...continuação
Eu e o motorista curdo margeamos a borda sul do lago Van,
nos aproximando cada vez mais das montanhas nevadas. Em cais na beira do lago,
peguei barco para a ilha Akdamar. Desembarquei no terreno pedregoso e
acidentado da ilha, em cuja encosta da colina se elevava a igreja cristã da
Cruz Sagrada, erguida pelos armênios havia mais de mil anos.
Nas paredes externas da igreja, entalhadas diretamente na
rocha, relevos de animais, personagens bíblicos, cruzes, figuras abstratas. Ao
explorar as paredes e as abóbodas internas, afrescos gastos pelo tempo e a ausência
de conservação chamaram a atenção logo de cara.
E a vista desde a ilha era de cair o queixo. As cadeias de
montanhas para além da margem do lago, todas cobertas de neve, prendiam o olhar.
Pequenas enseadas de pedras e areia grossa cortavam o entorno insular tocando
as águas frias do lago.
Os barcos percorriam as águas naquele fim de semana de
sol, trazendo e levando turistas regionais. Num deles, turcas ou curdas,
muçulmanas praticantes e vestidas com mantos e roupas compridas em tom pastel,
parecendo uniformizadas, lotavam o convés superior.
De volta à margem sul do lago, lá estava o curdo
conversando com amigos e parentes no restaurante ao lado da estrada,
especializado em peixe endêmico do lago Van, e também o único representante animal
daquelas águas.
Os peixes pequenos e saborosos vieram acompanhados de
arroz colorido, picles, salada e, como de praxe, muito pão. Auxiliei a digestão
com dois copos de chá preto, sempre ele, sempre bem-vindo.
Ao voltarmos para Van, paramos no vilarejo de Gevas onde
ele se encontrou com a esposa para ajeitar as coisas para a viagem. Visões
deslumbrantes e mais próximas das montanhas nevadas, ao pé das quais se erguiam
as casas ao longo das ruazinhas da vila.
Segundo o motorista, a situação dos curdos nos últimos
anos ficou menos tensa. Somavam cerca de vinte e cinco milhões de pessoas na
Turquia, a maioria absoluta se comparada aos residentes no Irã, Iraque, Síria,
Palestina. Podiam se manifestar culturalmente, dentro de certos limites. Ouviam
estações de rádio transmitidas em curdo. Liam livros e jornais editados em
curdo, e assim por diante. A atividade guerrilheira dos separatistas curdos
caiu de intensidade e praticamente não havia ações agressivas de ambos os
lados, do Estado turco e das organizações curdas.
A rodovia no sentido sudeste levava às fronteiras oficiais
da Turquia, uma com o Irã e outra com o Iraque. Contando com relevo acidentado,
cercado de montanhas nevadas, especialmente ao sul, a terra se tornava cada vez
mais seca e acastanhada quanto mais o veículo avançava.
As ruínas de Çavustepe abrangiam o antigo palácio de
Sarduri, o rei dos urartus e originados da antiga Armênia, construído dois mil e
oitocentos anos antes sobre os altos da colina. O povo urartu habitava áreas
que abrangiam o planalto armênio, territórios que passaram a pertencer à
Armênia, Geórgia e Turquia. O sítio revelava resquícios da base do palácio, contando
com blocos de basalto contendo inscrições cuneiformes, porões para armazenar
água e comida, partes de muralhas e paredes internas. A vista panorâmica dos
vales, vilarejos, plantações, rebanhos de ovelhas, bem abaixo, e das cadeias de
montanhas nevadas ao sul, de escarpas de rochas acastanhadas ao norte,
compensou a subida.
Retomamos a rodovia até Guzelsu, vilarejo quase desértico
contando com construções pardas em adobe, a mesma coloração das colinas ao
redor. No topo do mais alto e íngreme dos morros, se elevava as ruínas do
castelo Hosap, erguido pelos curdos no século XVII.
Em processo de restauração, a edificação guardava portal
de entrada ricamente decorado em rocha entalhada. Ultrapassando a pesada porta
de madeira, em meio à escuridão total, acessei a escadaria ascendente e em
curva rumo ao pátio principal. Lá, torres, muros altos de pedra, outros de
adobe, ameias a partir das quais se tinha vista privilegiada do vilarejo.
O vilarejo de Guzelsu, onde tomamos vários chás ao lado de
senhores narigudos e bigodudos, vestindo roupas pretas, conversando ou jogando
uma espécie de damas, empolgou mais que o castelo em si. Talvez pelo jeitão
empoeirado e desleixado, marca de parada fronteiriça, pelo entorno desértico e
inóspito, pela autenticidade, pela despretensão em agradar.
À noite, tomei saborosa sopa de lentilhas, bem temperada e
levemente picante, em local pequeno, básico, exclusivo de sopas. Sobre a mesa,
enorme cesta de pães, vasilha com salsinha, cebola, pimenta em pedaços ou em
pó. Ao final me foi servido água e chá. Tentei dialogar com o dono do
estabelecimento, com o garçom, com outros clientes. Usei a cola de palavras
turcas que carregava sempre comigo. Não evoluiu. Pena. Me despedi sorrindo.
Eles agradeceram sorrindo. E que delícia de refeição ligeira em ambiente curdo,
ou turco.
As calçadas e ruas enchiam de moradores passeando para lá
e para cá, entrando e saindo de inúmeros e variados pontos para comer,
beliscar, degustar, beber chá, ou simplesmente rezar ou jogar conversa fora
naquele meio de noite fria.
De manhã visitei a primeira igreja armênia da região,
datada de mais de mil anos, situada no alto de encosta montanhosa e nos
arredores da vila curda de Sete Igrejas. O terremoto de 2011 castigou
severamente o vilarejo pobre com casebres de adobe acastanhado e o governo turco
forneceu caixas emergenciais do tipo contêiner aos desabrigados.
Vestindo calça de veludo estufada, o vizinho curdo abriu o
cadeado da pesada porta da igreja para que eu pudesse perambular pelos
interiores sob a penumbra dos tempos, parcamente iluminado por lâmpadas fracas,
penduradas de maneira tosca e improvisada.
A impressionante igreja, com o mesmo nome da vila, também
sofreu com o abalo sísmico, mas ainda impunha respeito, exibindo um portão
imponente e entalhado na madeira e pedra, interiores com afrescos de santos,
paredes de pedras entalhadas, inscrições armênias, cúpulas intactas ou
parcialmente desmoronadas, labirintos escuros e em ruínas.
Descemos o morro e seguimos margeando o lado sul do lago
Van, cortando relevo montanhoso sobre rodovias em bom estado, entre vales
estreitos e profundos, neves nos cumes e cristas das montanhas, vilarejos
esparsos e pequenos, pastores conduzindo ovelhas.
Na feia e cinzenta cidade de Tatvan, comemos o famoso buryan, pedaços de carneiro acompanhados
de fatias de pão, tomate, cebola, pimentão. Cada um comia como desejasse,
misturando tudo dentro do pão, ou beliscando cada item separadamente. Hidratei
a comilança com ayran, iogurte
acrescido de água e sem açúcar.
O preparo do buryan
chamava mais a atenção do que o sabor em si. Introduzia-se praticamente o carneiro
inteiro, pendurado em ganchos, no forno cilíndrico abaixo do piso da cozinha. O
funcionário fechava a pesada tampa e deixava a carne por horas assando no forno.
A refeição matou a fome em restaurante simples, básico, apertado, frequentado
por moradores e trabalhadores em horário comercial.
O céu escurecia mais. Ventos e chuviscos começavam a
fustigar.
A Tumba de rei Selçuk, isolada em terreno abandonado, era rodeada
de casinhas precárias, das quais saíram crianças para nos seguir e nos observar
passo a passo. Assustadas, mal falavam ou reagiam aos meus movimentos, apenas
fixavam os olhos em cada detalhe do que fazíamos ou ameaçavam sorrisos contidos.
Mais à frente, o cemitério do povo Selçuk. Espalhadas por
vasto espaço, as lápides e tumbas do cemitério, construídas a partir da rocha
ocre escura, eram datadas dos séculos XIII e XIV. Verticais e inclinadas devido
aos sucessivos terremotos ao longo do tempo, as lápides continham inscrições e
escritas entalhadas diretamente na rocha, parcialmente encobertas pelo líquen
amarelado.
Ventava bastante e fazia frio. O caminhar por entre
túmulos de mais de seiscentos anos de idade surtiu um efeito macabro e
fascinante, pela disposição das lápides verticais, deslocadas e inclinadas, sob
o céu cinzento e ameaçador, tendo ao fundo as encostas nevadas.
Me hospedei em hotel escuro e vazio na cidade de Ahlat. O janelão
do quarto abria para as águas da margem norte do lago Van e para as montanhas nevadas
do lado oposto. O céu se mantinha baixo e nublado. A paisagem se iluminava de
vez em quando, conferindo efeitos maravilhosos.
Escolhi a cama mais distante do aquecedor instalado sob a
janela ligeiramente aberta. Entrou o som relaxante das águas do lago revoltas
pelo mau tempo e batendo na murada logo abaixo. Do breu absoluto do lado de
fora vinham roncos de trovões e faíscas de relâmpagos.
Amanheceu claro e ensolarado, diante das águas azuladas do
lago Van, tendo ao fundo a linha de montanhas nevadas.
Saindo de Ahlat a estrada tomou o rumo nordeste. Desci para
fotografar a montanha Suphan, cujo cume e encostas se cobriam de neve. Em
seguida, o motorista entrou em área de lazer em reformas para conversar com
colega. Ao voltar, adiantou que decidira rever o amigo antigo que recentemente fora
solto depois de anos em prisão condenado por assassinato.
A rodovia cruzou as cidadezinhas de Adilcevaz, Patnos,
Tutak. Depois de Agri, a cachoeira nas imediações de Diyadin, cujo entorno se
entupia de lixo jogado pelos frequentadores e jamais recolhido pelas
autoridades.
A paisagem começou a melhorar conforme a estrada subia
drasticamente o relevo. Extensa área de lava vulcânica resfriada e
solidificada, de coloração negra a castanho escura, servia de primeiro plano
sob as encostas de vulcão inativo, cujo cume e encostas se cobriam de neve. E a
rodovia subia mais e mais. A linha da neve se aproximou e pude ver camadas dela
bem próximas do asfalto. A estrada atingiu o máximo de altitude. Blocos de
neve, duros, brancos, cinzentos pela poeira, apareciam no acostamento e em
depressões abaixo do leito da estrada. Em curva ascendente mais acentuada,
desembarquei, de camiseta mesmo, sob o vento gelado. Nem senti o frio.
Apreciei, contemplei, registrei aquela paisagem árida, gelada, estonteantemente
bela do extremo leste da Turquia.
Após cruzar o passo, a estrada ziguezagueou violentamente montanha
abaixo, perdendo altitude enquanto a neve ficava para trás e o vento amainava.
Irromperam pastos esverdeados, rebanhos de ovelhas, minúsculos vilarejos curdos
com casas retangulares erguidas a partir de pedra e barro, e de cujas chaminés
centrais a fumaça exalava, garantindo que ali dentro todos se aqueciam
devidamente e tomavam copos de chá bem quente.
As emoções, entretanto, estavam longe de terminar. Do
outro lado do vale, ao lado de um vulcão cônico cortado por linhas de neve nas
encostas íngremes, apareceu imponente nada mais, nada menos, que o monte
Ararat, ele mesmo, o personagem de textos bíblicos, a montanha mais alta da
Turquia, contando com mais de cinco mil metros de altitude.
No final do vale alongado e alargado, estava Dogubayazit,
cidade a apenas trinta quilômetros da fronteira com o Irã.
Depois de instalados, almoçamos bem e bastante a saborosa
comida curda. O meze precedeu
divinamente os kebaps, entre saladas,
iogurtes, pastas avermelhadas e picantes, pães enormes e sem fermento. A
decoração interna do restaurante imitava castelos e lendas antigas sob a
iluminação tênue de clube noturno. A comida, no entanto, farta, variada,
deliciosa, me recobrou a alegria de viver.
O veículo cruzou o empoeirado e bagunçado centro de
Dogubayazit, típica e instigante cidade fronteiriça. Percorrendo as últimas
ruas da cidade, subiu as colinas das cercanias rumo ao topo árido e acastanhado
de uma delas, sobre o qual se erguia o palácio Ishak Pasa. Ao redor, ruínas de
outras construções seculares, mesquita, vilarejo minúsculo, plantações de
legumes e verduras da comunidade curda.
Os entornos e arredores do palácio encantaram mais que o
próprio, em questionável processo de restauração, descaracterizando o original.
Tudo ficou muito certinho, ajeitadinho, limpinho. A primeira cobertura, danificada
ou perdida, fora substituída por estruturas de metal e vidro. Portais, relevos
e entalhes nas paredes rochosas, no entanto, salvaram a beleza original do
complexo construído nos séculos XVII e XVIII, e que serviu de hospedagem e
repouso para integrantes da antiga Rota da Seda.
Mantive no jantar o mesmo e excelente restaurante de
comida curda no qual me deliciara no almoço. Dei volta a pé pelo centro
desmazelado de Dogubayazit. O comércio aberto garantia intenso movimento de
veículos e pedestres.
Amanheceu com céu azul e sol brilhante. Nada impedia a
visão estupenda dos cinco mil e tantos metros de altitude do monte Ararat.
Caminhei pela estrada em frente ao hotel, a que segue à
fronteira com o Irã, para contemplar e fotografar o Ararat. Nenhuma nuvem no
céu azul e límpido. O cume nevado, as encostas nevadas, a base esverdeada da
montanha mais alta da Turquia, se mostravam explicitamente, sem obstáculos ou
retoques.
Partimos rumo à cidade de Kars. Logo no início da rodovia,
mais paradas para apreciar e registrar dezenas de vezes o deslumbrante monte
Ararat, resplandecente sob os raios de sol que atingiam diretamente o cume e as
encostas da montanha. Compulsivamente eu pressionava o obturador da câmera na
busca do enquadramento perfeito, do ângulo perfeito, da luz perfeita, das cores
perfeitas.
A montanha ia ficando para trás à medida que a estrada
avançava, cruzando os vilarejos de Igdir e Tuzluca. Campos arados para a
semeadura de primavera e verão, rebanhos de ovelhas e gado, serrotes bizarros com
estratificações coloridas, mais montanhas nevadas no horizonte, planícies e
vales cultivados de um verde intenso.
Paramos para tomar chá em pequeno restaurante localizado
exatamente na fronteira com a Armênia. Pude ver casinhas e postos militares de
fiscalização da fronteira do outro lado do riacho correndo sob o vale profundo.
Depois do vilarejo turco de Digor, o veículo dobrou à
direita em direção ao sítio arqueológico situado também na fronteira com a
Armênia.
continua...
Por acaso o seu guia lhe deu alguma pista sobre o que os locais pensam sobre o Monte Ararat e a arca de Noé? Eles acreditam que ela "aterrou" mesmo ali, depois do dilúvio? Ou é-lhes indiferente esse pormenor da tradição cristã? O chá, que aprendi a apreciar no fim das refeições, deve ter sido bem reconfortante nessas paisagens geladas...
ResponderExcluirAbraço
Ruthia d'O Berço do Mundo
Oi Ruthia, valeu pelos comentários.
ResponderExcluirO motorista curdo, embora soubesse por alto da passagem da Bíblia citando o Monte Ararat, não pareceu interessado em desenvolver o tema. Creio que a maioria por lá sinta o mesmo. Não faz parte do cerne da cultura deles.
O chá preto, em baixa no Brasil depois da mudança de preferencia para hortelã, verde, camomila e, claro, mate, lá reina absoluto, desde que acorda no café da manhã até dormir novamente, passando por todos os momentos do dia.
Eu tomava muito chá preto quando criança e adolescente. Depois parei.
Foi bom rememorar e apreciar aquele sabor marcante, ainda mais tendo diante do frio e das montanhas nevadas.
Abraços e comente sempre.