quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Uzbequistão e Turquia (parte 2/8)

...continuação
Na região de Kalas, em meio ao deserto de Xorezm (Khorezm), visitamos duas fortalezas construídas no século III A.C., Toprak Qala e Ayaz Qala, ambas interrompidas na fase inicial das escavações arqueológicas, ambas abandonadas às intempéries e aos vandalismos. Presenciei turistas de língua francesa, loiros e de olhos azuis, removendo material das ruínas das paredes e pisos, atirando pedaços uns aos outros ou simplesmente os lançando longe.
As civilizações que construíram e residiram nessas e em outras fortificações da região eram praticantes do zoroastrismo, religião considerada inspiradora de outras mais conhecidas e praticadas atualmente, como o cristianismo, islamismo, hinduísmo, judaísmo.
Abaixo da colina das ruínas do segundo castelo, o Ayaz Qala, dez yurtas se estendiam nas areias do deserto. As tendas montadas e mantidas por povos nômades contavam com os necessários recursos, inclusive coletores de energia solar, e o conforto para curtas ou longas permanências sob as mais contrastantes temperaturas.
Almoçamos no interior de uma delas, especialmente decorado para visitantes. A comida se manteve na costumeira sequência de quatro pratos. Saladas, sopa, carne com batatas, chá, docinhos, água e muitos, mais muitos mesmo, pães variados.
De volta à Xiva (Khiva) ainda visitamos na parte nova da cidade a casa do último “coronel” de antes da revolução soviética. O quase palácio ostentava luxo e imitação total, da arquitetura à decoração interna, do estilo russo imperial, dos tempos ditatoriais dos czares. Após a revolução russa o espaço foi expropriado e aproveitado para exibições teatrais, escritórios administrativos, entre outros usos. E, desde 1991, apenas área para visitação turística e venda de quinquilharias.
Preferi circular pelo entorno da construção e observar o dia a dia da população local em dia útil nas ruas modernas de Xiva.
O jantar aconteceu em restaurante da parte nova da cidade, Dishan-Kala, mas próximo a uma das quatro portas da cidade antiga, Icham-Kala. Além das saladas variadas acompanhadas de diversos e saborosos tipos de pães, nos foi servido sementes secas de abricó, sopa de legumes e carne de carneiro, massas recheadas com ovos e cobertas com iogurte natural e frio, além de água e doces, inúmeros doces. A viagem ao Uzbequistão se tornava a cada dia um verdadeiro regime de engorda, pela grande quantidade e pela boa qualidade das comidas, nos cafés da manhã, almoços e jantares.
Ouvimos da guia que, após o casamento, algumas noivas ainda vão morar na casa dos pais do noivo. Ela só poderá se dirigir à sogra depois do primeiro filho nascido. E jamais poderá se dirigir ao sogro. A recém-casada, ao se encontrar com conhecidos na rua, se inclina e esfrega as mãos nas próprias coxas, conforme eu notara na tarde anterior.
Esses costumes dos interiores do país se enfraqueceram, mas sem desaparecer, durante o período da República Soviética do Uzbequistão. Também nessa época o governo desestimulava práticas discriminatórias contra as mulheres solteiras que queriam se divertir, em bailes ou festas, por exemplo. Desde a tal “independência” em 1991, entretanto, essas e outras práticas opressivas vem sendo reforçadas e incentivadas, sobretudo nas cidades pequenas e zonas rurais.
O Uzbequistão atual manteve algumas conquistas da fase soviética. A educação ainda era pública, gratuita e obrigatória nos nove anos do ensino fundamental e nos três anos do ensino médio. As universidades também eram públicas, mas as cursavam gratuitamente somente os estudantes que obtiveram boas notas anteriormente nas escolas. Os demais que desejassem estudar nas instituições públicas deveriam pagar mensalidades a preços nada módicos.
O caminho de Xiva (Khiva) à cidade de Buxoro (Bukhara), por estradas asfaltadas e esburacadas, exceto pelos cem quilômetros em pista dupla sobre concreto recém-inaugurado, ora cruzou o deserto de Kisyl Kum, ora correu através de terrenos totalmente aproveitados para a agricultura. Nenhum espaço era desperdiçado, inclusive na frente, lados, e fundos das moradias, comércios, indústrias. Políticas agrícolas de incentivo, aliadas às reformas agrárias que democratizam o acesso a terra para quem nela trabalha, dão nisso. Parabéns! Bem diferente do Brasil, fértil e subaproveitado, escravo do latifúndio improdutivo e do agronegócio das monoculturas para exportação e entupidas de agrotóxicos.
No trecho desértico mais ao norte a estrada acompanhou o rio Amudarya, em cuja margem oposta, a oeste, começava o território do Turcomenistão.
O desembarque ocorreu na estupenda praça central de Buxoro (Bukhara), uma maravilha arquitetônica. Iluminada pelos lustres e pela lua quarto-crescente, exalava o charme peculiar, cercada por construções magníficas que transmitiam os dois mil e quinhentos anos de existência urbana, desde os remotos tempos da Rota da Seda.
Durante o café da manhã servido no subsolo do hotel, o garçom mostrou os dotes de massagista em minhas costas, nuca e ombros, antes de dar o preço para a massagem completa. Ninguém se animou.
No centro da área de lazer pública se erguia o Mausoléu dos reis Samoniy (Samanid), datado dos séculos IX e X, construção cúbica mais antiga e preservada da cidade. Impressionante a disposição vertical e horizontal dos tijolos, nas paredes, nas cúpulas interna e externa, fornecendo um paciente e imbricado trabalho artesanal.
Mais à frente, o conjunto da mesquita ricamente decorada nas pilastras, no minarete, no teto externo, na pesada porta de entrada, e do lago em frente, compondo cenário exuberante.
Aproveitei para analisar cenas do cotidiano, dos moradores, meios de transporte urbano, comércio, ambulantes, pedestres. Pelo menos nos trechos visitados, as cidades do Uzbequistão se encontravam limpas e bem cuidadas. As exceções ficavam por conta de ruas em obras ou com a pavimentação em pandarecos. Os cartazes, ora em uzbeque latino, ora em uzbeque cirílico, se espalhavam pelas ruas e avenidas.
O mercado municipal de joias e tapetes, cujas linhas de produtos, extravagantes demais, revelavam gosto deveras contrastante com o das brasileiras e dos brasileiros. As clientes do mercado, usando e abusando de combinação de cores esdrúxulas nas túnicas, batas, vestidos e mantos, se deleitavam com anéis, brincos, pulseiras, colares, recheados de pedras preciosas, todos enormes, coloridos, brilhantes, chamativos.
Deslumbrante o miolo do centro arquitetônico antigo de Buxoro (Bukhara). As madraças, a mesquita Poi-Kalian com o alto minarete e principal símbolo da cidade, visível a quilômetros de distância nos tempos das caravanas da Rota da Seda, as cúpulas pardas ou esverdeadas, as árvores ressecadas pelo recente inverno, os detalhes nos ladrilhos e inscrições islâmicas em árabe. Era o tipo do lugar para esquecer o tempo e interagir com as belezas plásticas das construções ao redor.
Farto e delicioso, o almoço tardio aconteceu dentro da sala de aula de uma antiga madraça. A refeição, servida nas onipresentes quatro partes, veio caprichosamente preparada e temperada. Lambi os beiços e os pedaços de pães variados molhados nas entradas picantes.
Observei os uzbeques e os turistas regionais circulando e relaxando em meio à estupenda praça do centro. Flagrei o final de casamento com direito ao noivo falando ao celular enquanto desfilava com a esposa para as fotografias oficiais. Mulheres maduras com dentes de ouro, homens jogando dominó, roupas coloridas para elas, algumas com véus brancos, roupas sisudas e escuras para eles, alguns com casacos ou túnicas compridas, aveludadas e azuis.
A apresentação folclórica de músicas e danças típicas do O’zbequiston, como praxe em apresentações para turistas, se mostrou um fiasco. Desajeitadamente, as músicas e as danças se alternavam com desfiles de modas nos quais as modelos exibiam trajes modernos do país. Os músicos se postavam no fundo do salão, enquanto as dançarinas e as modelos se movimentavam ao longo de um corredor estreito, entre as mesas ocupadas somente por estrangeiros entediados.
Saindo de Buxoro, após as zonas agrícolas inteiramente aproveitadas, a estrada entrou com tudo nas estepes uzbeques, imensas planícies pouco plantadas, mas tomadas de rebanhos de gado e de ovelha em meio a terreno castanho e vegetação nativa arbustiva. Pelos campos sem fim, os pastores se vestiam a rigor, com casacões longos, aveludados, escuros.
Trechos com construções de novas moradias populares, grandes e de boa qualidade. Bem diverso dos cubículos criminosos dos conjuntos habitacionais populares no Brasil, onde as administrações públicas engordam o faturamento das construtoras que as financiaram e elegeram.
Antes, ao longo e depois da cidade de Kaishi, pujantes zonas industriais lançando muita fumaça das altas chaminés.
Almoço em residência uzbeque em Shahxisabz, cidade onde se erguiam a estátua e as ruínas do palácio construído por Amir Timur, nativo da cidade. O megalomaníaco Amir Timur gostava de levantar construções gigantescas a fim de demonstrar força para os inimigos que o ameaçavam. Aquele palácio, ainda que desprovido da cúpula e de parte das paredes, guardava dimensões descomunais, absurdas, improváveis. Amir Timur figurava onipresente nos monumentos da nação, sobretudo após 1991 quando encerrou o período soviético. Curioso e intrigante o novo regime do Uzbequistão substituir as antigas estátuas dos lideres da revolução soviética por personagens, Amir Timur entre outros, que os próprios historiadores uzbeques reconhecem como assassinos e carniceiros.
À medida que se aproximava os limites da província de Samarqand (Samarkand), a paisagem se tornava mais verde, entre campinas sobre relevo ondulado, plantadas de algodão, frutas, trigo, mais rebanhos de gado e ovelhas. A cadeia das montanhas Zeiavshan guardava cristas rochosas e dentadas, escarpas íngremes e uma espinha alongada, em cujo topo e encostas apareciam camadas e fios de neve. Salpicadas de casas isoladas e rebanhos esparsos aos pés das montanhas, as campinas esverdeadas desenhavam um dos cenários naturais mais belos do O’zbequiston (Uzbequistão).  
A cosmopolita cidade de Samarqand (Samarkand) abrigava, além da maioria uzbeque, povos tadjiques, russos, europeus, asiáticos do extremo oriente. Através de avenidas largas e extensas, ricamente arborizadas de plátanos, margeadas por construções modernas e espaçadas, dos períodos soviético e pós-soviético, cruzando bairro por bairro, alcançamos o centro.
Jantamos no próprio hotel, com direito a garrafas de vinho produzidos nas melhores vinícolas da região de Samarqand (Samarkand), cidade que contabilizava mais de dois mil setecentos e cinquenta anos de fundação.
Amanheceu o dia mais frio de toda a viagem. Pela manhã, para agravar a sensação térmica, o tempo nublado e os chuviscos ocasionais. A roupa toda fechada, camiseta térmica de mangas compridas, malha de montanha, anoraque com o zíper até acima do pescoço, capuz, não deu conta.
A primeira visita ocorreu à tumba de, adivinhem quem, ele, sempre ele, Amir Timur, o herói onipresente em todo O’zbequiston. A construção dos séculos XIV e XV, no entanto, revelava beleza de cair o queixo, mesmo sob o céu cinzento. Contava com minaretes milimetricamente ornamentados, cúpulas rebuscadas de coloração azul-esverdeadas, portais ricamente trabalhados sobre ladrilhos, cerâmica polida, terracota pintada, entre desenhos e escritas islâmicas impressionantes. A harmonia das cores, a simetria das estruturas, o equilíbrio das formas, os detalhes infinitesimais, encantavam até não poder mais. O interior principal, de um azul vítreo e profundo, desenhado em fios de ouro, na cúpula acima e em escritas árabes nas paredes, embasbacava pela riqueza estética e materiais utilizados.
Não queria sair dali para não perder o olhar e a mente daquela maravilha. E também por não desejar enfrentar o frio externo.
continua...

2 comentários:

  1. Viajante Sustentável, indescritível a beleza de teus relatos, saber que ainda existe vestígios das fortalezas de Toprak Qala e Ayaz Qala e imaginar que os povos nômades do deserto desfrutam de comodidades modernas. Gostei de saber da política agrícolas unidas às reformas agrárias bem democráticas, enquanto nós com excesso de terras improdutivas e com incentivos falhos. Riquíssima cultura milenar. Relatou que não queria sair, nem eu, porque fico deslumbrada com as magníficas arquiteturas. Leio e tudo fica tão real...sonhadora. Continuo na viagem. Abraços.

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  2. Oi Ivete, obrigado pela visita e pelos comentários.
    Embora tenha fica somente duas semanas no Uzbequistão, acho que consegui captar características fundamentais do país, sobretudo das regiões por onde passei.
    Entre altos e baixos, fortes contrastes, acaba-se por antecipar certas opiniões, especialmente naqueles itens que podemos comparar com a situação brasileira.
    Obrigadão e comente sempre!

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