...continuação
Dali, ao cartão postal de Samarqand (Samarkand) e um dos
principais do Uzbequistão, o complexo de madraças, ou escolas corânicas, e mesquitas
ao redor da praça Registan.
Infelizmente, quase tudo estava em obras, com tratores e
guindastes removendo o piso central da praça e ações agressivas em trechos
internos das construções históricas. Fato injustificável, uma vez que fotos
recentes mostravam todo o conjunto em perfeito estado de conservação. Não só
ali, mas em todo o país, me parecia que no Uzbequistão se construía ou se
reconstruía pelo simples capricho do chefe de plantão, pela obsessão em apagar
e refazer imagens.
Mas, aos trancos e barrancos, contornando telas de
proteção, dando voltas, tomando cuidado para não tropeçar ou escorregar nos
trechos esburacados ou enlameados, evitando as manobras das máquinas leves e
pesadas, abstraindo os ruídos inerentes, deu para explorar o local.
As dependências internas das madraças desativadas foram
ocupadas pelo comércio de produtos típicos do país e de outros itens nem tão
típicos. A cúpula interna de uma delas, ornamentada em ouro e em outros
materiais resplandecentes, valeu pelo efeito extraordinário das cores sob a luz
natural. Ao longo dos corredores laterais, lojas expunham a antiga arte
regional, entre vestimentas, joias, barretes, burcas, mantos, dos mais variados
tipos e preços, pinturas e velhas fotografias.
O almoço foi em restaurante regional que mais se parecia
com bar noturno tal a decoração extravagante, usando e abusando de móveis
chamativos e cores espalhafatosas. A mesa ficava no andar superior. No térreo,
uma festa de casamento animava uma roda de mulheres, somente de mulheres,
dançando ao som do pop uzbeque.
Depois foi a vez de visitar o observatório astronômico de
Ulugbek, filho de, adivinhem quem, sim ele mesmo, o próprio, quem mais poderia
ser se não Amir Timur. Dizia a lenda que o filho, porém, não se identificava
com guerras, mortes e religião, passatempos favoritos do pai, preferindo se
aprofundar nas artes e nas ciências.
Mas o melhor da tarde ainda estava por vir, a Necrópole da
cidade. O interessante cemitério abrigava nas partes mais baixas tumbas que
eram verdadeiras obras de arte, datadas dos séculos XIV a XVI. Me deleitei
diante da arquitetura e das ornamentações em tijolos, ladrilhos, ouro, pedras,
pinturas, esculturas, em conjunto harmoniosamente colorido.
Samarqand (Samarkand), a segunda cidade do Uzbequistão,
contava com centro inteiramente renovado arquitetonicamente. Foram demolidas as
construções antigas e erguidos novos edifícios, largos, baixos, padronizados,
demonstrando mais uma vez a paranoia por uma nova cara nacional. Assim como no
resto do país, a cidade estava em obras, apagando o antigo, perdendo a memória
urbanística, e construindo o novo.
Por outro lado, a preservação de um passado glorioso
brotado após a “independência” nacional em 1991 e maquiado segundo as
conveniências dos mandas-chuvas de plantão, visto nos monumentos novos e
antigos, contrastava com a demolição do casario histórico dando lugar ao que
viria a ser a imagem que a nova classe dominante desejava impor ao país.
As calçadas das cidades do Uzbequistão ficavam às escuras
durante toda a noite e madrugada. Somente o leito das ruas e avenidas recebia
iluminação artificial, mesmo assim de maneira fraca e irregular.
Pela manhã, eu e mais dois caminhamos rumo à praça
Registan, desta vez sem chuva e com muito sol. Contemplamos o complexo de
madraças e mesquitas somente de fora, sem pagar novamente o ingresso caro. Novos
ângulos, novas luzes e cores pelo dia ensolarado, mais observações e reflexões
a respeito dos detalhes arquitetônicos e históricos. E, mais uma vez,
lamentamos as obras desnecessárias em praticamente todo o conjunto.
Arriscamos a galeria de arte pertencente à associação dos
artistas de Samarqand. Continha belíssimas obras, entre pinturas, aquarelas,
gravuras, trabalhos em lenços de seda, roupas, véus. Os itens estavam expostos
em sala atendida pela solitária russa que mal arranhava o inglês. Os lenços de
seda, estampados por trabalhos únicos dos artistas regionais, levíssimos, mal
sofriam das forças da lei da gravidade.
Caminhávamos vagarosamente, apreciando a rotina da cidade
num dia útil, o vaivém dos pedestres e veículos, as calçadas e calçadões arborizados,
os parques abrigando famílias e discretos casais de namorados, a elegância
modernizada daquela cidade milenar.
Almoçamos comida típica em residência familiar decorada
especialmente para os visitantes. Além das saladas iniciais, dos iogurtes
caseiros e temperados, dos diversos tipos de pães, da sopa de legumes e carne,
o prato principal seria o Plov, o
mais famoso do país. Tratava-se de arroz cozido com cenoura amarela, alho,
cominho, cebola, pedaços de carne, passas. Saborosíssimo e servido em grande
travessa sobre a mesa, da qual todos se serviam.
Tiramos os sapatos antes de entrar no salão ricamente
ornamentado, nas paredes, com objetos regionais e familiares, no teto composto
de ripas arredondadas, avermelhadas e desenhadas de madeira, na mesa, colorida
e apetitosa. Reguei o banquete com água e chá verde.
No quintal da casa, a cerejeira em flor, o móvel que era mistura
de mesa, cama e sofá estampado, muito comum no país para os futuros dias e
noites quentes do verão, o andar de cima construído em madeira entalhada.
Emendamos ao Mercado Municipal. Em instalações limpas e
organizadas havia de tudo um pouco do que os verdadeiros mercados devem
oferecer à população. Ziguezagueei por entre as barracas, observando itens e
flagrantes culturais. De vez em quando um balconista me oferecia produtos e
perguntava o meu país de origem num inglês diminuto, mas o suficiente para a
comunicação básica.
Retornamos ao hotel no final da tarde ensolarada e sem
sensação de frio.
Jantamos em restaurante e clube dançante, um dos mais
badalados da cidade. E, para manter o regime de engorda daquela viagem ao
Uzbequistão, dá-lhe comida, muita comida, comida típica e saborosa. Bebemos
vinho de Samarqand, comemos horrores, conversamos e rimos muito. No subsolo
decorado em cores vivas e brilhantes, entre intervenções artísticas
extravagantes, havia outra mesa ocupada por três mulheres, produzidíssimas, dos
pés à cabeça, no melhor estilo uzbeque.
Acordei sem pressa e comi no final do horário do café da
manhã a fim de forrar bem o estômago em dia sem perspectivas de almoço de
verdade.
O trem com destino à Toshkent (Tashkent) partiu da
gigantesca e moderníssima estação ferroviária de Samarqand (Samarkand), mas sem
direito a fotos, proibidíssimas nos interiores e exteriores. A construção e as
instalações pareciam de aeroporto, porém mais eficientes e mais confortáveis. E
tudo em dimensões exageradas. Se Amir Timur, o novo herói nacional, não estivesse
morto e enterrado havia séculos no mausoléu da cidade, juraria que tivesse sido
obra dele.
A composição partiu no meio do dia. Comemos empanadas
arredondadas adquiridas em estação intermediária. O salgado suculento e bem
temperado matou a fome discreta do meio do dia.
Durante todo o trajeto a cadeia de montanhas nevadas
acompanhou a ferrovia, emoldurando campos agrícolas em fase de semeadura e bem
aproveitados entre algumas cidades pequenas e vilarejos. Com as reformas
agrárias anteriores e a politica agrícola encorajadora todos possuíam o necessário
para viver razoavelmente. Alguns trechos revelavam colinas rochosas, campos
menos férteis, zonas cobertas de solo esbranquiçado pelo sal.
No meio da tarde o trem parou na estação ferroviária
também ampla, moderna, funcional em Toshkent (Tashkent).
A maior mesquita da capital do país guardava a sete chaves
o mais antigo alcorão em papel do mundo. Impresso no século VII em pele de
gazela, o imenso e pesado livro impressionava pelo visual e pelo valor
histórico. Do lado direito da imensa construção religiosa, notei ao fundo a cadeia
das montanhas nevadas que se destacava irrompendo no horizonte.
O metrô da capital foi construído durante a República
Soviética do Uzbequistão. Contando com três linhas e estações distintas e
ricamente decoradas, aquele meio de transporte testemunhava o passado
socialista do país, funcionando e atendendo bem a população por quase quarenta
anos.
A moderna Toshkent (Tashkent), cujo centro foi
reconstruído completamente após o intenso terremoto de 1966, era amplamente
arborizada, nas calçadas, parques, praças, canteiros centrais das principais
vias. A cidade esnobava quarenta hectares de área verde por habitante. Uma
interminável avenida contava com canteiro central de mais de cinquenta metros
de largura, inteiramente arborizado, com faixa interna para caminhadas e
passeios. Maravilhoso, invejável, admirável do ponto de vista socioambiental.
O Uzbequistão não se mostrou tão estranho quanto as
expectativas apontavam, mas agradou bastante. Gostei.
Rahmat
O’zbequiston!
Se para entrar no país o processo se mostrou burocrático,
para sair dele a lentidão e a burocracia se multiplicaram por mil.
Logo na entrada do saguão do aeroporto, após o primeiro
controle de passaportes, os raios-x acusaram objeto perigoso na minha bagagem.
Tive que abrir e mostrar ao zeloso funcionário que se tratava do pequeno tripé
fotográfico. Pegou-o na mão e, por gestos, me pediu para que eu lhe mostrasse
como funcionava. Assim que concluiu que as três pernas eram flexíveis e que se
regulavam ao gosto do freguês, sorriu me liberando.
Após esse primeiro bloqueio duplo, houve mais quatro
bloqueios, fiscalizando e controlando praticamente as mesmas coisas. Sem falar
na inadmissível lentidão dos atendentes.
Em cada um dos restantes quatro controles de saída do país,
também fizeram a incrível pergunta sobre o motivo da minha viagem ao
Uzbequistão. Questionaram a quantidade de moeda nacional e estrangeira em mãos.
Exigiram o preenchimento de formulários alfandegários em duas vias, nas quais eu
tinha que escrever todos os detalhes por duas vezes mesmo. E sem erros ou rasuras.
Cobraram a primeira via do formulário quando da entrada no país. Conferiram os
comprovantes de entrada e saída em cada um dos hotéis utilizados. Abriram e
reabriram bagagens na busca daquilo que nem eles sabiam o que era. Num dos
pontos de controle, me chamaram numa salinha anexa e, pela enésima vez, queriam
saber quanto de dinheiro eu levava.
Ao ultrapassar cada um desses obstáculos, nem dava tempo para
comemorar. Poucos metros adiante começava tudo novamente. Novo bloqueio, novo
controle, nova fiscalização, as mesmas perguntas, as mesmas expressões de
autoridade, os mesmos carimbos.
Na última barreira, além dos procedimentos de praxe,
repetidos à exaustão, confiscaram minha garrafa de água. Nem questionei. Quase
entreguei a mochila de ataque inteira para eles, desde que me deixassem
embarcar.
E isso acontecia com todos da mesma maneira, ou ainda
pior. De uma passageira exigiram que ela bebesse da água que carregava na bolsa
para provar que não era uma arma líquida letal. De outro, retiveram frascos de
desodorante, creme dental, perfumes, entre outros itens altamente perigosos à
humanidade.
Após “apenas” duas horas de saltos em obstáculos que
testaram o limite dos nervos de todos, controle por controle, fiscalização por
fiscalização, raios-x por raios-x, formulário por formulário, pergunta por
pergunta, carimbo por carimbo, finalmente atingimos a porta de embarque para a
aeronave.
Mas, mesmo após todo aquele perrengue, não conseguia parar
de rir ao me lembrar de uma das perguntas mais presentes na boca dos
funcionários do aeroporto, justamente no momento que eu desejava apenas sair do
país: “Qual o seu motivo de viagem ao Uzbequistão?”. Era a pérola das pérolas!
O avião apertadíssimo para as pernas decolou no meio da
madrugada e pousou em Istambul ao amanhecer.
Comi horrores no café da manhã tardio e permaneci no
quarto para tentar descansar. Nada feito. A obra ao lado do hotel
andava a todo vapor. Guindastes, escavadeiras, caminhões basculantes, o
operário que guiava gritando os veículos pesados durante as manobras. Uma
barulheira danada.
continua...
Viajante Sustentável deve ter sido deslumbrante conhecer a Necrópole, com suas riquíssimas ornamentações. Gostei de tua colocação: - "Por outro lado, a preservação de um passado glorioso brotado após a “independência” nacional em 1991 e maquiado segundo as conveniências dos mandas-chuvas de plantão, visto nos monumentos novos e antigos, contrastava com a demolição do casario histórico dando lugar ao que viria a ser a imagem que a nova classe dominante desejava impor ao país". O clássico e o moderno mesclam a cidade tornando-a interessante e aguçando meu lado aventureiro. Nem tinha idéia que o mais antigo alcorão em papel do mundo foi impresso no século VII em pele de gazela, imagino valor histórico. Além das belezas naturais, fico imaginado a habilidade dos profissionais da arquitetura milenar...que viagem cultural. Sigo na carona. Abraços.
ResponderExcluirOi Ivete, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirAdorei realmente a Necrópole de Samarqand. Mausoléus que se tornaram obras de arte estupendas. Que detalhes!
Pena que não demonstram o mesmo carinho e respeito pelo valor histórico do casario comum, mas muito antigo.
Também me impressionei com o mais antigo corão impresso. Era enorme e pesado. Creio que precisariam umas três pessoas pelo menos para segurar e folhear aquele texto sagrado.
Comente sempre e abraços!