segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Uzbequistão e Turquia (parte 5/8)

...continuação
Caminhei até o Eminonu e tomei novamente o barco para o subúrbio de Uskudar, do lado asiático. Pescadores, casais, famílias, grupos, passeavam no calçadão na beira do mar. Do outro lado do Bósforo, à direita e mais ao fundo, o bairro modernoso de Beyoglu, à esquerda, as colinas de Sultanahmet e as cúpulas da Aya Sophia e da Mesquita Sultanahmet (Azul), entre tantas outras cúpulas de distintas mesquitas.
Alguns casarões de madeira com sacadas e erguidos nas encostas de Uskudar teimavam em resistir à modernização avassaladora da Turquia. Tal processo questionável de reurbanização ocorria nos arredores de Istambul e também na cidade velha, gerando consequências danosas à maioria da população, como bem mostrou o documentário turco Ecumenópolis, A Cidade Sem Limites, exibido em festival de cinema em São Paulo.
Mais adiante do calçadão, antes de alcançar a baía que terminava no porto, escadas de concreto se debruçavam perto das águas, sobre as quais tapetes acolchoados, mesinhas esparsas, almofadas, tudo muito estampado e colorido, recebiam frequentadores de fim de tarde. Aquele cenário alegre e colorido conferia toque bucólico ao entardecer no Bósforo asiático. Ninguém se importava se o por do sol demoraria ou não.
Comi lentamente um simit, rosca salgada de trigo e gergelim, muito popular na cidade e vendida em carrinhos de ambulantes, enquanto contemplava o vaivém frenético de barcos pelas águas do Bósforo. Completei a coceira no estômago com doces turcos em gramas, vendidos nas inúmeras e imensas lojas da cidade.
Muitos debates e noticiários na programação noturna da televisão. Impossível assistir na língua turca. Não dava para entender sequer o assunto tratado.  
Com mais três cariocas permaneci pelos meandros do Grand Bazaar, enquanto compravam, pechinchavam, compravam, pechinchavam, compravam. Não comprei nada. Apenas os acompanhei, conversei, observei o assédio comercial dos vendedores turcos, mais artistas e mistificadores do que nunca.
A carioca entrou no Grand Bazaar discursando que não compraria nada, que não precisava de nada, que poderíamos viver e aproveitar a vida com pouco e sem supérfluos. Pois bem. Duas horas depois carregava cerca de vinte itens, entre anéis de prata, lenços de barba de antílope, conforme enfatizou o sincero vendedor, bolsinhas turísticas de recordação, lenços de seda, bolsas e sapatos de marcas famosas. As bolsas e os sapatos eram assumidamente cópias, ou “cópias originais” segundo os dedicados vendedores.
Querendo sempre mais, ela e a cunhada saíram do Grand Bazaar e se dirigiram à loja próxima, situada justamente acima da fábrica das “cópias originais”. O proprietário era um turco trintão que, segundo a lábia do próprio, se casara com uma gaúcha que ainda morava no Rio Grande do Sul, adorava o carnaval brasileiro e arranhava um “porturco”. Eu e o marido dela as acompanhamos para ver no que aquilo ia dar. Saíram das lojas entupidas de sacolas, satisfeitas pelas irresistíveis pechinchas. E isso porque não queriam e nem precisavam de nada. O turco que “adorava” o Brasil devia estar gargalhando à toa numa hora dessas.
Encerramos tarde, dentro do próprio Grand Bazaar, com doses de raki servido em xícaras para disfarçar, e copos de chá preto e de maçã. Anoitecia quando os três pegaram táxi para o bairro de Beyoglu e eu andei até os baixos de Sultanahmet.
Jantei comida bem temperada com toque marcante de pimenta. O meze inicial abafou de tanto sabor. Local pequeno, simples, sem apelos visuais, mas, como na maioria dos estabelecimentos da região, escalava funcionários que caçavam fregueses na rua.
Na manhã seguinte, tomei ônibus rumo aos interiores ocidentais da Anatólia, o extenso território turco a leste dos Estreitos de Bósforo e de Dardanelos. As rodovias bem pavimentadas acompanhavam o lado norte do Mar de Mármara, até o estreito de Dardanelos, através do qual a balsa cruzaria para a porção asiática da Turquia. Nas margens da rodovia, terras aproveitadas para agricultura, vilarejos de bom aspecto com construções assobradadas, modernas e vistosas.
As ruínas de Troia datavam de até três mil anos antes de Cristo. Não oferecia muito do que ver por inteiro, apenas blocos, restos de paredes, colunas, rampas, pedaços de portais. Impressionava pela importância histórica, pela antiguidade e principalmente por estar diante daquilo que frequentou e frequenta o imaginário do mundo ocidental.  Uma réplica do suposto cavalo de Troia lá estava no pátio, ao qual se podia subir, entrar, fotografar, ser fotografado.
Dali até Çamukkale, cidade na margem do estreito de Dardanelos e próxima ao Mar Egeu. O calçadão na beira do Estreito se agitava de transeuntes, a maioria de jovens, passeando para lá e para cá, inclusive ao redor de outra réplica do cavalo de Troia.
O ônibus tomou o rumo sul, geralmente tendo o Mar Egeu a oeste. Pequenos serrotes pedregosos precederam a serra maior, através da qual a rodovia serpenteou entre sobes e desces, curvas acentuadas, visão panorâmica do litoral oeste da Turquia e das cidadezinhas na beira do mar, normalmente usadas pelos turcos durante a temporada de verão. Nas partes baixas e planas, a terra fértil era aproveitada por extensos olivais, plantações de figos, morangos, pêssegos, damascos, laranjas, verduras variadas. Rebanhos de ovelhas perambulavam pelos trechos não cultivados. Nos sopés das serras, pequenos vilarejos rurais chamavam a atenção pelo bom aspecto, a despeito da padronização das construções das casas assobradadas. Ferrovias acompanhavam a rodovia vez ou outra, pelas quais trens em bem estado transportavam passageiros.
Colinas acima da cidade de Bergamo, as ruínas do antigo hospital de Esculápio construído três séculos antes de Cristo. Depois da longa rua de entrada, ladeada por restos de colunas gregas, irrompiam as diversas alas, entre túneis para abrigar e relaxar os doentes, exclusivamente os muito ricos que poderiam arcar com os custos exorbitantes dos tratamentos, pátios, fonte de água, área para banhos, o anfiteatro grego, conservado e de acústica invejável. No meio de tudo, restos de colunas, portais, placas em pedra, tudo largado no chão e esperando por estudos detalhados.
A cidade de Izmir se situava ao pé das colinas que caiam na imensa baía do Mar Egeu. Não havia praia, mas o extenso calçadão, por toda a baía entre a avenida e as águas, atraía moradores para passeios, pescarias, paqueras, namoros, em meio a comidinhas regionais e o visual bucólico de barcos singrando o mar. Atrás da avenida, a linha de prédios altos e, mais além, moradias simples esmagadas nas colinas. O sol reapareceu convicto. O calçadão reuniu muita gente naquele espaço público e democrático, sem a necessidade de consumir nada ou de se ver obrigado a babar diante de supérfluos nas vitrines de xópins.
O imenso jardim do hotel nos arredores de Kusadasi atingia as areias da praia no Mar Egeu. Ainda não escurecera. Uma nesga de sol iluminava a paisagem. Caminhei pelas areias escuras, molhei os pés e as canelas nas águas frias do mar.
Durante o jantar vieram muitas garrafas de vinho turco, leve e saboroso. Porções de azeitonas, pão e azeite serviram de tira-gosto. Iniciei o banquete com sopa de tomate e fechei com kebap ensopado. A mesa confraternizou, o vinho levitou, a comida saborosa satisfez.
Bem cedo na manhã seguinte, as ruínas da antiga cidade de Ephesus, Éfeso, ou Efes em turco. Empolgaram as horas por entre ruínas, como o anfiteatro, os portais, as ruas de mármore ladeadas de colunas, estátuas de divindades, inscrições em grego, o frontal praticamente intacto do edifício da biblioteca, construído em rocha ricamente entalhada, com imagens de deuses e deusas, textos na pedra, colunas e tetos esculpidos, portais rebuscados.
O conjunto das ruínas mais bem conservadas da época grega em toda a região encantava mesmo aos olhares mais desatentos. O anfiteatro, como sempre, exibia acústica admirável. Ephesus, Éfeso ou Efes era o tipo de lugar para se passar horas, dando tempo ao olhar e à mente para se sintonizarem com a arquitetura e absorver a história milenar. Mais do que ler ou ouvir explicações pretensamente objetivas sobre o sítio arqueológico, o ideal era se deixar levar pelo geral e pelos detalhes.
O período da tarde avançava em meio à estrada com algumas montanhas nevadas à direita. E se aproximavam as formações calcárias de Pamukkale, situadas no alto da colina. A trilha longa levava às ruínas da cidade antiga de Hierápolis, guardando colunas, portais, o anfiteatro.
Mais à frente, para caminhar sobre as placas de calcita esbranquiçada, vez ou outra abrigando piscinas térmicas ricas em carbonato de cálcio, era obrigatório tirar os sapatos. A impressionante formação se inclinava encosta abaixo, rumo ao vale fértil e cultivado de frutas, verduras e legumes, entre concentrações urbanas. Depois do vale, a serra alongada e alta, guardando cristas nevadas resplandecentes no horizonte.
O patriotismo era bastante incentivado na Turquia. As bandeiras turcas, de todos os tamanhos, se espalhavam por locais públicos e privados. Frases do Ataturk, o pai da república da Turquia, bem como estátuas dele em poses de comando ou combate, se repetiam nos quatro cantos do país. A vitoriosa luta pela independência do país após a derrota da primeira guerra mundial ao lado da Alemanha e o fim do sultanato, seguida pela proclamação da república em 1923, fizeram dele o incontestável herói nacional. O comportamento geral das autoridades, no entanto, resvalava para um ufanismo cego que, em vez de fortalecer, desarmava as energias do povo turco.
A paisagem ao lado das rodovias prosseguia entre extensas planícies férteis, cultivadas de maneira variada, inclusive com cerejeiras em flor na primavera, e margeadas por serras cujos cumes se cobriam de neve. Os campos cultivados nas planícies ou nas ondulações suaves, em fase de semeadura ou florada, apontavam para prováveis políticas agrícolas progressistas, bem como o aparente uso mais distribuído da terra, sem os latifúndios e as monoculturas desastrosas tanto para a natureza como para a qualidade de vida da maioria da população.
As serras nevadas nas imediações da cidade de Denizli se afastavam e apareciam novas cristas esbranquiçadas pela neve ao sul da rodovia. A estrada contornou parte do lago Acigol, produtor de sal e que costumava secar por completo durante o verão. O relevo se aplainou a partir de Aksehir, deixando as montanhas como penumbras no fundo do horizonte. Brotavam rebanhos de ovelhas conduzidas por pastores ou pastoras vestidas à maneira interiorana.
Konya, a cidade mais religiosa da Turquia, contava com urbanismo espalhado, novas moradias verticalizadas nas periferias, sistema de bondes elétricos transportando eficientemente os moradores. O centro de orações e mausoléu Mevlana, outrora abrigara centro de estudos e orações dos dervixes, criado e difundido por um afegão e um iraniano que viveram na Turquia. Como muçulmanos, se serviam das danças giratórias para se aproximarem de deus e do céu.
O terreno se tornou mais árido depois da cidade de Konya, sobre o qual se cultivava o trigo e se criavam ovelhas aos pés de serrotes pedregosos. Nas imediações da cidade de Aksaray, a cadeia de montanhas com cristas nevadas e o vulcão Hasan, um dos três vulcões que triangulavam a região da Kapadokia (Capadócia), o destino turístico mais famoso do interior da Turquia.
continua...

6 comentários:

  1. Olá! Você relatou detalhadamente toda paisagem, monumentos de uma região de grande potencial cultural. Onde continua?

    Parabéns, até a próxima!

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  2. Oi Eliana, obrigado pela visita e pelos comentários.
    Publicarei amanhã, quinta-feira (21.08) a sexta parte dos relatos dessa viagem. A sétima e a oitava partes deverei publicar na próxima semana.
    Pode aguardar que virão impressões bem interessantes.
    Nas partes seguintes, depois da Capadócia, relatarei as experiências pelos extremo leste da Turquia, uma região única, belíssima, pouco conhecida do turismo.
    Comente sempre e um grande abraço!

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  3. Caramba, foi uma experiência e tanto. Quanto tempo esteve na região?
    Gostei em particular da descrição desse turista, defensor do desapego, que se revelou um comprador compulsivo, hehe.
    Um abraço, um lindo fim-de-semana
    Ruthia d'O Berço do Mundo

    P.S. Convido-o a visitar também o meu cantinho, O Berço do Mundo (http://bercodomundo.blogspot.pt/), o que me deixaria muito feliz

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  4. Oi Ruthia, obrigado pela visita.
    Foi sim uma baita experiência. Fiquei quase quarenta dias em ambos os países, mas desejaria ter ficado mais, bem mais, para me aprofundar nos contatos culturais.
    A compulsão pelo consumo, seja lá do que for, e pelo uso do celular, tornando as pessoas uns zumbis cutucando os aparelhinhos pelas ruas, entre outros comportamentos de rebanhos de ovelhas, me incomoda cada vez mais, seja no Brasil e pelo mundo afora.
    A vida continua e continuo vivendo, viajando e aprendendo, mas que poderia ser melhor, isso sim.
    As partes do relato referentes ao extremo leste da Turquia são minhas favoritas. Já leu?
    Visitarei com calma o seu cantinho. Deixa comigo...
    Abraços e comente sempre!

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  5. E na carona vou conhecendo os lugares que você vivenciou. Obrigada meu amigo.

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  6. Oi Ivete, continue sim nessa carona virtual.
    Ainda tem muita Turquia para relatar nos capítulos seguintes, sobretudo o fantástico extremo leste do país, que percorri na última parte da viagem. Depois quero sua opinião.
    Conto sempre com seus comentários entusiastas.
    Obrigadão!

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