Depois de muitos anos resolvi novamente cruzar o Atlântico
e viajar fora da América. Faria um breve intervalo em minhas incursões pelos
interiores do Brasil.
O voo do meio da madrugada exigiu sacrifício para aguentar
firme até o horário de embarque. Me antecipei e me dirigi ao aeroporto internacional
de São Paulo no meio da noite anterior.
Após quase quatorze horas de voo desembarquei em Istambul
naquele final de março. Passava da meia-noite, horário local, quando
entrei no quarto do hotel no bairro antigo de Sultanahmet.
O aquecimento central, sem possibilidades de regulagens,
esteve demasiadamente quente durante toda a madrugada. Levantei ainda zonzo,
sonolento e cansado.
Após café da manhã empurrado, eu e os colegas visitamos a
Praça do Hipódromo, sobre a antiga pista de corrida de bigas dos tempos do
Império Romano, destacando a torre de Constantino, a torre de Teodosius, a
torre da Serpente.
Ao lado, a gigantesca Mesquita Sultanahmet (Azul). Imensa,
ampla, imponente. Ali, como em todo o centro turístico de Istambul, enxames de
turistas provenientes dos quatro cantos do mundo, numa profusão de tipos
físicos e de línguas. Gente, muita gente, formando filas e mais filas para tudo
e em vários lugares.
A Aya Sophia, fechada, ficaria para depois. Seguimos ao Palácio
Topkapi, espalhado em vasta área próxima ao estreito de Bósforo. Parques,
jardins, salões dos antigos sultões, exposições de joias, roupas e adornos dos
antigos e megalomaníacos proprietários.
Almocei kebap de
carne, precedido do tradicional meze,
contendo pastas de grão-de-bico, pimentão apimentado, berinjela com tomate,
coalhada seca com azeite, muitos e variados pães. Me hidratei com suco natural de
romã com laranja, forte, marcante, saborosíssimo.
Após a refeição, visita à Cisterna, outra atração que
formava filas imensas. Nada de especial a não ser a iluminação amarelada das
catacumbas. Em seguida, giro despretensioso, a esmo, pelas ruas comerciais e
estreitas do bairro de Sultanahmet sob a luz belíssima do fim de tarde.
Foi providencial o retorno ao hotel para
descansar e preparar a transferência noturna ao aeroporto. A zonzeira ia e
vinha da cabeça ao corpo, pela canseira do voo, pela diferença de fuso horário,
pelo sono atrasado. Os muezins das mesquitas, numa das chamadas para as cinco
orações diárias dos muçulmanos, me acordaram do cochilo.
O voo saiu no começo da madrugada em avião apertado, sem
possibilidade alguma de mover as pernas. Ainda bem que o grandalhão à minha
frente não reclinou o encosto do banco. Do dobro do meu tamanho, o coitado nem
se movia.
A rota área passou sobre o Mar Negro, o Mar Cáspio e acima
de dezenas de cidades e vilarejos iluminados.
Desembarcamos ao amanhecer no aeroporto de Toshkent
(Tashkent), a capital do Uzbequistão, próxima à divisa internacional com o
Cazaquistão.
E batemos de frente com a absurda lentidão burocrática das
autoridades uzbeques. Preenchemos fichas em duas vias. Aguardamos horrores em
fila desorganizada o funcionário buscar os formulários em falta. Pagamos o
valor do visto calculado proporcionalmente ao tempo de permanência no país e ao
tamanho do grupo de visitantes que apresentava a carta-convite previamente
obtida no Brasil. Passamos pelo controle de passaportes, agora com o visto
pago, obtido e carimbado. Pegamos as bagagens aos trancos e barrancos, já que a
esteira mais parava que andava. Depois, nova fiscalização das bagagens.
Uma das colegas preencheu as duas vias do formulário
alfandegário com caneta preta. O funcionário recusou alegando que não aceitaria
preenchimento a lápis. Ela insistiu que era caneta preta e não lápis. Ele
insistiu que era lápis e não caneta preta. Ela teve que voltar e pegar outros
dois formulários vazios, usar caneta azul e preencher tudo novamente. Aí sim o
formulário foi aceito e as bagagens dela liberadas.
Do lado de fora do saguão do aeroporto, a jovem e sorridente
guia uzbeque fluente em uzbeque, russo, inglês e espanhol, nos esperava. O
veículo percorreu avenidas amplas e vazias naquela hora da manhã, com árvores
peladas pelo início da primavera em país de inverno violento.
Para o aceso interno à construção mais alta da cidade, a torre
de telecomunicações, a burocracia costumeira, com preenchimento de formulários,
passagem por detector de metais, conferências, carimbos e destaques de vias dos
ingressos e formulários preenchidos, tudo em postos a menos de dez metros um do
outro. Uma guia específica da torre nos descreveu em inglês arrastado e em tom
monocórdio as dimensões e peso de cada uma das partes da torre. O elevador levou
somente até o andar permitido, de onde se tinha vista panorâmica da cidade, inclusive
das montanhas nevadas a leste. Mas não era permitido tirar fotos através das
janelas daquele andar dotado de bar e restaurante giratórios, ambos decadentes
e tristes. As sonolentas garçonetes ainda insistiram para que ficássemos. Sorrimos,
agradecemos à guia da torre e aos demais funcionários e fomos embora.
Almoçamos no antigo e tradicional hotel erguido na arredondada
praça Amir Timur, em cujo centro o novo herói uzbeque se postava garboso acima
do cavalo. Ao redor da praça, avenidas planejadas, largas e arborizadas,
construções modernas e retilíneas.
A cidade de Toshkent (Tashkent) foi parcialmente arrasada
pelo terremoto de 1966, cujo epicentro foi exatamente ali, no centro da cidade.
As repúblicas soviéticas vizinhas e a própria Rússia soviética auxiliaram na
reconstrução dando-lhe um visual mais moderno no centro administrativo e
comercial da capital, agora cortada por avenidas largas, amplas, arborizadas,
entre espaçosos gramados, construções retangulares e padronizadas. Tudo pela
funcionalidade, urgência em reerguer a cidade destruída, abrigar os
desabrigados.
Rumamos ao Museu de Arte Aplicada, contendo vasta e
belíssima coleção de tecidos, bordados e estampados, em seda, algodão, fios de
ouro, peças de cerâmica, objetos variados, móveis, instrumentos musicais
pertencentes às diversas subdivisões culturais do Uzbequistão, distribuídos em
salões ricamente ornamentados e coloridos. Bonito e fascinante. Porém, esgotados
pelos dois voos em horários malucos, fora de prumo pela diferença de fuso, nos
arrastávamos pelos diversos setores do museu.
Em país dotado de câmbio negro de moedas estrangeiras, troquei
o necessário em Sum, a moeda do
Uzbequistão. Considerando que a cotação era de um dólar para 2.500 sums e que a
maior nota das mais usadas era de 1.000 sums, recebi um pacote de cerca de
trezentas notas pelos 100 dólares que troquei. Vieram notas de 500 sums e 1.000
sums, envoltas em elástico e dentro de uma sacola plástica, peça que se tornaria
gênero de primeira necessidade. Aquele espesso pacote de notas jamais caberia
em bolsos ou carteiras. Teria que usar a mochila de ataque, entupida de sums, de
dia ou de noite, a pé, de carro, de ônibus, de trem, de avião.
O jantar aconteceu em restaurante decorado com bordados e
estampas típicas do interior do Uzbequistão, e com o palco recheado de
instrumentos regionais e preparado para apresentações em dias específicos.
Dividido em quatro partes generosas, a refeição nos
alimentou de saladas, sopa de beterraba, carne com arroz e cogumelos,
sobremesa, água mineral livre. Arriscamos vinho uzbeque e nos demos bem,
especialmente pelo sabor pronunciado e duradouro.
A cidade adormecia ao voltarmos ao hotel por avenidas
esvaziadas de veículos e pedestres.
Saltei da cama antes de clarear e fomos ao novíssimo
aeroporto doméstico da capital uzbeque.
Embarcamos em avião pequeno que sobrevoou planícies
desérticas, entremeadas de manchas cinza-esverdeadas, algumas cristas baixas e
alongadas, raras estradas ou caminhos rurais, mais raros ainda os vilarejos ou
cidades. E aterrissamos no norte do país.
Cruzamos a pequena Urgench, cidade repleta de longas e
largas avenidas, prédios baixos e modernos, excesso de espaço livre, muitas
obras de construção e reconstrução espalhadas por toda a zona urbana. Arrozais
e olarias se distribuíam ao longo da zona rural entre Urgench e Xiva (Khiva).
E pela manhã teve início a exploração totalmente a pé, e
como tem que ser, de Icham-Kala, a
Xiva (Khiva) milenar e fortificada, pertencente à antiga Rota da Seda que
interligou durante milhares de anos a China ao ocidente.
As vielas, becos, largos, os quatro portais de entrada, as
muradas, as mesquitas, as madraças, ou escolas corânicas, os palácios, as
tumbas, o traçado irregular e charmoso das vias, os domos coloridos das
construções, as colunas estampadas dos minaretes, o tom de areia das paredes e
pisos, os ladrilhos ricamente decorados e montados em mosaicos belíssimos e
abstratos, as portas e janelas detalhadamente entalhadas, os tetos, os homens, as
mulheres, as crianças em circulação, os poucos turistas, o sol que resolveu
aparecer e resplandecer tudo e todos, encantaram, deslumbraram, fascinaram.
Os minaretes, altos e baixos, finos e espessos, contendo
faixas coloridas e estampadas abstratamente. Os domos das cúpulas, nas cores
verde ou azul. A profusão de cores das sedas e tecidos mistos. O artesanato em
seda, cerâmica, madeira, no caso plátano e nogueira. O conjunto, no geral e no
detalhe, extasiava os olhos e os mais diversos sentidos.
O almoço veio com a sequência de quatro partes em salão
interno e claro pela iluminação natural vinda do teto de uma construção restaurada
de dois mil e tantos anos.
Os reservados e educados uzbeques sempre sorriam. Os mais
jovens vestiam roupas escuras, cintos com fivelas enormes, às vezes terno
completo. As mulheres vinham de salto alto, saias e vestidos coloridos, cabelos
estilo anos 1960, alisados, ilustrados com pentes e enfeites grandes e
brilhantes. Não caminhavam ou se portavam naturalmente. Aqueles e aquelas que
se vestiam à moda regional, sem tentativas de ocidentalização, se sentiam mais
à vontade. Várias mulheres idosas ostentavam dentes ou dentaduras inteiramente
de ouro, dente a dente, causando brilho intenso à luz do sol.
Acordei cedo e detonei no café da manhã do hotel, em
estilo bufê, que tinha tudo de bom, inclusive ovos fritos na hora. As frutas
frescas, porém, fizeram bastante falta.
Seguimos para Beruniy e imediações rurais nas portas do
deserto, pertencentes à região autônoma do Karakalpaquistão (Karakalpkstan).
Pelo caminho, cenas do Uzbequistão ignorado pelo turismo.
Intenso processo de construção de obras residenciais, comerciais,
administrativas, espaçadas entre si, de cores claras a pardas. Cartazes,
placas, edifícios, ainda em alfabeto cirílico, mesmo depois da conversão ao
alfabeto latino da escrita uzbeque dez anos antes. Plantações na beira do
asfalto esburacado, hortas e pomares nas frentes das moradias. Lavradores e
lavradoras trabalhando pesado na terra, eles invariavelmente de roupas escuras,
elas com vestidos ou batas estampadas e de cores vivas. Embora em país de
maioria muçulmana, nenhum sinal de mesquitas ou do islamismo.
Exceto as rodovias em péssimo estado, tudo parecia estar
sendo refeito no Uzbequistão. Era obsessiva a intenção de apagar o passado. Mas
não todo o passado, somente aquele que interessa à nova classe dominante. Raros
os resquícios dos tempos em que o país era membro da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas. Uma construção abandonada ali portando a estrela vermelha
acima, outro símbolo acolá. Em compensação, o novo regime passou a ostentar símbolos
e estátuas dos novos “heróis”, anteriores ou posteriores à República Soviética
do Uzbequistão. Desde 1991, ano da chamada “independência”, o país tem sido
dirigido com mãos de ferro por uma camarilha que não admite oposição ou
alternância de poder. E se estreitaram as relações diplomáticas, comerciais e
militares com as “democracias” dos países membros da OTAN e com aquele regime
terrorista ao norte do México.
continua...
Olá viajante. Vim conhecer o seu cantinho, através de um grupo do Facebook. Gostei do seu ponto de vista, social e ambientalmente engajado, da sua longa escrita, da atenção aos pormenores... Senti falta de mais imagens mas, por outro, lado permitiu a imaginação viajar pelas suas palavras.
ResponderExcluirVou-me perder por aqui, com a sua licença, registar-me como seguidora e voltar muitas vezes.
Um abraço desde Portugal
Ruthia d'O Berço do Mundo
http://bercodomundo.blogspot.pt/
Olá Ruthia, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirAgradeço os elogios. Espero que leia e comente sempre, não só os relatos dessa viagem, como os de tantas outras pelo Brasil e o mundo afora já publicados no blog.
Fique à vontade de pesquisar, compartilhar, opinar...
Abraços do Brasil!
Oi Viajante Sustentável, imagino como deve ter sido bonito e interessante sua chegada a Istambul, poder visitar a Praça do Hipódromo, as torres de Constantino, de Teodosius , da Serpente e Mesquita Sultanahmet,acho que foi uma viagem a um passado de ostentação. Anulando o contratempo da burocracia, gostei da sua descrição da capital do Uzbequistão Toshkent (Tashkent), reconstruída com um visual mais moderno e o Museu de Arte Aplicada, que conserva as diversas subdivisões culturais do Uzbequistão. Ri ao imaginar a quantidade de Sums que você transportava e se fosse no Brasil? Fiquei encantada com a Rota da Seda e nela viajei: - " Vielas, becos, largos, os quatro portais de entrada, as muradas, as mesquitas, as madraças, ou escolas corânicas, os palácios, as tumbas, o traçado irregular e charmoso das vias, os domos coloridos das construções, as colunas estampadas dos minaretes, o tom de areia das paredes e pisos, os ladrilhos ricamente decorados e montados em mosaicos belíssimos e abstratos, as portas e janelas detalhadamente entalhadas, os tetos, os homens, as mulheres, as crianças em circulação, os poucos turistas, o sol que resolveu aparecer e resplandecer tudo e todos, encantaram, deslumbraram, fascinaram." Também fiquei boquiaberta com sua capacidade descritiva, conseguiu me transportar até o Uzbequistão e conhecer sua rica cultura. Obrigada amigo. Continuo na carona.
ResponderExcluirOi Ivete, obrigado pela visita e pelos elogios.
ResponderExcluirAgradeço demais os seus comentários, sempre detalhados e incisivos.
É da espontaneidade das sensações e impressões que talvez surjam esses relatos assim sinceros. Ainda bem que entendeu da mesma maneira.
Comente sempre!
Viajante, é impressionante como você percebe tudo ao seu redor e ainda consegue relatar com tanta dignidade. E ler suas palavras descrevendo todos os detalhes dos lugares por onde passa é muito gostoso. Adoro você falando das pessoas locais e seus costumes, suas roupas, comidas, os sorrisos...
ResponderExcluirSabe que para dizer bem a verdade praças, torres, mesquitas e muita gente num só lugar não é uma coisa que me atrai. A principio eu não faria esta viagem, mas você dá um toque tão especial que no fim eu poderei até mudar de ideia, porque é uma emoção ler os seus relatos de viagens, viajante.
Oi Lorena, obrigado pelos comentários.
ResponderExcluirComeços de viagem trazem consigo a inércia inerente. A gente ainda se sente enferrujado e mais atado à origem do que ao destino. Daí se vê e se sente menos e pior.
Mesmo assim fico feliz que gostou desse início dos relatos.
À medida que avançar, você notará que me solto e passo a ver e sentir cada vez mais, propiciando reflexões e análises mais sutis.
Não pare de ler e me diga o que acha da evolução de cada uma dessas oito partes dos relatos da viagem.
Comente sempre!