sexta-feira, 27 de setembro de 2019

do Acre ao Piauí (parte 8/8)

...continuação
Dois ônibus à praia da Pedra do Sal. Desembarquei na praia Mansa.
Caminhei no sentido oeste, por quilômetros a fio. Atravessei inúmeros riachos com tocos de madeira, conchas, vegetação, areia escura e grossa. Não alcancei a foz do rio que passa no porto de Tatus. O farol da Pedra do Sal, no entanto, ficou distante e minúsculo no horizonte leste. A maré enchia lentamente, fornecendo beleza ainda mais arrebatadora naquele trecho de praia completamente deserta de seres humanos e de construções. Praia selvagem! Jegues pastavam nas imediações dos cursos de água doce. Gaviões altivos se postavam em pontos estratégicos na busca de presas. Raros urubus se deleitavam nas areias com restos apodrecidos de peixes e siris. Parei para entrar e me refrescar nas águas do mar.
Jantei novamente no destino dos mais entre os mais de Parnaíba. Duas caipirinhas acima da média regaram o filé aperitivo acebolado, acompanhado de fritas e pão de alho. O ambiente, cheio e ruidoso, mal ouvia a voz e o violão interpretando os sucessos de sempre da MPB.
Circulei pelas imediações da antiga estação ferroviária da cidade. Desgraçadamente, como tem ocorrido em todo o Brasil, e em inúmeros países sob a ditadura do transporte rodoviário, lá estava o prédio da estação, do almoxarifado, do posto médico, da administração, entre outras construções da ferrovia, em ruínas, abandonados, deliberadamente abandonados. Na estação propriamente dita, um senhor idoso, idealista, cuidava dos objetos que restaram dos vários saques e roubos aos prédios da EFCP, Estrada De Ferro Central Do Piauí. Uma locomotiva maria-fumaça era exibida como relíquia, no acesso vindo da avenida. Os trilhos, enterrados pelo asfalto, mato, areia, barro.
Os oligopólios das corporações automobilísticas, de automóveis, caminhões, ônibus, impuseram aos governos fantoches a destruição da malha ferroviária brasileira, e no nordeste do Brasil ela foi imensa, forçando ao esquecimento e abandono deliberado de tudo que remetesse às ferrovias. O transporte ferroviário sempre foi mais barato, para o Estado e para a população, mais confortável, mais eficiente, mais seguro, mais romântico. E certamente mais rápido se houvessem as modernizações rotineiras do sistema.
O transporte rodoviário mata ao redor de cinquenta mil pessoas todos os anos no Brasil, fora os feridos, leves e graves, com ou sem sequelas. No entanto, graças à publicidade sufocante, direta ou subliminar, muita gente ainda sonha em ter o “carro próprio”.
Entusiasmado com as belezas e as vantagens das ferrovias sobre as rodovias, e indignado com a opção rodoviária forçada do Brasil, me dirigi a Luís Correia, cidade que já foi chamada Amarração, para conferir a última estação ferroviária da EFCP, também desativada e abandonada havia cinquenta anos. Criminosamente largada às traças, a construção se tornou banheiro público e refúgio de párias da sociedade.
Circulei pela região do porto de Luís Correia, próximo à foz do rio Igaraçu e a extensos manguezais. Armazéns de pesca, fábricas de gelo, barcos atracados, trapiches apodrecidos, feições com olhares de poucos amigos, eles e elas, atmosfera portuária típica. O manguezal, amplo e exposto, atraía pela beleza e calmaria.
À tarde li páginas de Geraldo Vandré, Uma Canção Interrompida, de Vitor Nuzzi, uma das três biografias lançadas quatro anos antes sobre o genial compositor e intérprete da música brasileira. Nos intervalos eu refletia e divagava ao som de Imyra, Tayra, Ipy, álbum de Taiguara censurado pela ditadura civil/militar.
Embarquei no meio da manhã no confortável ônibus intermunicipal na rodoviária de Parnaíba. Pela BR-343 o veículo recolhia e despejava passageiros pelas cidades intermediárias, Buriti dos Lopes, Piracuruca, Brasileira e, finalmente, Piripiri, onde desembarquei.
Imediatamente comprei passagem para Pedro II, em outro ônibus que partiu quase vazio. Percorreu a BR-404, subindo leve e continuamente o relevo, por estrada arborizada e estreita. Serrotes despontavam ao norte e a leste.
Em Pedro II me hospedei em hotel na própria avenida/estrada que corta a cidade. A pia do banheiro do quarto era uma graça. Dava na altura dos meus joelhos. E o espelho refletia o meu umbigo. A cidade cresceu ao longo da rodovia BR-404. Tudo de importante se encontrava nas margens dela, inclusive a pousada e outros hotéis, cujo quarto em que fiquei, de frente para o movimento, recebia a sonoplastia rodoviária.
O ar fresco dos setecentos metros de altitude de Pedro II, cidade erguida na região da serra dos Matos, se fazia sentir à noite e ao amanhecer. Nada da fornalha de Parnaíba ou das cidades amazônicas. A cachaça artesanal piauiense caía como luva nessas temperaturas.
Pedro II acordava cedo e de maneira escancaradamente barulhenta. O tráfego pesado de veículos na estrada/avenida da frente da pousada, com destaque para as motos estridentes, vibrava logo após o clarear do dia. As obras na pousada, e as da padaria ao lado, começavam ao amanhecer.
Circulei pela zona urbana que guardava casario do início do século XX, bonito e em ótimo estado de conservação. Parecia que a cidade inteira se preparava para o festival de inverno. Paredes, portas, janelas, pintadas. Praças e ruas, limpas e arrumadas. Enfeites dos moradores nas calçadas e paredes, festejando as flores, a limpeza, a necessidade de não poluir as vias públicas. Tendas começavam a ser montadas nas imediações da praça de Nossa Senhora da Conceição, ao redor da qual se erguia a prefeitura, a rádio local, a igreja Matriz, o principal do casario antigo, antes residências da elite dominante de Pedro II. O centro comercial fervia entre lojas e barracas de ambulantes. Carros de som esbravejavam as tais “promoções”, agravando a poluição sonora ao longo da estrada/avenida que atravessa toda a extensão da cidade. Lojas de joias, muitas delas utilizando a matéria prima símbolo local, a opala, se espalhavam próximas à Matriz.
Arrisquei local simples, pequeno e tradicional de Pedro II, para almoçar panelada, prato típico regional. O restaurante se situava a dez ou mais quarteirões de caminhada. Fui e voltei sob o sol a pino, me esgueirando pelas paredes onde havia calçada. Preparado com miúdos do estômago de boi, mais nacos de mocotó, tudo imerso no molho da própria carne, acompanhado de arroz, farinha e vinagrete, o prato da panelada empolgou pelo sabor pronunciado. O estabelecimento, situado em bifurcação, contava apenas com duas mesas externas e duas internas.
Me refugiei na sombra da sacada coletiva em frente ao quarto da pousada. Cadeiras livres, vento refrescante, preguiça bem-vinda. O sol abrasador, somente lá fora. Eu tentava, com muita força de vontade, me abstrair da poluição sonora, da avenida/estrada, das marteladas na padaria ao lado, das obras na pousada, das gritarias e ruídos da barulhenta Pedro II.
Depois de caminhar quarteirões da zona urbana finalmente alcancei estradinha de chão avermelhado. Pelo caminho, buritis, árvores frondosas, chacrinhas, formações rochosas com vegetação de caatinga, olho d’água em trecho sombreado e fresco, córregos a serem atravessados pulando as pedras, casinhas novas, cercas de paus, morros, a serra mais ao longe. Entre os moradores, saudações efusivas de uns, rosto fechado de outros.
Atingi patamar alto, o povoado de Terra Dura, no mesmo município de Pedro II. Casas espalhadas, a capelinha com pequeno adro, campo de futebol, escola, cisternas instaladas nos tempos progressistas de Lula e Dilma. E porcos, muitos porcos, dezenas ou centenas deles, soltos, ciscando, comendo o que viam pela frente, famílias inteiras, porcão, porcona, porquinhos, porquinhas. Uma infinidade de suínos perambulando pelo vilarejo.
Na cidade almocei saborosíssimo sarapatel no mesmo local do dia anterior. Valeu, e muito, repetir aquele minúsculo restaurante.
No meio do dia seguinte embarquei em ônibus a Teresina.
A região em torno do hotel no centro da capital piauiense se apresentava organizada, limpa, de bom aspecto, abrigando hospitais, clínicas, laboratórios, consultórios médicos, gente de branco circulando para lá e para cá. A avenida Frei Serafim, marco da cidade, começava na igreja de São Benedito, perto da margem direita do rio Parnaíba, e avançava rumo o rio Poty. Contava com amplo canteiro central, dotado de duas alamedas de árvores e bancos para descansar e tomar à fresca. As piauienses e os piauienses cumprimentavam sorrindo, tomando sempre a iniciativa, hábito para lá de generoso e gentil.
Avistei de longe o rio Parnaíba. Na margem oposta, a cidade de Timon, já no estado do Maranhão.
Teresina oferecia linha ferroviária urbana, com onze estações e trens de três vagões. A população usufruía daquele serviço público essencial entre os bairros. A estação de Frei Serafim foi outrora a estação central da cidade, em tempos em que a ferrovia, por todo o nordeste e interiores brasileiros, mais confortável e mais segura do que as estradas, ainda não havia sido destruída pela ditadura do transporte rodoviário, o mesmo que mata cinquenta mil pessoas por ano no Brasil.
Em minha última noite daquela deliciosa viagem de dois meses e meio, desde o Acre até o Piauí, encerrei o livro Geraldo Vandré, Uma Canção Interrompida, de Vitor Nuzzi. Bom conteúdo em edição mal cuidada. Me pareceu que não houve revisões para eliminar ou corrigir as repetições, as redundâncias, as descontinuidades, as lacunas.
Embarquei na tarde seguinte em voo para São Paulo.
Entrei em casa no mês de junho, em estado de graça pela viagem, longa e fascinante.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

do Acre ao Piauí (parte 7/8)

...continuação
Do lado oeste do farol da Pedra do Sal, a praia Mansa, com barcos pesqueiros, quiosques e bares, frequência mais numerosa devido às aguas calmas ao longo de extensa baía. Para leste, a praia Brava, praticamente deserta, sobretudo após o último dos quiosques, a maioria seriamente danificada nas ressacas violentas de dois meses antes. Separando as duas praias, a ponta de pedras, o farol branco, ruínas de construção em madeira rústica, cobertas de palha, provavelmente antiga pousada, bar ou restaurante, erguida em trecho mais alto, sobre lajedos de rocha. Fora isso, pouquíssimas construções próximas ao mar, restando imensos vazios de areia.
O pescador e também presidente da associação dos moradores reclamava do abandono da Pedra do Sal pela administração pública e do consequente desprezo dos visitantes, que preferiam os municípios de Luís Correia e Cajueiro da Praia. Realmente nada chamativos os bares e barracas desmanteladas. Ambas as praias dali, e a ponta do farol, porém, me agradavam pelas belezas naturais, pelo local não badalado, pela tranquilidade, pela oportunidade de, caminhando pela areia das praias, alcançar pontos sem mais ninguém ao redor.
Jantei em quiosque no canteiro central da avenida São Sebastião. A região se alegrava e se movimentava pelas ruas e calçadas. Exceto pelos celulares, afastando olhares, contatos e conversas, a animação reinava na noite em Parnaíba.
No meio do dia tomei micro-ônibus para a praia do Coqueiro, no município de Luís Correia. Após o centrinho discreto e alongado, a primeira e mais popular das praias locais, Atalaia, com infraestrutura suficiente para atender visitantes, sobretudo dos ônibus de turismo.
Dunas altas a alvas se avistavam ao sul da estrada BR-343, na altura da praia Peito de Moça. Mais adiante, ainda no município de Luís Correia, o vilarejo e praia do Coqueiro, onde desembarquei em frente à igrejinha.
Lutei para encontrar acesso livre à praia em razão das residências, bares e restaurantes terem privatizado o espaço e impedido a entrada ao mar. Andei pela areia. Alguns recifes, à esquerda as praias de Peito de Moça e Atalaia. À direita a ponta da praia do Coqueiro, e depois o farol e praia do Itaqui.
Me refugiei em barraca com frequência variada, muitos jovens, poluição de celulares cutucados esquizofrenicamente, especialmente pelas mulheres. Música ao vivo, alternando voz, violão e percussão, com bate-estaca eletrônico de academia. Encarei duas caipirinhas aguadas, minúsculo e saboroso escondidinho de caranguejo, enorme ensopado de sururu.
No final da tarde a barraca ainda lotava, sem falar nas pessoas que chegavam.
Mas me mandei ao ponto de ônibus. Acabei pegando micro que antes seguiu ao vilarejo e praia de Macapá, mais a leste. Pelo caminho, campos vazios, poucos carnaubais, dunas de areia, criações pastando. Construções esparsas pelas campinas, mais próximas à praia. Por conta do extenso percurso de ida e volta, o micro lotou de verdade. Um dos passageiros ligou o som, na base de Aviões do Forró e afins. Os passageiros se descontraíram, cantando as letras mais familiares.
À noite, durante jantar hidratado pela legítima cajuína piauiense fabricada em Buriti dos Lopes, um desenhista, magro, mais gasto pelo tempo que idoso, decidiu me alugar. Primeiro queria fazer minha caricatura. Depois desandou a falar sobre a própria vida, da qual pouco entendi, e a mostrar caricaturas de personalidades famosas, aquelas que todos os do ramo tentam desenhar. Mas eram péssimas e irreconhecíveis sem as legendas do dito cujo.
Após o café da manhã, circulei bastante pelo Porto das Barcas, pessimamente conservado, na verdade abandonado, esperando tudo ruir e se acabar. Pouca coisa em pé e atraente. Isolados sobrados de antigos e notórios moradores, cujos nomes apareciam em destaque na frente, a maioria do começo do século XX. Agências de viagem com roteiros manjados, todos iguais, girando em torno de passeios aos Lençóis Maranhenses, Jericoacoara e, sobretudo, de barco pelo Delta do Parnaíba.
O melhor do centro de Parnaíba, entretanto, estava na efervescência comercial, gente para lá e para cá, estudantes uniformizados entrando e saindo das escolas, motos, centenas de motos, mercados oferecendo produtos frescos, artesanato em lojinhas discretas, fiéis entrando e rezando na Matriz de Nossa Senhora da Graça.
Tomei ônibus ao distrito de Tatus, pertencente ao município de Ilha Grande, na porção oeste da ilha grande de Santa Isabel. Do porto de Tatus partem as excursões de barco pelo Delta do Parnaíba, e também linhas regulares rumo a comunidades ribeirinhas, como a ilha de Canárias. Infelizmente, a fascinante linha de barco entre Parnaíba e Tutóia, no Maranhão, percorrendo os meandros do Delta, permitindo apreciar cenas naturais e humanas de maneira bem mais atraente do que nos passeios das agências de turismo, não mais existia. Eu a experimentara diversas vezes, em ambos os sentidos.
Em Tatus se concentrava a produção de caranguejo retirado dos manguezais do Delta do Parnaíba. A imensa produção do crustáceo abastecia o Piauí e o litoral do Ceará. Pelas ruas de Parnaíba se via com frequência vendedores oferecendo caranguejo em pencas enormes, com dezenas deles, nos cruzamentos e zonas comerciais.
Nas imediações traseiras do porto avistei dunas, entre vegetação rasteira, atrás de casinhas singelas. A curiosidade falou mais alto. Ao final de ruazinha de areia batida, notei trilha estreita e sinuosa que logo começava a subir. Depois da segunda subida mergulhei num mar de dunas de areia clara, a perder de vista, ocupada aqui e ali, nas zonas mais deprimidas, por lagoas de águas cristalinas. Me senti como se estivesse no parque nacional dos Lençóis Maranhenses. Mas eu estava no Piauí, município de Ilha Grande, distrito de Tatus. Delícia das delícias vagar sem direção pelas dunas, cristas, vales, encostas íngremes. De vez em quando me voltava e conferia o caminho percorrido para poder retornar sem me perder. Me refresquei nas águas frescas das lagoas abastecidas pelas chuvas recentes. Depois de um tempo, avançando, avançando, me vi em meio a areia, somente areia, dunas e mais dunas, lagoas, por todos os lados. Nada além daquele mini, mas nem tão mini assim, lençóis piauienses.
O sol do meio da tarde torrava sem dó nem piedade. Marcas de pés nas areias denunciavam que pessoas passaram por ali. Mas, além de dois jegues, não vi uma alma viva sequer. Quanto mais eu avançava, mais eu me aproximava dos cata-ventos coletores de energia eólica, provavelmente os do extremo oeste da praia Mansa da Pedra do Sal. Seria longa e deslumbrante travessia, de Tatus ao farol da Pedra do Sal.
Mas a sede bateu em cheio. Retornei em estado de graça ao vilarejo de Tatus, refazendo mais ou menos, vias minhas próprias pegadas, o mesmo caminho da ida. Os moradores se reuniam na frente das casinhas para a merenda da tarde. Até me convidaram para tomar café com leite. Conversei com a estudante do quarto período de História, área do conhecimento importantíssima para o país, mas que o regime do presidente que odeia o povo queria eliminar das escolas e universidades.
Dois ônibus me devolveram aonde me hospedara.
Nos ônibus e micro-ônibus de Parnaíba, felizmente sem ar condicionado, não havia dispositivos de parada solicitada ao motorista, nem cordinha, nem botão. E, se houvesse, era solenemente ignorado. Os passageiros é que gritavam:
“Desce em frente ao supermercado tal.”
“Na igreja desce.”
Ou o cobrador perguntava em voz alta:
“Desce alguém na federal?”
“Na esquina da farmácia alguém desce?”
E tudo funcionava perfeitamente bem.
Logo após o café da manhã tomei ônibus ao acesso à lagoa do Portinho. Os três quilômetros de caminhada até que passaram rápidos. O caminho é que em nada atraiu. Asfalto estreito e sem acostamento. Espinheiras margeando ambos os lados. E ainda havia motos, carros, até caminhões.
Dunas altas apareceram antes da chegada. Na lagoa do Portinho, águas azuladas, as dunas bem desenhadas à esquerda e principalmente ao fundo, duas ou três canoas, um hotel, bar e restaurante em funcionamento e aberto ao público. Fora isso o local decadente se encontrava abandonado. Imenso bar e restaurante, construído em sólidas estruturas de aço e cimento, de dois andares, coberto de telhas de cerâmica, em ruínas. Outro térreo, também largado às traças. Dois quiosques fechados e, aparentemente, em definitivo. Pena. Área belíssima para os amantes da natureza. As águas frescas e doces. As dunas se estendendo para nordeste e leste, no sentido das praias de Coqueiro, Peito de Moça e Macapá.
De volta à Parnaíba almocei regado à cajuína fabricada em Jatobá do Piauí. Bebida cristalina, infinitamente melhor que os nocivos refrigerantes químicos.
Peguei ônibus, dessa vez grande, velho, caindo aos pedaços, à praia do Coqueiro, em Luís Correia.
Caminhei bastante pela praia, até a ponta onde havia zona de proteção às tartarugas marinhas. Ali começava a praia do Itaqui, com o farol do mesmo nome erguido sobre formações rochosas estratificadas nos fundos elevados da praia. A maré cheia deixava o mar agitado, mas nada que oferecesse maiores perigos. Entrei e me refresquei sob as ondas. Ninguém no campo de visão, a leste ou a oeste. A praia somente para mim.
Com o corpo refrescado e salgado voltei à praia do Coqueiro a fim de encostar o esqueleto em alguma barraca. Detonei porção de moqueca de arraia com farinha. Nas poucas mesas ocupadas ao lado, famílias de Teresina, uma delas com babá e tudo o mais, bem ao estilo escravocrata. Conversavam frivolidades. Relaxei admirando a areia, as ondas, o mar convidativo. Nada como dia útil da semana para obter tamanha tranquilidade e sossego. Fiquei horas assim, em transe, diante do mar.
No centro de Parnaíba, movimento intenso somente no horário comercial, igualzinho a incontáveis cidades pelo Brasil e mundo afora. A cidade se expandia para longe do rio Igaraçu. Ainda assim se mantinha aconchegante, graças a avenidas arborizadas, dotadas de canteiro central largo que abrigava comes, bebes, pistas de caminhada e corrida, bancos para relaxar, similares a parques lineares. E o povo parnaibano conquistava pela simpatia e educação. Fora das grandes vias de tráfego a cidade contava com o simpático calçamento pé-de-moleque, mais bonito, mais barato, mais fresco, de fácil manutenção e absorção das aguas das chuvas. Somente os oligopólios da indústria automobilística para impor o asfalto quente e impermeável, o oposto em beleza e funcionalidade. Nas ruas de bairro, moradias simples, suficientes, de bom aspecto. Não notei miséria escancarada por onde passei em Parnaíba. Os governos estaduais progressistas, além dos frutos dos tempos de Lula e Dilma, fizeram muito bem à grande parte do Piauí.
Nada a ver com perfeição, é claro. O escoamento das águas da chuva continuava um nó sem solução até então. Bastou pancada de chuva de média intensidade para alagar as ruas e avenidas asfaltadas. Dois meses antes, durante a estação das chuvas, Parnaíba sofreu demais com inundações e alagamentos. Tecnicamente as soluções seriam simples. E politicamente? Com a palavra a administração municipal e o tão endeusado setor privado! Não por acaso, na prefeitura de então, sentava figura antológica do coronelismo regional e dissonante do progressismo.
continua...

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

do Acre ao Piauí (parte 6/8)

...continuação
Foram duas horas de ônibus comum para percorrer setenta quilômetros a Mazagão Velho, pela rodovia AP-010. Após o acesso à Santana, vieram os campos de cerrado. Parecendo cruzamento de gado com hipopótamo, búfalos mergulhavam em alagados repletos de buritis, cujas lâminas das águas refletidas pelo sol davam espetáculos de brilho e esplendor. Ao sul do rio Matapi, atravessado por ponte em arco, o cerrado deu lugar à floresta mais úmida. Mais rios, mais pontes, alguns balneários fluviais com banhistas de fim de semana.
Entrada em Mazagão Novo. Cidadezinha planejada e espalhada. Já se notava o aumento de negros, mulatos, cafuzos. Adiante, a rodovia AP-010 mergulhou de vez na floresta úmida, intercalada de campos verdes.
Desembarquei em Mazagão Velho, fundada em 1770, a partir de transferência, pelos invasores portugueses, da colônia de mesmo nome na costa do Marrocos, onde os cristãos guerreavam contra os muçulmanos.
Banhada por igarapé de águas escuras e cristalinas, repleto de árvores, buritizais, aningas, a vilazinha conquistava pela tranquilidade, bucolismo, sossego, beleza do pequeno casario diante do balneário de Matuapá. As famílias colocavam cadeiras na frente das casas para conversar e observar o movimento.
Também de frente ao igarapé, a igreja de Nossa Senhora da Anunciação, ao redor da qual eram celebradas as festividades de São Tiago no final de julho. Maior presença de negros e mulatos, descendentes diretos dos africanos escravizados pelos europeus durante séculos na América.
O lavrador negro cinquentão, devido a problemas renais, parou de trabalhar na roça e apelou à culinária para sobreviver. Com os dentes estropiados como o primeiro, o outro negro já estivera no Marrocos, justamente na antiga Mazagão, atual El Jadida. Ele conhecia bastante das duas Mazagão, a marroquina e a amapaense, e me pincelou parte daquela intrigante história.
Assisti parte do baile no clube, sem paredes, de frente para o gramado e o balneário. Vocalista e teclado com percussão programada tocavam repertório próprio e novo aos meus ouvidos. Alguns dançavam em frente ao palco. Outros assistiam da calçada ou das varandas das casas.
Peguei ônibus para encarar longa viagem de volta a Macapá.
Embarquei pela manhã em Santana em navio rumo a Belém. A suíte contava com ar condicionado, fixado em 16 graus, temperatura indecente até para siberianos. A camareira afirmou a “impossibilidade” de regular a temperatura. Assim como em outros navios eu providenciaria o controle remoto junto à cabine de comando para ajustar às civilizadas temperaturas de 23 ou 24 graus. Das três refeições apenas o café da manhã estava incluído no valor da passagem.
O navio zarpou com poucos passageiros. À tarde começou a balançar. As águas se revolveram sob a chuva fina.  O navio, como regra nas tardes modorrentas, mergulhou no silêncio.
Mais tarde a embarcação penetrou no labirinto de canais, por entre ilhas do arquipélago de Marajó. Oportunidade para apreciar de perto a floresta amazônica, os açaizeiros, esparsas casinhas de madeira na forma de palafitas, a genial solução cabocla. Após trecho em água grande, entrou no estreito e longo canal do Limão.  Dois barquinhos se aproximaram e descarregaram dezenas de sacos de murmuru, fruto pequeno e acastanhado, utilizado como matéria prima na indústria de cosméticos. Das casinhas precárias de ambos as margens saíam canoas, normalmente conduzidas por crianças, na esperança de receber donativos dos passageiros do navio. Mendicância similar àquela do estreito de Breves, ao sul do arquipélago. Além das palafitas, comércio, serrarias, posto de combustíveis. Tudo básico, simples. Nenhuma escola. Nenhum posto de assistência médica. Nenhum centro ou projeto cultural. Mas lá estavam as empresas do fundamentalismo evangélico, aos montes. As mesmas empresas que apoiam e participam do regime contra o povo do governo federal. As mesmas que sugam os bolsos e as mentes dos ribeirinhos asfixiados entre o nada e aquilo.
Choveu fino durante toda a travessia do canal do Limão. No bar dos fundos do terceiro piso do navio a tripulante e alguns passageiros assistiam com olhar bovino a filme de fantasia estadunidense.
Conversei com paraense que já trabalhara de tudo em São Paulo. Atualmente comprava e vendia roupas. Reclamou do mal que o governo federal de plantão, o antipopular, tem feito ao povo brasileiro e que temia a situação piorar ainda mais com aquele regime de ricos contra pobres. Sentia saudades das políticas sociais e distributivistas dos governos Lula e Dilma.
Dormi bastante. Se houve paradas do navio durante a madrugada, não ouvi um ruído sequer.
Acordei cedo e tomei o café da manhã. Não houve filas entre os cerca de cinquenta passageiros. Exceto o trajeto de Manaus a Nhamundá, quatorze anos antes, no qual havia menos de dez passageiros, aquela era a viagem mais vazia a bordo dentre os percursos fluviais que realizei pela Amazônia.
Lá fora, água grande. Nada de terra firme próxima, somente no horizonte distante. Outras embarcações navegavam a perder de vista. O sol ameaçava furar o bloqueio das nuvens.
Mais tarde as chaminés poluidoras do distrito industrial de Barcarena. Pouco depois, no fundo do horizonte, a linha de edifícios altos da cidade de Belém. Desembarquei no terminal hidroviário da capital paraense no meio da manhã.
Jantei em restaurante lotado em noite de segunda feira. Duas mesas comemoraram aniversário. A tradicional celebração do restaurante incluiu luzes apagadas, chapéu de palhaço nos aniversariantes, fogos, garçons caracterizados, fotografando, dançando, cantando os parabéns. Porém, detalhe bizarro, os garçons cantaram primeiro em inglês e depois em espanhol, somente nessas duas línguas, em ritmo caribenho indefinido. Todos ali, nas mesas, corredores, nas cadeiras, funcionários e clientes, aniversariantes, todos, sem exceção, eram brasileirinhos da silva. Cenas para agradar aqueles indivíduos fanáticos que vestem camisetas da CBF, dançam nas avenidas em volta de um pato e, com pavor dos pobres, imploram por golpes de Estado e por ditadores.
Caminhei bastante pelo centro histórico de Belém. O forte do Castelo, a Casa das Onze Janelas, a praça da catedral, o museu de Arte Sacra, o mercado Ver-O-Peso, as tendas de alimentos, artesanatos, garrafadas, peixes, açaí, polpas. Destaque para os comes e bebes no balcão, especialmente peixe frito ou camarão, acompanhado da cuia de creme fresco de açaí, sem açúcar, à paraense. E a centrífuga bem em frente, produzindo, a todo instante, aquele creme divino assim que a tigelona baixasse de nível.
Encerrei Úrsula, livro de Maria Firmina dos Reis. Escrita rebuscada demais. Enredo romântico e dramático ao extremo. Abordagens ingênuas e religiosas do começo ao fim. Tá, o livro é de 1859. Tá, a autora denuncia a escravidão, ainda que em curto trecho, numa época em que ninguém o fazia, ainda mais uma mulher. Descontos à parte, o livro vale somente para estudiosos da história da literatura. Ou para os que buscam referências, embora breves, aos crimes do comércio de escravos e da própria escravidão. No entanto, longe do tema e enredo central do livro, as reflexões sobre a escravidão se dão em poucas e pequenas passagens.
Em fim da tarde o ônibus praticamente vazio, confortável, com o ar condicionado em temperatura civilizada, partiu rumo ao Piauí.
Pela BR-316, depois de parar em Capanema para o jantar, o ônibus atravessou a ponte sobre o rio Gurupi e alcançou a primeira cidade do Maranhão, Boa Vista do Gurupi. E logo adormeci.
O trecho maranhense da estrada rendeu sacolejos do veículo em razão dos buracos e irregularidades da pista. Após margear várias cidadezinhas, inclusive Zé Doca, entrou na rodoviária de Santa Inês pouco antes do amanhecer. A partir daí, estrada estreita, embora de nome BR-222, se apresentando mais conservada. Valeu por se livrar do tráfego pesado das rodovias principais e tomar contato com o nordeste do Maranhão. Desembarcaram e embarcaram passageiros nas inúmeras paradas, como Vitória do Mearim, Arari, Miranda do Norte.
Os babaçuais reinavam na paisagem aplainada, eventualmente cortada por serrotes também coalhados de babaçus. A maior concentração dessa palmeira ocorreu entre Vargem Grande e Chapadinha, onde placa no acostamento indicava uma das associações de quebradeiras de coco, mão de obra baratíssima que gera matéria prima para a indústria de óleo, cosméticos, farmacêutica, produtos de limpeza. As quebradeiras se defendiam como podiam dos fazendeiros e do agronegócio que ansiavam pelas terras e pela devastação dos babaçuais. Nesse mesmo trecho da estrada abundavam casas de taipa e cobertas de palha da palmeira. A despeito do charme, bucolismo e singeleza dos moradores, refletiam as más condições de habitação do maranhense, povo tão massacrado por séculos de oligarquias medievais. O progressista governo do estado, no começo do segundo mandato, ainda batalharia muito ao lado do povo para superar a miséria catastrófica da população.
Entre as cidades de Anapurus e Brejo, a monocultura extensiva, empregando pouca mão de obra e muitos agrotóxicos. Marcas de fornecedores estrangeiros, presença de transnacionais, ao lado de comércio com nomes e referências gaúchas. O agronegócio em todo o Brasil jamais beneficiou a população. Só trouxe miséria para a maioria e o enriquecimento de poucos.
Meia hora depois de atravessar o rio Parnaíba, e entrar no estado do Piauí, pela BR-343, o ônibus estacionou na rodoviária da cidade de Parnaíba.
À noite andei pela avenida São Sebastião, o destino noturno dos parnaibanos, larga e extensa, com amplo canteiro central, arborizado na forma de duas alamedas de árvores, mais calçadão de ambos os lados. Próximos à rotatória movimentada, quiosques, pontos de espeto, sanduíches, grelhados, tanto no canteiro central como na calçada, um ao lado do outro, ao ar livre, atraindo a população e alegrando a noite do norte piauiense.
Encontrei restaurante de cardápio variado, em ambiente sério, elegante. Quinhentos gramas de maminha ao ponto, suculenta, macaxeira cozida, pão com alho, farofa e vinagrete. Lentamente, prazerosamente, não deixei ciscos sobre pratos e travessas.
Pela manhã, na região central, reconheci pontos onde eu frequentava até minha última visita doze anos antes. A praça Santo Antônio, com casario imponente, construído no início do século XX. Mais adiante a praça da Graça, a principal de Parnaíba. Igrejas pesadas, comércio em volta, pessoas tomando a fresca nas sombras dos bancos. Dali ao rio Igaraçu, braço do rio Parnaíba, o miolo antigo da cidade, mal conservado, muita coisa em ruínas e abandonada. Era a região do Porto das Barcas. Revi a avenida Getúlio Vargas, estreita, outrora minha favorita para as flanadas noturnas, sob as árvores farfalhando ao vento e o silêncio do casario então residencial.
Peguei transversal a fim de atingir a margem do rio Igaraçu, na avenida Beira Rio. Bares e restaurantes isolados, a capitania dos portos do Piauí, dois clubes, deserto de gente naquela hora tórrida do final da manhã. Tomei cajuína cristalina para matar parte da sede.
Subi em ônibus urbano rumo à praia da Pedra do Sal, ainda no município de Parnaíba, mas na outra margem do rio, na ilha grande de Santa Isabel, via a PI-116. Pelo caminho, belíssimos carnaubais em zonas alagadas com aguapés. Impossível não se encantar com essas palmeiras típicas do Piauí e de tantos usos para o ser humano. As carnaúbas cresciam principalmente em zonas alagadas e refletidas pela luz do sol, sempre enfeitando a paisagem. Atraentes dunas de areia se erguiam pelos interiores da ilha. Já nas imediações da praia, dezenas de torres coletoras de energia eólica.
continua...

terça-feira, 17 de setembro de 2019

do Acre ao Piauí (parte 5/8)

...continuação
Depois do almoço me dirigi à rodoviária de Macapá, pequena, precária, em obras, sem sanitários. O ônibus velho saiu atrasado, sem banheiro interno, geladíssimo pelo ar condicionado. Abri parcialmente as janelas próximas para contrabalançar. A operação só foi possível devido à velhice do veículo, sem os modernos e famigerados vidros fixos.
E não havia cobrador dentro do ônibus, apenas o motorista. Em ônibus pinga-pinga, para cada passageiro que embarcava no meio do caminho, com o ônibus parado, o motorista cobrava, emitia o bilhete, dava o troco, atrasando demais a viagem.
Saindo de Macapá no rumo norte a estrada penetrou em campos de cerrado, buritizais, matas ciliares de maior porte.
Nas imediações de Porto Grande, o deserto verde das monoculturas de eucalipto, secando igarapés, sugando o lençol freático acima da capacidade de regeneração, afastando a fauna e a flora regional. Crime socioambiental sem máscaras.
Em Ferreira Gomes, a pequena hidrelétrica do rio Araguari, ali largo, caudaloso, o mesmo que em confronto com o mar, em certas épocas do ano, provoca o fenômeno da pororoca, atraindo surfistas e curiosos do Brasil e exterior. Até ali o ônibus trafegava na BR-210, passando então para a BR-156.
Após atravessar o imponente rio Tartarugal, a cidade de Tartarugalzinho, o único ponto de parada para banheiro de todo o percurso. Feia, espalhada, decrépita, a cidadezinha se entupia de empresas evangélicas sequestrando os bolsos e as mentes dos desavisados.
O cerrado reinava absoluto em vastas áreas desertas de seres humanos, de agricultura, de criações de animais. Surgiram serras suaves e a estrada apresentou curvas acentuadas entre ligeiros sobes e desces. Nesse ponto a floresta de maior porte despontava e o verde intenso fascinava os olhos.
Voltou a chover. Sequência de comunidades pequenas e pobres, com embarque e desembarque de muitos passageiros. Em todas elas abundava a praga das facções das empresas evangélicas.
Em cada vila ou cidade, o resgate ou a entrega dos passageiros era praticamente em domicílio, porta a porta. O ônibus rodava uns metros e parava novamente. E assim por diante, com o motorista parando para cobrar, emitir a passagem e dar o troco a cada passageiro que embarcava.
O acesso à cidade de Pracuúba foi ignorado. O ônibus desviou para a rodovia estadual AP-116 a fim de alcançar a cidade de Amapá. Nova série de paradas para embarques e desembarques. Cidade plana, feia, espalhada, Amapá, mantendo a triste sina, estava entupida de facções das empresas evangélicas fundamentalistas. A lavagem cerebral dos ingênuos, e dos bolsos deles também, não tinha limites ou pudores.
Chovia forte em noite avançada ao entrar em Calçoene. Após incontáveis paradas pelas ruas, desembarquei em frente à pousada. Encarei a chuva interminável e jantei bem em restaurante perto do hotel. Fui de arroz, feijão preto, farinha, filé de gurijuba, saboroso peixe local.
Ao lado da pousada, espetáculo de horrores, gritos histéricos, berreiros, choros, música insanamente alta. Era o fim do mundo dentro de uma facção qualquer do fundamentalismo evangélico. Além dos mandachuvas pilantras, ovelhinhas entregavam as consciências e os bolsos para os chefes do crime organizado do comércio da fé.
Tirei toda a roupa molhada e as estendi pelo quarto do hotel. Lá fora, a chuva caía firme e forte, sem parar. Adormeci ao doce ruído da água, despencando dos céus sobre Calçoene, uma das cidades brasileiras de maior índice pluviométrico.
Assim como em Tutóia, cidade do litoral leste do Maranhão, que em minha primeira visita cheguei à noite diante do breu e somente pela manhã descobri que dormira de frente para o mar, em Calçoene também desembarquei à noite, sob a chuva torrencial que tampava a visão e abafava outros sons. Pela manhã, descobri extasiado que o hotel ficava de frente para as águas cristalinas do rio Calçoene, cuja margem oposta se cobria de floresta de grande porte, entre aningas, cipós, árvores bem desenvolvidas. E, a jusante, rochas formavam corredeiras e pequenas quedas d’água, enriquecendo a paisagem, massageando os ouvidos, lavando a alma já lavada pelo visual ao redor.
Barcos de pesca oceânica, de formatos e propostas distintas dos equivalentes pesqueiros fluviais, estavam atracados abaixo das corredeiras. Pescadores reparavam eventuais danos das embarcações, consertando e revisando longas redes de arrasto.
Muitas construções de madeira, com esteios para erguer as casas e protegê-las das águas raivosas durante o inverno amazônico. Ruas de cascalho ou de asfalto esburacado. Bastante barro e lama pelas chuvas constantes. O clima instável vira e mexe trazia garoas ou precipitações mais intensas.
Desenhei a pé grande círculo pelo lado leste da cidade, procurando não me afastar da margem do rio. Em várias paredes das construções, comerciais e residenciais, a frase “compra-se grude”. Grude era a membrana fina e interna de alguns peixes de água salgada. Era retirada, secada e amarrada em sequência de cordões. A China comprava a totalidade da produção a fim de utilizar na alimentação dos chineses, sobretudo em sopas, e na indústria de cosméticos.
Saído ainda criança da cidade de Miguel Alves, agreste piauiense, o funcionário da pousada, acompanhado de toda a família, foi morar no oeste maranhense, região de Zé Doca, Araguanã e Nova Olinda do Maranhão. O pai não se deu bem com as mudanças de clima, da posse e trato da terra, antes própria e depois arrendada. Adoeceu e se invalidou para o trabalho. Se seguiu então a diáspora da família. Ele veio ao norte do Amapá, num programa de transferência de maranhenses esfomeados, considerados sem futuro no Maranhão. Vivia com a mulher e filhos em Cunani, distrito ao norte de Calçoene.
Choveu praticamente a tarde toda e no começo da noite. Estiou mais tarde, permitindo aos moradores saírem da toca no sábado à noite. Movimento pequeno ao redor da grande, descuidada e abandonada praça da igreja Matriz. A lua no alto do céu ameaçava, timidamente, ultrapassar as nuvens e dar o espetáculo prateado.
Enquanto tomava o básico café da manhã da pousada, três policiais rodoviários federais, hóspedes também, saíram para o serviço fortemente armados, nas pernas, quadris, costas, sem mencionar a metralhadora a tiracolo. Entraram em caminhonete cabine-dupla, toda equipada para as devidas funções, partindo estradas afora. Investigavam entrada ilegal de armas no Brasil pela Guiana Francesa. O garimpo de ouro na região do Lourenço era alvo constante de ações policiais, que resultaram na prisão do prefeito de Oiapoque e de um promotor de justiça.
Dei grande volta pela metade oeste de Calçoene, margeando parte do rio, até o asfalto de entrada da cidade. Depois contornei ao início da estrada de chão que levava à praia do Goiabal, a vinte e dois quilômetros e, via outro ramal, prosseguia ao parque arqueológico do Solstício.
Depois de contemplar mais as corredeiras do rio Calçoene, me sentei na frente da pousada. Entre conversas com o piauiense eu apreciava o vaivém dos moradores, em carros, motos e, principalmente, bicicletas.
Não choveu à tarde e sim esquentou. Os mosquitos, carapanãs, piuns e afins, se assanharam. Até ameaçou por do sol naquele poço de umidade. À noite, sim, choveu tudo e mais um pouco. Depois a lua apareceu e despontaram estrelas. Doce e breve ilusão. Em menos de dez minutos mudou tudo novamente. A chuva, fraca ou forte, sempre vinha ajudando a esvaziar as ruas já esvaziadas de Calçoene.
Pela manhã subi na garupa da moto de senhor idoso rumo aos vinte e dois quilômetros de estrada encascalhada e trechos com barro mais mole. Pequeno movimento na estrada, uma ou outra moto, um carro, uma senhora de bicicleta, sentada no chão, esperando por ajuda devido ao pneu traseiro furado. Campos de cerrado, buritizais, cursos d’água com matas ciliares, áreas extensas e completamente alagadas já mais próximas à praia. Nesses trechos alagados, cobertos por aguapés e cortados por igarapés sinuosos, apareciam criações de búfalos.
O motoqueiro era politizado e ciente da exploração e opressão como trabalhador rural. Sempre se referia a contatos proveitosos com a Pastoral da Terra. Acusava paulistas e gaúchos de comprar todas as terras boas a preços ínfimos. E resistia bravamente, tentando convencer do mesmo os colegas restantes.
A praia do Goiabal se abria ao norte da foz do rio Calçoene. A maré baixa afastava da visão as águas do mar. Sequência de casas de aluguel, padronizadas e de madeira, um bar e restaurante fechado, e na ponta a borda de uma fazenda de bois e búfalos.
Assim que apeei da moto, os maruins, piuns minúsculos, atacaram pés e pernas, sem dó nem piedade. A picada era intensa e ardida. Eu somente as notava depois do estrago feito.
Circulei lentamente por região sem acidentes de relevo, avançando pela areia umedecida, e perto do igarapé que trazia água doce para o mar. Na direção leste, o vazio, a imensidão, o nada, em tons cinzentos a esbranquiçados, sem sinal das águas do mar. Nem me sentia em praia marinha.
Conversamos com morador local sob a sombra do alpendre do bar fechado. A maré, lentamente, muito lentamente, começava a encher. As conversas giravam em torno da posse da terra na praia, de eventuais projetos turísticos para atrair visitantes, e não apenas durante as festas regionais do final de julho.
Voltamos a Calçoene para o almoço. A turma do ICMBio, que praticamente lotou o hotel para treinamento regional, trouxe comida e material de cozinha, jantando na própria pousada.
Havia poucos ônibus de Calçoene a Macapá. Os horários eram inconvenientes, pela madrugada, vindo de Oiapoque, sem hora certa para chegar, fato agravado pelos atoleiros ao longo da estrada de chão ao norte de Calçoene. Opções eram os piratas, lotações não oficiais que transportavam esmagados os passageiros à capital. Também não partiam em horários marcados, aguardando encher o veículo, mas se programavam para o triste horário das 5h da madrugada.
Surgiu a carona com o dono da pousada, o sessentão de cabelo curto e tingido de preto, baixo e arredondado, rosto esférico e expressão do tipo la-garantia-soy-yo.
O asfalto com raros buracos e irregularidades da BR-156, e depois BR-210, garantiu viagem tranquila. Durante o trajeto, o la-garantia-soy-yo, aposentado como delegado de polícia e advogado, tagarelou sem parar. Explicava o óbvio como se fosse a novidade do século. Exagerava nos detalhes inúteis. Eu virava o rosto para a paisagem lateral. A moça no banco de trás, ciente da peça indigesta que se encontrava ao volante, entrou muda e saiu calada.
Ao desembarcar, Macapá apresentava temperaturas muito superiores, e ar mais seco, do que as de Calçoene.
O dia seguinte foi de luta pela educação em todo o Brasil., com greves e manifestações de rua. Macapá parecia feriado de tão morta. As lutas contra os cortes arbitrários e criminosos no orçamento da educação no Brasil ocorreram na praça do Governo, centro de Macapá. Reuniram milhares de manifestantes animados a resistir até o fim.
Circulei pelo calçadão da orla do rio Amazonas, na avenida Beira Rio. Cobri da estação de captação de água ao trapiche Elyeser Levy, parando no pequeno porto, com algumas embarcações, e nos arredores da fortaleza de São José de Macapá. Observei a maré baixa, com os barcos encalhados na areia úmida, em seguida a flutuar nas águas do rio à medida que a maré subia rapidamente. No porto, o navio “Doutora” reunia figurões da administração municipal de Macapá. Tinha até tendas para comes, bebes e discursos no cais de cimento.
Imensos navios cargueiros estacionados distantes. Pequeno movimento no calçadão, já quente e abafado, apesar do pouco sol. Ao meu lado a jovem obesa contava longa estória para os colegas, que não lhe tiravam os olhos e os ouvidos. Eram estórias cheias de reviravoltas, ameaças, violências, injustiças, ternuras, arrependimentos. Ela impunha ritmo leve e cadenciado, sem perder o fio da meada, sem deixar perder a atenção da audiência. Incrível como atraem os assuntos que envolvem amor e ódio, violência e paixão, ternura e crueldade. Sempre assuntos privados, e dos outros. Nem sei se os ouvintes se importavam com a veracidade dos fatos. Apenas se deixavam levar, se emocionavam.
A cuia de açaí encerrou o almoço em local ventilado naturalmente, de frente para o rio. A paisagem infinita do rio Amazonas reinava absoluta na visão e nas emoções.
continua...

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

do Acre ao Piauí (parte 4/8)

...continuação
Ao entardecer desci à orla para contemplar o por do sol nas escadas diante do rio. Vivas ao urbanismo de Santarém, pelo menos nesse trecho, se abrindo às águas do Tapajós! Compareciam pescadores, atletas e aspirantes, estudantes, casais, grupos, gaúchos agarrados ao chimarrão.
Emendei no bar e restaurante instalado em plataforma de madeira que avançava sobre as águas do Tapajós. Além de duas caipirinhas detonei prato com maniçoba, vatapá, arroz com toques de jambu e camarão. Morcegos sobrevoavam, aos montes, brincando por entre a iluminação pública, sem sugar o sangue de ninguém.
Durante a chuva da manhã me refugiei sob a marquise. Bem na frente, cruzamento sem semáforos, com faixa de pedestres. Tráfego intenso. Os motoristas, de carros, ônibus, motos, caminhões, cediam constantemente passagem aos pedestres. Trânsito educado e não agressivo, na prática.
Em restaurante especializado em peixes abri o apetite com duas caipirinhas pequenas e saborosas e emendei com caldeirada de tucunaré, imensa, de peixe inteiro. Arroz branco e pirão acompanharam a tigela que mais parecia balde, repleta de caldo, legumes, batata, quatro ovos cozidos e todos os pedaços do tucunaré. Saí com dores no abdómen de tão estufado.
À noite, sorvete de açaí com tapioca e nada mais. Volta leve pelo sempre animado e bem frequentado calçadão da orla de Santarém. Vaivém variado e divertido, além das famílias e grupos que se estabeleciam em cadeiras trazidas de casa ou nas escadarias diante das águas do rio Tapajós.
Embarquei em navio ao Amapá no meio da tarde, no flutuante em frente à praça Tiradentes. Comecei a ler Úrsula, livro de Maria Firmina dos Reis.
O amapaense de Laranjal do Jari desembarcaria em Almeirim, de onde pegaria lotação até Monte Dourado, atravessaria de canoa o rio Jari e chegaria, finalmente, ao destino. Segundo ele, o Beiradão, o famigerado Beiradão de Laranjal do Jari, ainda provocava assassinatos eventuais. Nada comparado com décadas antes. Mas, mesmo assim, como bem salientou:
“Se o sujeito vacilar, morre.”
O senhor de Oriximiná iria visitar as filhas em Macapá. Politizado, atuante, brilhou naquele mar de alienação, despolitização, resignação, conformismo e submissão ao fundamentalismo evangélico de muitos passageiros. Pouco antes da partida, surgiu passageiro setentão e encostou por ali. Escolheu o colega de Oriximiná para puxar conversa, em voz baixa. Deu para eu ouvir, entre os sussurros, a ladainha fundamentalista. Autoritário, o setentão não permitia que o oponente se manifestasse, impondo frases mal decoradas e tentando cooptar o senhor de Oriximiná. Mais tarde soube que o evangélico agressivo não se deu bem. Nada como o conhecimento para derrotar os fanatismos.
O navio zarpou à tardinha, deixando para trás a acolhedora Santarém dourada pelas luzes do fim da tarde. Mais adiante, o alaranjado do por do sol sobre as águas da popa.
Antes de escurecer, quando Santarém ainda aparecia no final do horizonte oeste, foi servida a tradicional sopa das primeiras noites de barco. Cada passageiro recebeu a tigela de sopa encorpada com legumes, macaxeira, pedaços de rabada. Acrescentei a farinha grossa para dar mais sustância.
Três horas depois da partida ainda se notava o clarão de Santarém no horizonte da popa. Acima, céu escandalosamente estrelado. No horizonte da proa, a leste, relâmpagos, muitos relâmpagos. Seria naquele trecho perigoso, após a parada em Monte Alegre, o local da pior tempestade fluvial que eu já enfrentara quatorze anos antes?
Parada de meia hora em Prainha enquanto começava a amanhecer. Desembarques mais numerosos que embarques.
Logo em seguida serviram o café da manhã. Nada de boca livre como antes. Cota única por passageiro. Pão com queijo e presunto, maçã, fatia de mamão, fatia de melancia, copo descartável (para contribuir com a poluição) de café com leite adoçado.
Nas redes, ou nos bancos laterais, um ou outro passageiro lia a bíblia. Alguns, sobretudo mulheres, jamais deixavam as redes. Recebiam as refeições trazidas por acompanhantes e comiam ali mesmo. Circular pelos pisos da embarcação seria coisa do diabo para os fundamentalistas?
O navio navegava em água grande. As margens do rio Amazonas se afastavam para bem longe. Ilhas alongadas e alagadas surgiam vez ou outra. Houve desembarque de passageiros, com bagagens e tudo mais, em voadeiras que se aproximavam vindas de dentro de lagoas ou paranás onde se abriam pequenas comunidades. Ao fundo, serras alongadas contavam com escarpas significativas. Nas águas, canaranas boiavam à deriva. Nas margens aningas se destacavam imensas. Pássaros sobrevoavam o navio. Os horizontes, cada vez mais distantes.
O navio atracou no meio do dia em Almeirim. No alto do barranco, no ponto mais visível e destacado, sede de filial de empresa evangélica, roubando bolsos e mentes da população, ainda mais depois que a corporação passou a fazer parte do governo federal, o mesmo que corta investimentos em previdência, educação e saúde para o povo. O crime lhes tirava a máscara e mostrava para quem quer ver o real papel desempenhado pelos fundamentalistas contra a sociedade. Tanto que a letra “d”, usada no nome das empresas do ramo, mais se encaixa com diabo ou demônio, jamais com deus.
Almeirim era mais uma cidade amazônica dependente de quase de tudo de fora. Não criava e nem cultivava praticamente nada. Bastava observar as inúmeras cargas do navio deixadas no porto da cidade: legumes, verduras, frutas, temperos. Os ricaços da cidade, aí incluídos os empresários do fundamentalismo evangélico, deviam lucrar bastante com a penúria alimentícia de Almeirim e de tantas outras cidades ribeirinhas da Amazônia.
Assim que o navio apitou para partir foi servido o almoço. Um prato por pessoa com arroz, macarrão, duas fatias de carne assada. Nas mesas do refeitório, livres em quantidade, feijão, salada com maionese, salada de verduras cruas, farinha, abacaxi fatiado.
Após a foz do rio Jari, na margem esquerda do rio Amazonas, o navio entrava em águas do estado do Amapá.
O senhor de Oriximiná, orgulhoso e ativo na vida, me mostrou, pelo celular, pirogravuras de própria autoria com motivos locais. Garantiu que mais de cem delas jaziam guardadas em casa para futura exposição. Lhe doei o livro O Livro de Ouro da Amazônia, de João Meirelles Filho. Ele agradeceu comovido e me pediu dedicatória. O livro, adquirido em sebo, já possuía uma, de não sei quem para não sei quem. Pus a minha na contracapa.
Durante o jantar cada passageiro recebeu prato com arroz, macarrão, pedaço generoso de frango assado ou de peixe. Da mesa, livre para todos, salada crua, feijão, farinha, fatias de abacaxi.
Do lado de fora chuva forte, mas nada de tempestade ou vendavais. O navio nem sentia o tranco das águas agitadas e crespas do rio Amazonas.
Pouco depois da meia-noite o navio atracou no porto privado do Grego, em Santana, Amapá, cidade vinte quilômetros a sul da capital. Nem saí da suíte. Os ruídos do desembarque, de carga e principalmente de passageiros, reverberando pelas estruturas metálicas da embarcação, me fizeram oscilar entre sono leve, vigília, breves cochilos. Assim foi até o amanhecer. Fechei toda a bagagem e fui verificar o restante do navio. Menos de dez passageiros permaneciam nos pisos das redes. Aguardavam, como eu, clarear de vez e espantar o perigo dos arredores do porto, para irem embora.
Percorri a distância entre as cidades de Santana e Macapá, com direito a cruzar a linha do equador pela zona sul da capital amapaense e entrar no hemisfério norte. Embora o traçado da cidade fosse quadriculado, com ruas longas e normalmente de mão única, os ônibus urbanos ziguezagueavam, em vez de seguir direto ao destino, a fim de pescar mais passageiros e faturar mais. O tempo de percurso, óbvio, aumentava bastante.
Macapá, no geral, apresentava esgotos a céu aberto, canais e igarapés poluídos, mato crescido nas calçadas. Aliás, as calçadas macapaenses eram casos à parte. Cada imóvel construía a própria calçada, do jeito que bem entendia, na altura, inclinação, material do piso, ou simplesmente não construía nada, largando a terra, as pedras, o mato, os buracos se fingirem de calçada. Caminhar por elas ou pela ausência delas era saltar obstáculos, muitas deles instransponíveis. Os pedestres, de todas as condições físicas, eram obrigados a andar pela rua. Ainda bem que o tráfego de Macapá era respeitoso, não agressivo, gentil, parando nas faixas de pedestres ao sinal do braço. Os prédios no centro comercial, baixos na maioria, se apresentavam mal conservados, quase caindo aos pedaços, sem preocupações com a aparência e, provavelmente, com o conteúdo. Por outro lado, o açaí, o camarão, a oferta de alimentos variados, abundavam na cidade. A influência indígena e africana concorria para aperfeiçoar os pratos da culinária regional.
Ao sair para jantar, já noite avançada, conversei com paulista de São Bernardo a trabalho em obras civis no quartel do exército. Estava pessimista em relação ao futuro social do Brasil. Tinha votado na extrema-direita porque ela representava a mudança. Fora eleitor e simpatizante petista durante anos. E considerava todas as medidas do governo da extrema-direita ruim para o Brasil e os brasileiros.
A orla de Macapá, ao longo da avenida e calçadão da margem esquerda do rio Amazonas, por quilômetros e quilômetros, não tinha preço. Gente caminhando, correndo, se exercitando, perambulando, namorando, aproveitando o relativo frescor da noite. E havia o antes e o depois da fortaleza de São José de Macapá. Trechos frequentados, outros vazios, escuros, privativos, silenciosos. Ao norte da fortaleza, quiosques, trailers, comes e bebes, frequência variada e discreta, mas que sempre cumprimentava, bom dia, boa tarde, boa noite.
Jantei caldeirada de tucunaré em restaurante cuja vista do rio pelas imensas e transparentes vidraças fascinava entre mordidas no peixe e goles nas caipirinhas bem preparadas. Frequência triste nas outras mesas, com exceção a de almirantes e afins na enorme mesa reservada ao lado. Saí antes de o álcool fazer efeito e de eles soltarem a franga.
Nos quarteirões contemporâneos de Macapá, ao lado de construções modernas, ainda havia casas de madeira, com estilo, aspecto e conservação de algo velho, antigo, dos primórdios da capital do antigo território federal do Amapá. E nessas casas morava gente, como se o tempo não tivesse passado. Testemunhos de outros tempos, resistindo às engrenagens que elimina o que é considerado obsoleto e ergue o que é supostamente moderno e eficiente.
Longa caminhada pela cidade plana até o museu Sacaca. Aberto gratuitamente ao público, local de eventos voltados à educação e questões socioambientais, ocupando todo o imenso quarteirão, o museu exibia espécies da flora nativa da Amazônia, quelônios, pássaros, em ambiente natural, ao ar livre, junto a inúmeras representações de cenas ribeirinhas, como casa da parteira, casa do castanheiro, casa do seringueiro. Também ali, diversas culturas que compõem o povo amapaense, entre elas os negros da região de Mazagão e Curiaú, emprestando à região a cultura de parte da África, as canções e danças do marabaixo, por exemplo. Um barco, o regatão, se deslocava sobre curso d’água a fim de mostrar como era o comércio nos velhos tempos na floresta. Ligado ao Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá, responsável por fomentar e divulgar a produção científica e tecnológica local, que era vasta e amplamente reconhecida, o museu Sacaca corria sérios riscos de sobrevivência em razão das ações criminosas do regime de plantão no governo federal. Antes dessa calamidade, porém, os visitantes poderiam aprender bastante com os amapaenses.
À noite jantei bem, regado a duas razoáveis caipirinhas. Sentado em mesa ventilada na calçada eu pude ver através do vidro a festa de noivado, como aliança e tudo mais, em longa mesa interna. O garçom que me atendeu, trintão, não registrado em carteira, somando oito filhos de três mulheres diferentes, rodara bastante pelo Brasil. Com a esposa do momento, grávida, planejava se mudar para Londrina. Falava como grande administrador da própria vida, das próprias finanças. Dei corda e ele deitou a contar a vida, passada, atual e futura.
Choveu forte durante a madrugada inteira. Água, muita água. Nada de relâmpagos, raios ou trovões. Só água.
continua...