daquela viagem começava promissora.
continua...

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Uzbequistão e Turquia (parte 5/8)

...continuação
Caminhei até o Eminonu e tomei novamente o barco para o subúrbio de Uskudar, do lado asiático. Pescadores, casais, famílias, grupos, passeavam no calçadão na beira do mar. Do outro lado do Bósforo, à direita e mais ao fundo, o bairro modernoso de Beyoglu, à esquerda, as colinas de Sultanahmet e as cúpulas da Aya Sophia e da Mesquita Sultanahmet (Azul), entre tantas outras cúpulas de distintas mesquitas.
Alguns casarões de madeira com sacadas e erguidos nas encostas de Uskudar teimavam em resistir à modernização avassaladora da Turquia. Tal processo questionável de reurbanização ocorria nos arredores de Istambul e também na cidade velha, gerando consequências danosas à maioria da população, como bem mostrou o documentário turco Ecumenópolis, A Cidade Sem Limites, exibido em festival de cinema em São Paulo.
Mais adiante do calçadão, antes de alcançar a baía que terminava no porto, escadas de concreto se debruçavam perto das águas, sobre as quais tapetes acolchoados, mesinhas esparsas, almofadas, tudo muito estampado e colorido, recebiam frequentadores de fim de tarde. Aquele cenário alegre e colorido conferia toque bucólico ao entardecer no Bósforo asiático. Ninguém se importava se o por do sol demoraria ou não.
Comi lentamente um simit, rosca salgada de trigo e gergelim, muito popular na cidade e vendida em carrinhos de ambulantes, enquanto contemplava o vaivém frenético de barcos pelas águas do Bósforo. Completei a coceira no estômago com doces turcos em gramas, vendidos nas inúmeras e imensas lojas da cidade.
Muitos debates e noticiários na programação noturna da televisão. Impossível assistir na língua turca. Não dava para entender sequer o assunto tratado.  
Com mais três cariocas permaneci pelos meandros do Grand Bazaar, enquanto compravam, pechinchavam, compravam, pechinchavam, compravam. Não comprei nada. Apenas os acompanhei, conversei, observei o assédio comercial dos vendedores turcos, mais artistas e mistificadores do que nunca.
A carioca entrou no Grand Bazaar discursando que não compraria nada, que não precisava de nada, que poderíamos viver e aproveitar a vida com pouco e sem supérfluos. Pois bem. Duas horas depois carregava cerca de vinte itens, entre anéis de prata, lenços de barba de antílope, conforme enfatizou o sincero vendedor, bolsinhas turísticas de recordação, lenços de seda, bolsas e sapatos de marcas famosas. As bolsas e os sapatos eram assumidamente cópias, ou “cópias originais” segundo os dedicados vendedores.
Querendo sempre mais, ela e a cunhada saíram do Grand Bazaar e se dirigiram à loja próxima, situada justamente acima da fábrica das “cópias originais”. O proprietário era um turco trintão que, segundo a lábia do próprio, se casara com uma gaúcha que ainda morava no Rio Grande do Sul, adorava o carnaval brasileiro e arranhava um “porturco”. Eu e o marido dela as acompanhamos para ver no que aquilo ia dar. Saíram das lojas entupidas de sacolas, satisfeitas pelas irresistíveis pechinchas. E isso porque não queriam e nem precisavam de nada. O turco que “adorava” o Brasil devia estar gargalhando à toa numa hora dessas.
Encerramos tarde, dentro do próprio Grand Bazaar, com doses de raki servido em xícaras para disfarçar, e copos de chá preto e de maçã. Anoitecia quando os três pegaram táxi para o bairro de Beyoglu e eu andei até os baixos de Sultanahmet.
Jantei comida bem temperada com toque marcante de pimenta. O meze inicial abafou de tanto sabor. Local pequeno, simples, sem apelos visuais, mas, como na maioria dos estabelecimentos da região, escalava funcionários que caçavam fregueses na rua.
Na manhã seguinte, tomei ônibus rumo aos interiores ocidentais da Anatólia, o extenso território turco a leste dos Estreitos de Bósforo e de Dardanelos. As rodovias bem pavimentadas acompanhavam o lado norte do Mar de Mármara, até o estreito de Dardanelos, através do qual a balsa cruzaria para a porção asiática da Turquia. Nas margens da rodovia, terras aproveitadas para agricultura, vilarejos de bom aspecto com construções assobradadas, modernas e vistosas.
As ruínas de Troia datavam de até três mil anos antes de Cristo. Não oferecia muito do que ver por inteiro, apenas blocos, restos de paredes, colunas, rampas, pedaços de portais. Impressionava pela importância histórica, pela antiguidade e principalmente por estar diante daquilo que frequentou e frequenta o imaginário do mundo ocidental.  Uma réplica do suposto cavalo de Troia lá estava no pátio, ao qual se podia subir, entrar, fotografar, ser fotografado.
Dali até Çamukkale, cidade na margem do estreito de Dardanelos e próxima ao Mar Egeu. O calçadão na beira do Estreito se agitava de transeuntes, a maioria de jovens, passeando para lá e para cá, inclusive ao redor de outra réplica do cavalo de Troia.
O ônibus tomou o rumo sul, geralmente tendo o Mar Egeu a oeste. Pequenos serrotes pedregosos precederam a serra maior, através da qual a rodovia serpenteou entre sobes e desces, curvas acentuadas, visão panorâmica do litoral oeste da Turquia e das cidadezinhas na beira do mar, normalmente usadas pelos turcos durante a temporada de verão. Nas partes baixas e planas, a terra fértil era aproveitada por extensos olivais, plantações de figos, morangos, pêssegos, damascos, laranjas, verduras variadas. Rebanhos de ovelhas perambulavam pelos trechos não cultivados. Nos sopés das serras, pequenos vilarejos rurais chamavam a atenção pelo bom aspecto, a despeito da padronização das construções das casas assobradadas. Ferrovias acompanhavam a rodovia vez ou outra, pelas quais trens em bem estado transportavam passageiros.
Colinas acima da cidade de Bergamo, as ruínas do antigo hospital de Esculápio construído três séculos antes de Cristo. Depois da longa rua de entrada, ladeada por restos de colunas gregas, irrompiam as diversas alas, entre túneis para abrigar e relaxar os doentes, exclusivamente os muito ricos que poderiam arcar com os custos exorbitantes dos tratamentos, pátios, fonte de água, área para banhos, o anfiteatro grego, conservado e de acústica invejável. No meio de tudo, restos de colunas, portais, placas em pedra, tudo largado no chão e esperando por estudos detalhados.
A cidade de Izmir se situava ao pé das colinas que caiam na imensa baía do Mar Egeu. Não havia praia, mas o extenso calçadão, por toda a baía entre a avenida e as águas, atraía moradores para passeios, pescarias, paqueras, namoros, em meio a comidinhas regionais e o visual bucólico de barcos singrando o mar. Atrás da avenida, a linha de prédios altos e, mais além, moradias simples esmagadas nas colinas. O sol reapareceu convicto. O calçadão reuniu muita gente naquele espaço público e democrático, sem a necessidade de consumir nada ou de se ver obrigado a babar diante de supérfluos nas vitrines de xópins.
O imenso jardim do hotel nos arredores de Kusadasi atingia as areias da praia no Mar Egeu. Ainda não escurecera. Uma nesga de sol iluminava a paisagem. Caminhei pelas areias escuras, molhei os pés e as canelas nas águas frias do mar.
Durante o jantar vieram muitas garrafas de vinho turco, leve e saboroso. Porções de azeitonas, pão e azeite serviram de tira-gosto. Iniciei o banquete com sopa de tomate e fechei com kebap ensopado. A mesa confraternizou, o vinho levitou, a comida saborosa satisfez.
Bem cedo na manhã seguinte, as ruínas da antiga cidade de Ephesus, Éfeso, ou Efes em turco. Empolgaram as horas por entre ruínas, como o anfiteatro, os portais, as ruas de mármore ladeadas de colunas, estátuas de divindades, inscrições em grego, o frontal praticamente intacto do edifício da biblioteca, construído em rocha ricamente entalhada, com imagens de deuses e deusas, textos na pedra, colunas e tetos esculpidos, portais rebuscados.
O conjunto das ruínas mais bem conservadas da época grega em toda a região encantava mesmo aos olhares mais desatentos. O anfiteatro, como sempre, exibia acústica admirável. Ephesus, Éfeso ou Efes era o tipo de lugar para se passar horas, dando tempo ao olhar e à mente para se sintonizarem com a arquitetura e absorver a história milenar. Mais do que ler ou ouvir explicações pretensamente objetivas sobre o sítio arqueológico, o ideal era se deixar levar pelo geral e pelos detalhes.
O período da tarde avançava em meio à estrada com algumas montanhas nevadas à direita. E se aproximavam as formações calcárias de Pamukkale, situadas no alto da colina. A trilha longa levava às ruínas da cidade antiga de Hierápolis, guardando colunas, portais, o anfiteatro.
Mais à frente, para caminhar sobre as placas de calcita esbranquiçada, vez ou outra abrigando piscinas térmicas ricas em carbonato de cálcio, era obrigatório tirar os sapatos. A impressionante formação se inclinava encosta abaixo, rumo ao vale fértil e cultivado de frutas, verduras e legumes, entre concentrações urbanas. Depois do vale, a serra alongada e alta, guardando cristas nevadas resplandecentes no horizonte.
O patriotismo era bastante incentivado na Turquia. As bandeiras turcas, de todos os tamanhos, se espalhavam por locais públicos e privados. Frases do Ataturk, o pai da república da Turquia, bem como estátuas dele em poses de comando ou combate, se repetiam nos quatro cantos do país. A vitoriosa luta pela independência do país após a derrota da primeira guerra mundial ao lado da Alemanha e o fim do sultanato, seguida pela proclamação da república em 1923, fizeram dele o incontestável herói nacional. O comportamento geral das autoridades, no entanto, resvalava para um ufanismo cego que, em vez de fortalecer, desarmava as energias do povo turco.
A paisagem ao lado das rodovias prosseguia entre extensas planícies férteis, cultivadas de maneira variada, inclusive com cerejeiras em flor na primavera, e margeadas por serras cujos cumes se cobriam de neve. Os campos cultivados nas planícies ou nas ondulações suaves, em fase de semeadura ou florada, apontavam para prováveis políticas agrícolas progressistas, bem como o aparente uso mais distribuído da terra, sem os latifúndios e as monoculturas desastrosas tanto para a natureza como para a qualidade de vida da maioria da população.
As serras nevadas nas imediações da cidade de Denizli se afastavam e apareciam novas cristas esbranquiçadas pela neve ao sul da rodovia. A estrada contornou parte do lago Acigol, produtor de sal e que costumava secar por completo durante o verão. O relevo se aplainou a partir de Aksehir, deixando as montanhas como penumbras no fundo do horizonte. Brotavam rebanhos de ovelhas conduzidas por pastores ou pastoras vestidas à maneira interiorana.
Konya, a cidade mais religiosa da Turquia, contava com urbanismo espalhado, novas moradias verticalizadas nas periferias, sistema de bondes elétricos transportando eficientemente os moradores. O centro de orações e mausoléu Mevlana, outrora abrigara centro de estudos e orações dos dervixes, criado e difundido por um afegão e um iraniano que viveram na Turquia. Como muçulmanos, se serviam das danças giratórias para se aproximarem de deus e do céu.
O terreno se tornou mais árido depois da cidade de Konya, sobre o qual se cultivava o trigo e se criavam ovelhas aos pés de serrotes pedregosos. Nas imediações da cidade de Aksaray, a cadeia de montanhas com cristas nevadas e o vulcão Hasan, um dos três vulcões que triangulavam a região da Kapadokia (Capadócia), o destino turístico mais famoso do interior da Turquia.
continua...

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Uzbequistão e Turquia (parte 4/8)

...continuação
O passeio de barco pelo Estreito de Bósforo valeu pela vida pulsante na beira das águas e pela variada oferta de comidinhas no cais do Eminonu. E dá-lhe casas e mansões nas margens europeia e asiática, de madeira, de alvenaria, valendo dezenas ou centenas de milhões em qualquer moeda, além de palácios usados pelos antigos sultões do período otomano, transformados em museus ou em hotéis caríssimos. Impressionava o intenso tráfego de barcos, balsas, navios, dos mais variados tipos e tamanhos, cruzando as águas do Chifre de Ouro e do Estreito de Bósforo.
As ruelas do Mercado de Especiarias (Mercado Egípcio) revelavam centenas de barracas cujas ofertas de alimentos, frutas secas, castanhas e nozes, salgados, temperos, superavam em imagem, odores e sabores as de tecidos, lembrancinhas inúteis, objetos de cozinha. Mas os becos externos à construção principal se mostraram bem mais fascinantes e autênticos. Carregando consigo milhares de anos de experiência em comércio, os vendedores engambelavam os turistas facilmente, improvisando na língua de origem dos visitantes, cantando canções “engraçadas”, fornecendo explicações mirabolantes, envolvendo e seduzindo os ávidos clientes, que logo abriam o bolso e compravam de tudo. Acreditavam que, pechinchando e baixando os preços iniciais, realizavam ótimos negócios.
Ao entardecer, durante a volta ao hotel no bairro modernoso de Beyoglu, os famosos congestionamentos de Istambul deram o ar da graça, como em qualquer megalópole na qual não se elaboram ou não se cumprem planos diretores discutidos com a população, não se privilegia o transporto coletivo, principalmente o sobre trilhos, e se submete à ditadura do transporte individual, o famigerado automóvel. Nenhuma novidade para os moradores das megalópoles brasileiras.
Mais funcional e integrador seria se os turistas utilizassem o transporte coletivo sobre trilhos da cidade, bondes e metrô, aliado a curtas caminhadas. Tomariam mais contato com o cotidiano da população e não se atormentariam com os engarrafamentos rodoviários.
Amanheceu nublado com chuva fina e intermitente. E o frio vinha junto.
Aya Sophia, a gigantesca construção milenar, já foi templo cristão e mesquita, para finalmente se tornar museu para visitação. Impressionou pelas dimensões monumentais e pela importância histórica. Filas quilométricas de turistas para comprar os ingressos. Formigueiros humanos de visitantes nos interiores. Mais se fotografavam do que observavam por onde passavam, por quais setores circulavam, sob quais cúpulas andavam, diante de quais afrescos estavam.
O ensino fundamental de oito anos era obrigatório na Turquia, em escolas públicas ou privadas. Quatro anos de ensino médio e mais o exame final distribuíam os estudantes pelas universidades públicas ou nas faculdades privadas. Cursinhos treinavam e enquadravam os aspirantes para as provas. Os preços das escolas e universidades privadas eram inacessíveis para a maioria da população.
Praticamente toda a imprensa, segundo a guia, adulava o governo federal na busca de favorecimentos contratuais das corporações ligadas à mídia. Ainda segundo ela, a minúscula imprensa de oposição era perseguida e boicotada em vários níveis, dificultando enormemente a sobrevivência.
O famoso Grand Bazaar ficava a poucos minutos de caminhada dali. A construção abrigava um mundo de lojas, lojas e mais lojas, distribuídas por ruas e ruelas sem fim, em ambiente bem mais sem graça que o Mercado das Especiarias. Eu e o colega pulamos fora daquela paranoia consumista. Relaxamos e enrolamos levemente em uma mistura de lanchonete e casa de chá charmosamente escondida na cidade velha, acessada somente após percorrer dois becos nada óbvios.
Anoitecia e jantamos em restaurante globalizado em ruazinha globalizada de bairro globalizado. O local era o modernoso Beyoglu, Istambul, mas poderia ser em qualquer cidade globalizada e pasteurizada mundo afora, tal a falta de personalidade.
Queria mudar de hotel e de bairro. Embarquei no funicular e depois no bonde. E alcancei o beco onde ficava o hotelzinho básico, situado no miolo de Sultanahmet. Nas imediações, turistas, muitos turistas, do mundo inteiro. E a maioria deles ficaria uma ou duas noites na cidade, num desespero para ver tudo, fotografar tudo, olhando para cá e para lá, sempre com pressa, muita pressa.
Fuma-se muito na Turquia, jovens e velhos, homens e mulheres, sentados ou caminhando, durante todo do tempo, em todos os lugares. Nos quartos dos hotéis, cortinas, tapetes, lençóis, fronhas, cobertores, tudo fede a cigarro, leve ou intensamente. E fede a cigarro apagado, a cinzeiro sujo.
Outra mania dos turcos, mas não exclusiva, era o uso obsessivo dos celulares, na função telefone, jogos, internet. Assim como nas cidades brasileiras, os dependentes tecnológicos turcos inclinavam as cabeças e, parados ou em movimento, cutucavam os brinquedinhos compulsivamente, esquizofrenicamente.
Cinco vezes ao dia, em horários determinados, os muezins chamavam os fieis para as orações islâmicas pelos alto-falantes das mesquitas das proximidades. Penetrando no quarto do hotel, o som repetido cinco vezes diariamente aumentava a sensação de imersão na cultura turca e muçulmana.
Amanheceu com o sol batendo em cheio nos janelões do quarto. O hotel entregava os cafés da manhã de quarto em quarto. E veio tudo em dobro. Duas meias bengalas de pão, dois ovos cozidos, divididos ao meio e cobertos de pimenta, fatias de salame, o quarteto típico das manhãs turcas, tomates, pepinos, azeitonas, queijos variados. Veio ainda dois copos descartáveis com dois saquinhos de chá preto e cubos de açúcar. A chaleira elétrica já presente na mesa precisaria apenas ser preenchida de água. Comi até me estufar.
As muçulmanas não faltavam nas ruas de Istambul. As praticantes moderninhas usavam lenços de cores leves, roupas compridas, às vezes coloridas, jamais pretas. Mas nada de mostrar o corpo ou os cabelos. Normalmente se maquiavam exageradamente, se entregando às vaidades inerentes.
As muçulmanas fundamentalistas, e em grande parte provenientes da Arábia Saudita e demais teocracias dos arredores, usavam apenas o preto, véu preto cobrindo os cabelos, rostos, liberando apenas estreita faixa para os olhos, roupas pretas e largas, até os pés, mangas compridas. O objetivo era tapar o rosto e o corpo, mas também a forma do rosto e a forma do corpo. Impossível descobrir se eram novas ou velhas, magras ou gordas, bonitas ou feias. Nas revistas minuciosas em aeroportos, por exemplo, elas se direcionavam a saletas fechadas com o intuito de pelo menos mostrarem quem eram.
Caminhei até a beira das águas do Chifre de Ouro, tanto do lado de Sultanahmet como do lado de Beyoglu, atravessando a ponte Galata, sobre a qual pescadores lançavam iscas ao mar. Algumas crianças mendigavam nas imediações da ponte.
Entrei pela parte de trás do Parque Gulhane, fantasticamente colorido pela floração das tulipas. Ao contrário do que afirma o senso comum, as tulipas se originaram na Turquia e somente depois foram transplantadas para a Holanda, país que acabou criando fama e recebendo os louros pelo cultivo e comercialização.
Outras flores também enriqueciam os desenhos caprichosamente dispostos ao longo de dezenas de jardins pelos interiores do parque. Era o auge do festival das tulipas, nas cores brancas, amarelas, vermelhas, laranjas, lilases. O resultado visual encantava os sentidos mesmo do mais apático dos mortais. Tanto que o parque Gulhane lotou, de turistas, mas principalmente de turcos na busca de passeios leves em que pudessem contemplar as obras de arte da natureza e da jardinagem.
Rodei bastante até me decidir pelo local do almoço. Comi bem fritada de carneiro e frango com cogumelos, cebola, alho, especiarias diversas. E reguei com o delicioso suco natural de romã com laranja.
Na avenida ao longo dos trilhos do bonde, as calçadas se entupiam de turistas e turcos. Em grupos, casais, famílias, amigos, alegravam os espaços públicos e democráticos na tarde de domingo, longe do embrutecimento de xópins e televisões.
Na margem do cais do Eminonu tomei barco para o subúrbio do Uskudar, cidade do lado asiático. Travessia curta e cênica pelo Estreito de Bósforo, em embarcação confortável e segura.
Uskudar se estendia por colinas em urbanização ocidentalizada, com habitações parecidíssimas entre si, ao longo de ladeiras íngremes e estreitas. Caí na pracinha em frente à prefeitura, aonde todo mundo ia. Conversei com turco aposentado e nascido na cidade de Malatya. Quase não falava inglês, somente turco e alemão. Sei lá como nos entendemos e trocamos informações sobre temas variados. Avesso ao islamismo conservador, aos mantos e demais coberturas religiosas do rosto e corpo das mulheres, admirava os países e culturas ocidentais. Tinha curiosidade pelo Brasil, rejeitava o conservadorismo do primeiro ministro turco de então. Tomamos chá servido diretamente nos bancos da praça por funcionário das casas de chá ao redor e que trazia a bebida quente em graciosas bandejas sustentadas por hastes metálicas.
De volta a Istambul, ao belo por do sol de primavera se seguiu o surgimento da enorme e alaranjada lua cheia por entre os minaretes da Mesquita Sultanahmet (Azul). Espetáculo digno de sentar e se deleitar por horas. E à noite, a suave iluminação, tanto da Mesquita Sultanahmet (Azul), como da Aya Sophia, lhes fornecia maior imponência, competindo com o estupendo luar.
A noite fresca exigia no máximo malha sobre a camiseta. Jantei pita mista, pão ovalado, alongado e grande, coberto de um pouquinho de tudo. Um copo de chá e me dei por satisfeito.
No dia seguinte, peguei outro dos barcos que cruzam o Bósforo, desta vez até Kadikoy, também do lado asiático e bem próximo ao Mar de Mármara.
Kadikoy não seduziu tanto quanto Uskudar, mas revelou encantos próprios. Em relevo aplainado a levemente acidentado, o subúrbio guardava apartamentos de médio a alto padrão, em ruas residenciais calmas onde se ouviam o canto dos pássaros e o farfalhar das folhas nas árvores. Um bonde nostálgico, vermelho e com apenas uma vagão, serpenteava pelas ruas estreitas e sinuosas.
Camadas médias a médias altas da sociedade turca habitavam aquelas paragens. Pouco se notava de islamismo em Kadikoy. Em ambiente que preferia importar modismos ocidentais, lá estavam madames e adolescentes passeando com os cachorrinhos, aspirantes a atletas correndo ou se exercitando, figuras lendo os jornais e revistas da mídia burguesa com caras de conteúdo.
Arrisquei o Museu de Arqueologia de Istambul, instalado dentro do parque Gulhane. Objetos de civilizações egípcias, hititas, babilônicas, assírias, árabes, islâmicas, otomanas, romanas, gregas, mesopotâmicas, percorrendo mais de cinco mil anos de história sobre as terras que passaram às mãos da Turquia. Colunas, muralhas, templos, estátuas, sarcófagos, tumbas, esculturas em pedra, entre outros milhares de itens. Impressionava a conservação externa das tumbas entalhadas milhares de anos antes em mármore, ricamente decoradas com figuras humanas e de animais, em alto e baixo relevo.
Almocei o Iskender Kebap, prato de carne com tomate, batata, queijo e iogurte bem temperado. Na mesa do restaurante à minha frente, um casal já passando dos sessenta anos. Ele, envelhecido e levemente afetado, puxava esse e aquele assunto, comentava sobre isso e aquilo. Ela, impassível na enorme gordura que mal cabia sobre a cadeira, não dava a mínima para o parceiro. Preferia cutucar esquizofrenicamente o celular. Nem via a comida, apenas a engolia freneticamente. Não notava o restaurante, não notava o companheiro, não notava a rua e os passantes pela janela. O celular, somente celular, nada mais que o celular.
Vários clientes que se sentavam em bares ou restaurantes, sozinhos ou acompanhados, turcos ou turistas, antes mesmo de olharem os cardápios ou pedirem alguma coisa, solicitavam a senha da internet sem fio. Então cutucavam, cutucavam e cutucavam o brinquedinho. E sempre de cabeças baixas, ignorando tudo e todos ao redor.
Havia dias que eu tentava ouvir músicas no quarto do hotel pelo youtube, mas sempre cancelava por erro interno. Tentei inúmeras vezes e nada. Sempre o mesmo erro, a mesma mensagem. Passou o tempo e descobri que uma lei federal de telecomunicações da Turquia bloqueava o acesso a todos os endereços da internet contendo vídeos, músicas, filmes. Censura pura e simples em país com eleições e, portanto, tido como democrático.
continua...