...continuação
Na região de Kalas, em meio ao deserto de Xorezm (Khorezm),
visitamos duas fortalezas construídas no século III A.C., Toprak Qala e Ayaz Qala,
ambas interrompidas na fase inicial das escavações arqueológicas, ambas
abandonadas às intempéries e aos vandalismos. Presenciei turistas de língua francesa,
loiros e de olhos azuis, removendo material das ruínas das paredes e pisos, atirando
pedaços uns aos outros ou simplesmente os lançando longe.
As civilizações que construíram e residiram nessas e em
outras fortificações da região eram praticantes do zoroastrismo, religião
considerada inspiradora de outras mais conhecidas e praticadas atualmente, como
o cristianismo, islamismo, hinduísmo, judaísmo.
Abaixo da colina das ruínas do segundo castelo, o Ayaz Qala,
dez yurtas se estendiam nas areias do
deserto. As tendas montadas e mantidas por povos nômades contavam com os necessários
recursos, inclusive coletores de energia solar, e o conforto para curtas ou
longas permanências sob as mais contrastantes temperaturas.
Almoçamos no interior de uma delas, especialmente decorado
para visitantes. A comida se manteve na costumeira sequência de quatro pratos.
Saladas, sopa, carne com batatas, chá, docinhos, água e muitos, mais muitos
mesmo, pães variados.
De volta à Xiva (Khiva) ainda visitamos na parte nova da
cidade a casa do último “coronel” de antes da revolução soviética. O quase
palácio ostentava luxo e imitação total, da arquitetura à decoração interna, do
estilo russo imperial, dos tempos ditatoriais dos czares. Após a revolução
russa o espaço foi expropriado e aproveitado para exibições teatrais,
escritórios administrativos, entre outros usos. E, desde 1991, apenas área para
visitação turística e venda de quinquilharias.
Preferi circular pelo entorno da construção e observar o
dia a dia da população local em dia útil nas ruas modernas de Xiva.
O jantar aconteceu em restaurante da parte nova da cidade,
Dishan-Kala, mas próximo a uma das
quatro portas da cidade antiga, Icham-Kala.
Além das saladas variadas acompanhadas de diversos e saborosos tipos de pães, nos
foi servido sementes secas de abricó, sopa de legumes e carne de carneiro,
massas recheadas com ovos e cobertas com iogurte natural e frio, além de água e
doces, inúmeros doces. A viagem ao Uzbequistão se tornava a cada dia um
verdadeiro regime de engorda, pela grande quantidade e pela boa qualidade das
comidas, nos cafés da manhã, almoços e jantares.
Ouvimos da guia que, após o casamento, algumas noivas ainda
vão morar na casa dos pais do noivo. Ela só poderá se dirigir à sogra depois do
primeiro filho nascido. E jamais poderá se dirigir ao sogro. A recém-casada, ao
se encontrar com conhecidos na rua, se inclina e esfrega as mãos nas próprias
coxas, conforme eu notara na tarde anterior.
Esses costumes dos interiores do país se enfraqueceram,
mas sem desaparecer, durante o período da República Soviética do Uzbequistão.
Também nessa época o governo desestimulava práticas discriminatórias contra as
mulheres solteiras que queriam se divertir, em bailes ou festas, por exemplo.
Desde a tal “independência” em 1991, entretanto, essas e outras práticas
opressivas vem sendo reforçadas e incentivadas, sobretudo nas cidades pequenas
e zonas rurais.
O Uzbequistão atual manteve algumas conquistas da fase
soviética. A educação ainda era pública, gratuita e obrigatória nos nove anos
do ensino fundamental e nos três anos do ensino médio. As universidades também eram
públicas, mas as cursavam gratuitamente somente os estudantes que obtiveram boas
notas anteriormente nas escolas. Os demais que desejassem estudar nas
instituições públicas deveriam pagar mensalidades a preços nada módicos.
O caminho de Xiva (Khiva) à cidade de Buxoro (Bukhara),
por estradas asfaltadas e esburacadas, exceto pelos cem quilômetros em pista
dupla sobre concreto recém-inaugurado, ora cruzou o deserto de Kisyl Kum, ora correu
através de terrenos totalmente aproveitados para a agricultura. Nenhum espaço
era desperdiçado, inclusive na frente, lados, e fundos das moradias, comércios,
indústrias. Políticas agrícolas de incentivo, aliadas às reformas agrárias que
democratizam o acesso a terra para quem nela trabalha, dão nisso. Parabéns! Bem
diferente do Brasil, fértil e subaproveitado, escravo do latifúndio improdutivo
e do agronegócio das monoculturas para exportação e entupidas de agrotóxicos.
No trecho desértico mais ao norte a estrada acompanhou o
rio Amudarya, em cuja margem oposta, a oeste, começava o território do
Turcomenistão.
O desembarque ocorreu na estupenda praça central de Buxoro
(Bukhara), uma maravilha arquitetônica. Iluminada pelos lustres e pela lua
quarto-crescente, exalava o charme peculiar, cercada por construções magníficas
que transmitiam os dois mil e quinhentos anos de existência urbana, desde os
remotos tempos da Rota da Seda.
Durante o café da manhã servido no subsolo do hotel, o garçom
mostrou os dotes de massagista em minhas costas, nuca e ombros, antes de dar o
preço para a massagem completa. Ninguém se animou.
No centro da área de lazer pública se erguia o Mausoléu dos
reis Samoniy (Samanid), datado dos séculos IX e X, construção cúbica mais
antiga e preservada da cidade. Impressionante a disposição vertical e
horizontal dos tijolos, nas paredes, nas cúpulas interna e externa, fornecendo
um paciente e imbricado trabalho artesanal.
Mais à frente, o conjunto da mesquita ricamente decorada
nas pilastras, no minarete, no teto externo, na pesada porta de entrada, e do
lago em frente, compondo cenário exuberante.
Aproveitei para analisar cenas do cotidiano, dos
moradores, meios de transporte urbano, comércio, ambulantes, pedestres. Pelo
menos nos trechos visitados, as cidades do Uzbequistão se encontravam limpas e
bem cuidadas. As exceções ficavam por conta de ruas em obras ou com a
pavimentação em pandarecos. Os cartazes, ora em uzbeque latino, ora em uzbeque
cirílico, se espalhavam pelas ruas e avenidas.
O mercado municipal de joias e tapetes, cujas linhas de
produtos, extravagantes demais, revelavam gosto deveras contrastante com o das
brasileiras e dos brasileiros. As clientes do mercado, usando e abusando de
combinação de cores esdrúxulas nas túnicas, batas, vestidos e mantos, se
deleitavam com anéis, brincos, pulseiras, colares, recheados de pedras
preciosas, todos enormes, coloridos, brilhantes, chamativos.
Deslumbrante o miolo do centro arquitetônico antigo de
Buxoro (Bukhara). As madraças, a mesquita Poi-Kalian com o alto minarete e
principal símbolo da cidade, visível a quilômetros de distância nos tempos das
caravanas da Rota da Seda, as cúpulas pardas ou esverdeadas, as árvores
ressecadas pelo recente inverno, os detalhes nos ladrilhos e inscrições
islâmicas em árabe. Era o tipo do lugar para esquecer o tempo e interagir com
as belezas plásticas das construções ao redor.
Farto e delicioso, o almoço tardio aconteceu dentro da
sala de aula de uma antiga madraça. A refeição, servida nas onipresentes quatro
partes, veio caprichosamente preparada e temperada. Lambi os beiços e os
pedaços de pães variados molhados nas entradas picantes.
Observei os uzbeques e os turistas regionais circulando e
relaxando em meio à estupenda praça do centro. Flagrei o final de casamento com
direito ao noivo falando ao celular enquanto desfilava com a esposa para as fotografias
oficiais. Mulheres maduras com dentes de ouro, homens jogando dominó, roupas
coloridas para elas, algumas com véus brancos, roupas sisudas e escuras para
eles, alguns com casacos ou túnicas compridas, aveludadas e azuis.
A apresentação folclórica de músicas e danças típicas do
O’zbequiston, como praxe em apresentações para turistas, se mostrou um fiasco. Desajeitadamente,
as músicas e as danças se alternavam com desfiles de modas nos quais as modelos
exibiam trajes modernos do país. Os músicos se postavam no fundo do salão,
enquanto as dançarinas e as modelos se movimentavam ao longo de um corredor
estreito, entre as mesas ocupadas somente por estrangeiros entediados.
Saindo de Buxoro, após as zonas agrícolas inteiramente
aproveitadas, a estrada entrou com tudo nas estepes uzbeques, imensas planícies
pouco plantadas, mas tomadas de rebanhos de gado e de ovelha em meio a terreno
castanho e vegetação nativa arbustiva. Pelos campos sem fim, os pastores se
vestiam a rigor, com casacões longos, aveludados, escuros.
Trechos com construções de novas moradias populares,
grandes e de boa qualidade. Bem diverso dos cubículos criminosos dos conjuntos
habitacionais populares no Brasil, onde as administrações públicas engordam o
faturamento das construtoras que as financiaram e elegeram.
Antes, ao longo e depois da cidade de Kaishi, pujantes
zonas industriais lançando muita fumaça das altas chaminés.
Almoço em residência uzbeque em Shahxisabz, cidade onde se
erguiam a estátua e as ruínas do palácio construído por Amir Timur, nativo da
cidade. O megalomaníaco Amir Timur gostava de levantar construções gigantescas
a fim de demonstrar força para os inimigos que o ameaçavam. Aquele palácio,
ainda que desprovido da cúpula e de parte das paredes, guardava dimensões
descomunais, absurdas, improváveis. Amir Timur figurava onipresente nos
monumentos da nação, sobretudo após 1991 quando encerrou o período soviético. Curioso
e intrigante o novo regime do Uzbequistão substituir as antigas estátuas dos
lideres da revolução soviética por personagens, Amir Timur entre outros, que os
próprios historiadores uzbeques reconhecem como assassinos e carniceiros.
À medida que se aproximava os limites da província de
Samarqand (Samarkand), a paisagem se tornava mais verde, entre campinas sobre
relevo ondulado, plantadas de algodão, frutas, trigo, mais rebanhos de gado e
ovelhas. A cadeia das montanhas Zeiavshan guardava cristas rochosas e dentadas,
escarpas íngremes e uma espinha alongada, em cujo topo e encostas apareciam
camadas e fios de neve. Salpicadas de casas isoladas e rebanhos esparsos aos
pés das montanhas, as campinas esverdeadas desenhavam um dos cenários naturais
mais belos do O’zbequiston (Uzbequistão).
A cosmopolita cidade de Samarqand (Samarkand) abrigava,
além da maioria uzbeque, povos tadjiques, russos, europeus, asiáticos do
extremo oriente. Através de avenidas largas e extensas, ricamente arborizadas
de plátanos, margeadas por construções modernas e espaçadas, dos períodos
soviético e pós-soviético, cruzando bairro por bairro, alcançamos o centro.
Jantamos no próprio hotel, com direito a garrafas de vinho
produzidos nas melhores vinícolas da região de Samarqand (Samarkand), cidade
que contabilizava mais de dois mil setecentos e cinquenta anos de fundação.
Amanheceu o dia mais frio de toda a viagem. Pela manhã,
para agravar a sensação térmica, o tempo nublado e os chuviscos ocasionais. A
roupa toda fechada, camiseta térmica de mangas compridas, malha de montanha,
anoraque com o zíper até acima do pescoço, capuz, não deu conta.
A primeira visita ocorreu à tumba de, adivinhem quem, ele,
sempre ele, Amir Timur, o herói onipresente em todo O’zbequiston. A construção
dos séculos XIV e XV, no entanto, revelava beleza de cair o queixo, mesmo sob o
céu cinzento. Contava com minaretes milimetricamente ornamentados, cúpulas
rebuscadas de coloração azul-esverdeadas, portais ricamente trabalhados sobre
ladrilhos, cerâmica polida, terracota pintada, entre desenhos e escritas islâmicas
impressionantes. A harmonia das cores, a simetria das estruturas, o equilíbrio
das formas, os detalhes infinitesimais, encantavam até não poder mais. O interior
principal, de um azul vítreo e profundo, desenhado em fios de ouro, na cúpula
acima e em escritas árabes nas paredes, embasbacava pela riqueza estética e
materiais utilizados.
Não queria sair dali para não perder o olhar e a mente daquela
maravilha. E também por não desejar enfrentar o frio externo.
continua...
Viajante Sustentável, indescritível a beleza de teus relatos, saber que ainda existe vestígios das fortalezas de Toprak Qala e Ayaz Qala e imaginar que os povos nômades do deserto desfrutam de comodidades modernas. Gostei de saber da política agrícolas unidas às reformas agrárias bem democráticas, enquanto nós com excesso de terras improdutivas e com incentivos falhos. Riquíssima cultura milenar. Relatou que não queria sair, nem eu, porque fico deslumbrada com as magníficas arquiteturas. Leio e tudo fica tão real...sonhadora. Continuo na viagem. Abraços.
ResponderExcluirOi Ivete, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirEmbora tenha fica somente duas semanas no Uzbequistão, acho que consegui captar características fundamentais do país, sobretudo das regiões por onde passei.
Entre altos e baixos, fortes contrastes, acaba-se por antecipar certas opiniões, especialmente naqueles itens que podemos comparar com a situação brasileira.
Obrigadão e comente sempre!