...continuação
O passeio de barco pelo Estreito de Bósforo valeu pela
vida pulsante na beira das águas e pela variada oferta de comidinhas no cais do
Eminonu. E dá-lhe casas e mansões nas margens europeia e asiática, de madeira,
de alvenaria, valendo dezenas ou centenas de milhões em qualquer moeda, além de
palácios usados pelos antigos sultões do período otomano, transformados em
museus ou em hotéis caríssimos. Impressionava o intenso tráfego de barcos,
balsas, navios, dos mais variados tipos e tamanhos, cruzando as águas do Chifre
de Ouro e do Estreito de Bósforo.
As ruelas do Mercado de Especiarias (Mercado Egípcio)
revelavam centenas de barracas cujas ofertas de alimentos, frutas secas,
castanhas e nozes, salgados, temperos, superavam em imagem, odores e sabores as
de tecidos, lembrancinhas inúteis, objetos de cozinha. Mas os becos externos à
construção principal se mostraram bem mais fascinantes e autênticos. Carregando
consigo milhares de anos de experiência em comércio, os vendedores engambelavam
os turistas facilmente, improvisando na língua de origem dos visitantes,
cantando canções “engraçadas”, fornecendo explicações mirabolantes, envolvendo
e seduzindo os ávidos clientes, que logo abriam o bolso e compravam de tudo. Acreditavam
que, pechinchando e baixando os preços iniciais, realizavam ótimos negócios.
Ao entardecer, durante a volta ao hotel no bairro
modernoso de Beyoglu, os famosos congestionamentos de Istambul deram o ar da
graça, como em qualquer megalópole na qual não se elaboram ou não se cumprem
planos diretores discutidos com a população, não se privilegia o transporto
coletivo, principalmente o sobre trilhos, e se submete à ditadura do transporte
individual, o famigerado automóvel. Nenhuma novidade para os moradores das
megalópoles brasileiras.
Mais funcional e integrador seria se os turistas
utilizassem o transporte coletivo sobre trilhos da cidade, bondes e metrô,
aliado a curtas caminhadas. Tomariam mais contato com o cotidiano da população
e não se atormentariam com os engarrafamentos rodoviários.
Aya Sophia, a gigantesca construção milenar, já foi templo
cristão e mesquita, para finalmente se tornar museu para visitação.
Impressionou pelas dimensões monumentais e pela importância histórica. Filas
quilométricas de turistas para comprar os ingressos. Formigueiros humanos de
visitantes nos interiores. Mais se fotografavam do que observavam por onde
passavam, por quais setores circulavam, sob quais cúpulas andavam, diante de
quais afrescos estavam.
O ensino fundamental de oito anos era obrigatório na
Turquia, em escolas públicas ou privadas. Quatro anos de ensino médio e mais o
exame final distribuíam os estudantes pelas universidades públicas ou nas
faculdades privadas. Cursinhos treinavam e enquadravam os aspirantes para as
provas. Os preços das escolas e universidades privadas eram inacessíveis para a
maioria da população.
Praticamente toda a imprensa, segundo a guia, adulava o
governo federal na busca de favorecimentos contratuais das corporações ligadas
à mídia. Ainda segundo ela, a minúscula imprensa de oposição era perseguida e
boicotada em vários níveis, dificultando enormemente a sobrevivência.
O famoso Grand Bazaar ficava a poucos minutos de caminhada
dali. A construção abrigava um mundo de lojas, lojas e mais lojas, distribuídas
por ruas e ruelas sem fim, em ambiente bem mais sem graça que o Mercado das
Especiarias. Eu e o colega pulamos fora daquela paranoia consumista. Relaxamos
e enrolamos levemente em uma mistura de lanchonete e casa de chá charmosamente
escondida na cidade velha, acessada somente após percorrer dois becos nada
óbvios.
Anoitecia e jantamos em restaurante globalizado em
ruazinha globalizada de bairro globalizado. O local era o modernoso Beyoglu, Istambul,
mas poderia ser em qualquer cidade globalizada e pasteurizada mundo afora, tal
a falta de personalidade.
Queria mudar de hotel e de bairro. Embarquei no funicular
e depois no bonde. E alcancei o beco onde ficava o hotelzinho básico, situado
no miolo de Sultanahmet. Nas imediações, turistas, muitos turistas, do mundo
inteiro. E a maioria deles ficaria uma ou duas noites na cidade, num desespero
para ver tudo, fotografar tudo, olhando para cá e para lá, sempre com pressa,
muita pressa.
Fuma-se muito na Turquia, jovens e velhos, homens e
mulheres, sentados ou caminhando, durante todo do tempo, em todos os lugares.
Nos quartos dos hotéis, cortinas, tapetes, lençóis, fronhas, cobertores, tudo
fede a cigarro, leve ou intensamente. E fede a cigarro apagado, a cinzeiro sujo.
Outra mania dos turcos, mas não exclusiva, era o uso
obsessivo dos celulares, na função telefone, jogos, internet. Assim como nas
cidades brasileiras, os dependentes tecnológicos turcos inclinavam as cabeças
e, parados ou em movimento, cutucavam os brinquedinhos compulsivamente,
esquizofrenicamente.
Cinco vezes ao dia, em horários determinados, os muezins chamavam os fieis para as orações islâmicas pelos alto-falantes
das mesquitas das proximidades. Penetrando no quarto do hotel, o som repetido cinco vezes
diariamente aumentava a sensação de imersão na cultura turca e muçulmana.
Amanheceu com o sol batendo em cheio nos janelões do
quarto. O hotel entregava os cafés da manhã de quarto em quarto. E veio tudo em
dobro. Duas meias bengalas de pão, dois ovos cozidos, divididos ao meio e
cobertos de pimenta, fatias de salame, o quarteto típico das manhãs turcas,
tomates, pepinos, azeitonas, queijos variados. Veio ainda dois copos
descartáveis com dois saquinhos de chá preto e cubos de açúcar. A chaleira
elétrica já presente na mesa precisaria apenas ser preenchida de água. Comi até
me estufar.
As muçulmanas não faltavam nas ruas de Istambul. As
praticantes moderninhas usavam lenços de cores leves, roupas compridas, às
vezes coloridas, jamais pretas. Mas nada de mostrar o corpo ou os cabelos.
Normalmente se maquiavam exageradamente, se entregando às vaidades inerentes.
As muçulmanas fundamentalistas, e em grande parte
provenientes da Arábia Saudita e demais teocracias dos arredores, usavam apenas
o preto, véu preto cobrindo os cabelos, rostos, liberando apenas estreita faixa
para os olhos, roupas pretas e largas, até os pés, mangas compridas. O objetivo
era tapar o rosto e o corpo, mas também a forma do rosto e a forma do corpo. Impossível
descobrir se eram novas ou velhas, magras ou gordas, bonitas ou feias. Nas
revistas minuciosas em aeroportos, por exemplo, elas se direcionavam a saletas
fechadas com o intuito de pelo menos mostrarem quem eram.
Caminhei até a beira das águas do Chifre de Ouro, tanto do
lado de Sultanahmet como do lado de Beyoglu, atravessando a ponte Galata, sobre
a qual pescadores lançavam iscas ao mar. Algumas crianças mendigavam nas
imediações da ponte.
Entrei pela parte de trás do Parque Gulhane,
fantasticamente colorido pela floração das tulipas. Ao contrário do que afirma
o senso comum, as tulipas se originaram na Turquia e somente depois foram transplantadas
para a Holanda, país que acabou criando fama e recebendo os louros pelo cultivo
e comercialização.
Outras flores também enriqueciam os desenhos
caprichosamente dispostos ao longo de dezenas de jardins pelos interiores do
parque. Era o auge do festival das tulipas, nas cores brancas, amarelas,
vermelhas, laranjas, lilases. O resultado visual encantava os sentidos mesmo do
mais apático dos mortais. Tanto que o parque Gulhane lotou, de turistas, mas
principalmente de turcos na busca de passeios leves em que pudessem contemplar
as obras de arte da natureza e da jardinagem.
Rodei bastante até me decidir pelo local do almoço. Comi
bem fritada de carneiro e frango com cogumelos, cebola, alho, especiarias
diversas. E reguei com o delicioso suco natural de romã com laranja.
Na avenida ao longo dos trilhos do bonde, as calçadas se
entupiam de turistas e turcos. Em grupos, casais, famílias, amigos, alegravam
os espaços públicos e democráticos na tarde de domingo, longe do embrutecimento
de xópins e televisões.
Na margem do cais do Eminonu tomei barco para o subúrbio
do Uskudar, cidade do lado asiático. Travessia curta e cênica pelo Estreito de
Bósforo, em embarcação confortável e segura.
Uskudar se estendia por colinas em urbanização
ocidentalizada, com habitações parecidíssimas entre si, ao longo de ladeiras
íngremes e estreitas. Caí na pracinha em frente à prefeitura, aonde todo mundo
ia. Conversei com turco aposentado e nascido na cidade de Malatya. Quase não
falava inglês, somente turco e alemão. Sei lá como nos entendemos e trocamos
informações sobre temas variados. Avesso ao islamismo conservador, aos mantos e
demais coberturas religiosas do rosto e corpo das mulheres, admirava os países
e culturas ocidentais. Tinha curiosidade pelo Brasil, rejeitava o
conservadorismo do primeiro ministro turco de então. Tomamos chá servido
diretamente nos bancos da praça por funcionário das casas de chá ao redor e que
trazia a bebida quente em graciosas bandejas sustentadas por hastes metálicas.
De volta a Istambul, ao belo por do sol de primavera se
seguiu o surgimento da enorme e alaranjada lua cheia por entre os minaretes da
Mesquita Sultanahmet (Azul). Espetáculo digno de sentar e se deleitar por horas.
E à noite, a suave iluminação, tanto da Mesquita Sultanahmet (Azul), como da
Aya Sophia, lhes fornecia maior imponência, competindo com o estupendo luar.
A noite fresca exigia no máximo malha sobre a camiseta. Jantei
pita mista, pão ovalado, alongado e
grande, coberto de um pouquinho de tudo. Um copo de chá e me dei por
satisfeito.
No dia seguinte, peguei outro dos barcos que cruzam o
Bósforo, desta vez até Kadikoy, também do lado asiático e bem próximo ao Mar de
Mármara.
Kadikoy não seduziu tanto quanto Uskudar, mas revelou
encantos próprios. Em relevo aplainado a levemente acidentado, o subúrbio
guardava apartamentos de médio a alto padrão, em ruas residenciais calmas onde
se ouviam o canto dos pássaros e o farfalhar das folhas nas árvores. Um bonde
nostálgico, vermelho e com apenas uma vagão, serpenteava pelas ruas estreitas e
sinuosas.
Camadas médias a médias altas da sociedade turca habitavam
aquelas paragens. Pouco se notava de islamismo em Kadikoy. Em ambiente que
preferia importar modismos ocidentais, lá estavam madames e adolescentes
passeando com os cachorrinhos, aspirantes a atletas correndo ou se exercitando,
figuras lendo os jornais e revistas da mídia burguesa com caras de conteúdo.
Arrisquei o Museu de Arqueologia de Istambul, instalado
dentro do parque Gulhane. Objetos de civilizações egípcias, hititas,
babilônicas, assírias, árabes, islâmicas, otomanas, romanas, gregas,
mesopotâmicas, percorrendo mais de cinco mil anos de história sobre as terras
que passaram às mãos da Turquia. Colunas, muralhas, templos, estátuas,
sarcófagos, tumbas, esculturas em pedra, entre outros milhares de itens.
Impressionava a conservação externa das tumbas entalhadas milhares de anos
antes em mármore, ricamente decoradas com figuras humanas e de animais, em alto
e baixo relevo.
Almocei o Iskender Kebap,
prato de carne com tomate, batata, queijo e iogurte bem temperado. Na mesa do
restaurante à minha frente, um casal já passando dos sessenta anos. Ele,
envelhecido e levemente afetado, puxava esse e aquele assunto, comentava sobre
isso e aquilo. Ela, impassível na enorme gordura que mal cabia sobre a cadeira,
não dava a mínima para o parceiro. Preferia cutucar esquizofrenicamente o celular.
Nem via a comida, apenas a engolia freneticamente. Não notava o restaurante,
não notava o companheiro, não notava a rua e os passantes pela janela. O
celular, somente celular, nada mais que o celular.
Vários clientes que se sentavam em bares ou restaurantes,
sozinhos ou acompanhados, turcos ou turistas, antes mesmo de olharem os
cardápios ou pedirem alguma coisa, solicitavam a senha da internet sem fio.
Então cutucavam, cutucavam e cutucavam o brinquedinho. E sempre de cabeças
baixas, ignorando tudo e todos ao redor.
Havia dias que eu tentava ouvir músicas no quarto do hotel
pelo youtube, mas sempre cancelava
por erro interno. Tentei inúmeras vezes e nada. Sempre o mesmo erro, a mesma
mensagem. Passou o tempo e descobri que uma lei federal de telecomunicações da
Turquia bloqueava o acesso a todos os endereços da internet contendo vídeos,
músicas, filmes. Censura pura e simples em país com eleições e, portanto, tido
como democrático.
continua...
Amo a Turquia e estive rapidamente no Uzbequistão, gostei e recomendo seu artigo!
ResponderExcluirOi Alexandra, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirTambém não fiquei muito no Uzbequistão, mas o pais rendeu boas reflexões.
Permaneci mais tempo na Turquia, Istambul, na Anatólia ocidental, no extremo leste do país, regiões que disponibilizaram relatos mais detalhados, como você verá nas próximas partes dos relatos que publicarei aqui no blog.
Além dessa viagem mais recente, publiquei aqui no blog relatos de diversas viagens pelos interiores do Brasil e diferentes países pelo mundo afora. Confira...
Comente sempre!
Olá amigo! Adoro a Turquia, Istambul me fascina, acho que pela sua cultura milenar. Istambul, nem se fala. Se eu estivesse lá, com certeza estaria confinada no Museu Arqueológico. Tudo me atraia, o povo, o mercado de especiarias, mesquitas...Triste é saber que lá também existem crianças mendigando. Viajante Sustentável, adoro ler seus diários de viagens, porque através de seus relatos viajo virtualmente. Continuo na carona. Abraços.
ResponderExcluirOi Ivete, obrigado pelos comentários.
ResponderExcluirCertamente irá adorar Istambul. E nem precisa ir de pacote organizado por agência. Basta reservar hotel pela internet. Passear lá é facílimo. Os turcos são acolhedores e muito simpáticos.
Comente sempre.
Abraços!