...continuação
Mas que boa e variada culinária era oferecida nos
restaurantes de Porto Velho! À noite transbordei de felicidade em restaurante
de comida capixaba. Duas caipirinhas, grandes e fortes, regaram a moqueca de
tambaqui acompanhada de arroz, pirão e farofa fenomenal na manteiga. O peixe da
moqueca, por motivos óbvios, era fluvial e não marinho.
Tempo de seguir viagem, rumo a Manaus. Durante o voo
vislumbrei o vale do rio Madeira, repleto de braços, paranás, furos, ilhas,
várzeas alagadas, lagos. Avistei o traçado da BR-230, a rodovia transamazônica,
e também trechos da BR-319, intransitável naquela época do ano. Ao se aproximar
do pouso, a imagem completa da foz do rio Negro, do rio Solimões, do encontro
das águas, o prosseguimento no rio Amazonas, os estuários, as zonas alagadas, as
águas escuras e límpidas do rio Negro. E a cidade de concreto e asfalto se
exibiu de ponta a ponta, inclusive a extensa ponte atravessando as águas negras
e conectando Manaus a Manacapuru, Iranduba, Novo Airão.
À noite encontrei com amigos no miolo do largo de São
Sebastião, próximo à entrada do teatro Amazonas. Caipirinhas, bolinhos de
pirarucu, isca de pirarucu, pastel de sabores variados, e, sobretudo, muitas e
boas conversas sobre os mais diversos assuntos.
Após substancioso café da manhã desci para a beira do rio
Negro, no porto da Escadaria, a fim de mergulhar naquela babel fascinante,
naquela bagunça organizada, naquele caos irresistível, entre dezenas de navios,
barcos, canoas, lanchas, passageiros, carregadores, cargas, vendedores de
passagens, de comes e bebes, de serviços.
Ao anoitecer ensaio técnico do boi Caprichoso nos
interiores do histórico clube Rio Negro. A ala integrante de Manaus, que iria
se apresentar em Parintins, ali estava, mais a marujada dos instrumentistas, a
torcida, admiradores, curiosos. O público se distribuía informalmente ao redor
das piscinas, iluminadas pela imensa lua cheia da semana santa. O som, as
toadas, os ritmos, as coreografias seguidas à risca pelos dançarinos e
admiradores, mantinham a batida monótona, as letras de exaltação, os movimentos
repetitivos, às vezes quebrados por coreografias indígenas ou negras.
Ao lado dos amigos fui a flutuante à montante da Ponta
Negra, quase na boca do igarapé Tarumã no rio Negro. Pelo caminho, verdadeiros
caminhos de rato, sem áreas públicas, sem árvores, sem sombra, sem praças,
expondo a Manaus do concreto e asfalto, a Manaus que não É quente, mas Está
quente, em razão do urbanismo estúpido ou, pior ainda, pela falta dele. No
flutuante, o principal, as águas escuras e mornas do rio Negro para desfrutar à
vontade. O pouco sol e o vento mantiveram o ar quente, mas não tórrido.
Acordei bem cedo e fui à Balsa Amarela, no porto da
Escadaria, bem em frente à feira da Manaus Moderna. Embarquei no ferryboat de três pisos completos, mais
o de Lazer com o bar e lanchonete, coberto, e outro acima, descoberto. Conversei
com o passageiro da suíte ao lado. Morava sozinho em Manaus, sem trabalhar ou
estudar no auge dos vinte e poucos anos. Vivia só nas noitadas sem regras e sem
horários para acabar. Iria visitar a mãe em Alenquer.
Partida no meio da manhã. Uma hora depois o barco cruzou o
encontro das águas dos rios Negro e Amazonas. A embarcação, como regra nas
viagens de baixada, navegava pelo canal do rio, afastada das margens e das vistas
mais atraentes. A maioria dos passageiros se mantinha nas redes. No bar, a
música alta não poderia faltar, na base de Wesley Safadão e congêneres, a banda
007, aquelas duplas sertanejas, iguaizinhas umas às outras, em que eles imitam
voz de menino chorão e elas imitam voz de homem.
Duas voadeiras provenientes das comunidades ribeirinhas do
rio Amazonas encostaram para vender comes diversos, entre queijo, bananas
chips, doces variados. Os passageiros se esbaldaram.
Ainda no começo da noite, perfilou ao norte a cidade de
Itacoatiara, a segunda maior do Amazonas em população.
Acordei antes de clarear. Exceto o som do motor e do
deslocamento das águas do rio Amazonas, ambos leves, nenhum ruído na
embarcação. Amanheceu nublado, cinzento, com nuvens escuras e espessas, e garoa
fraca. As lonas de proteção, contra chuva e vento, estavam arriadas nas
laterais dos pisos.
Debaixo de chuva fina o barco atracou na balsa flutuante
de Juruti, já no estado do Pará. Poucos passageiros no embarque e desembarque.
Descarga de refrigerantes e alumínio laminado.
O rio Amazonas se encontrava bem cheio. Zonas alagadas
apareciam nas margens de terra firme e, sobretudo, nas ilhas alongadas.
No meio do dia o barco atracou na acidentada e dotada de
construções históricas cidade de Óbidos, na margem esquerda do Amazonas. Era o
ponto mais estreito do rio, com “apenas” mil e oitocentos metros de largura.
Por ser ponto afunilado, obrigando todas as embarcações a passarem pelo mesmo
trecho, a polícia federal e a força nacional montaram base na cidade. A
vistoria era em todos os setores, porém superficial.
Permaneci no piso de Lazer, admirando a imensidão da
paisagem, entre muita água e distancias quilométricas. Contemplei as margens
próximas do paraná por onde o barco seguia. Zonas alagadas de ambos os lados. A
sabedoria cabocla driblava as cheias através das palafitas. Criações de animais
seriam transferidas para terras mais altas. Meios de transporte naquela estação
do ano, somente barcos, canoas, voadeiras, lanchas.
No final da tarde o barco atracou no lotado cais de Alenquer.
Após manobras com pouco espaço disponível o navio encostou em outra embarcação,
para, através dela, os passageiros atingirem a terra firme.
Pelo menos ali no centro, Alenquer contava com ruas
estreitas e extensas, seguindo traçado quadriculado, calçadas altas e valetas
profundas e abertas para escoar as águas pluviais e o esgoto. Trailers,
lanchonetes e bares funcionavam com poucos clientes próximos ao cais, de onde
se preparava para partir o barco rumo a Santarém.
Instalado em sobrado antigo, estreito e alongado, o hotel
servia delicioso café da manhã em única mesa retangular. Os hóspedes se sentavam
lado a lado, dividindo a farta e variada comida ali disposta.
Subi no morro do cruzeiro, de onde se tinha visão
panorâmica da cidade, sobretudo do centro velho, das zonas alagadas, do paraná,
dos barcos, do horizonte, e também, do lado oposto, da cidade nova, arborizada,
mas sem graça como quase tudo que é novo e construído às pressas.
A frente da cidade sofria com constantes inundações no
final do inverno amazônico, obrigando os moradores a se reposicionarem em
terras mais altas. Bancos, comércio, os correios, residências, serviços,
fugiram para longe das belezas da natureza. A primeira rua paralela ao paraná
estava inundada a leste e a oeste do hotel.
Mas era ali onde se encontrava a parte mais interessante da
zona urbana de Alenquer. Construções do início do século XX se espalhavam em
ruas estreitas, tais como as escolas tradicionais, a igreja Matriz, o prédio da
prefeitura, armazéns fechados. E, claro, a própria orla do paraná, em meio a
barcos, canoas, flutuantes, comércio simples, bares e restaurantes
saborosamente suspeitos, trailers de lanches, o vaivém de passageiros e cargas.
Depois de me deliciar com a caldeirada de tambaqui, sentei
na entrada do hotel, de frente para a rua. Logo o marido da proprietária se
achegou. A despeito de falar pelos cotovelos, sem pontos ou vírgulas, ele descreveu
as atividades pecuárias, em terra firma no inverno, nas várzeas durante o
verão, de gado e búfalo, relatando todo o processo de fabricação, da manteiga,
queijo, carne. A zona rural do município de Alenquer produzia e vendia para
outras regiões do Brasil farinha de mandioca, cacau, limão, castanha, cumaru,
carne de boi e de búfalo, laticínios de vaca e búfala.
No meio da madrugada a chuva desabou com vontade. E ainda
caía no começo da manhã ao acordar.
Acessei o longo trapiche do porto da cidade, todo em
concreto, se projetando cem metros sobre as águas do paraná. A ele se somava
construção grande em terra, coberta de telhas, contendo bilheterias,
lanchonete, sala de espera, sanitários, e a ponta, sobre as águas, também
coberta de telhas, com bancos, rampas laterais, nível abaixo a ser usado na
estação seca. Mas, porém, contudo, todavia, todo o porto estava interditado
havia anos, e logo após a inauguração. As más línguas afirmavam que caminhões
acima do peso, entraram e danificaram as estruturas do trapiche. E foi largado
às traças logo em seguida. Enquanto isso Alenquer era obrigada a enfrentar lama
e poeira em cais improvisado.
Um membro de facção qualquer do comércio evangélico,
repleto de frases decoradas e vazias, típicas de fundamentalistas, me jurou que
na empresa deles não se fazia política, porque não devia fazer tais coisas no
templo. Alardeava tais mentiras com a maior cara de pau. Como uma corporação do
fundamentalismo evangélico, incrustrada no governo federal, além dos estaduais
e municipais, nos legislativos e judiciários, mamando e influenciando, alegava
que não fazia política?
Embarquei em lancha com destino a Santarém. No televisor
da proa, o lixo estadunidense padrão. Melhor admirar a paisagem fluvial pela
janela.
O trajeto passou por paranás e furos estreitos, contando
com casas isoladas e alagadas. Pássaros de diversas cores e tamanhos voavam
rasantes. Garças, pássaros pretos, aguardavam comida sobre as canaranas
flutuantes. Nos momentos em que navegou sobre o leito principal do rio Amazonas
a lancha enfrentou turbulência típica daquele curso que nunca repousa e sempre
se agita.
Pela manhã caminhei lentamente pelo calçadão da orla
fluvial de Santarém. Barcos pequenos partiam a comunidades próximas, lotados de
passageiros de sábado. O calçadão, embora ainda incompleto, percorria extensa
faixa da orla na margem direita do Tapajós. Delícia perambular por ela, de dia
ou de noite.
Depois de almoçar e detonar sorvete de açaí com farinha de
goma de tapioca, eu permaneci horas no último andar do hotel, sob a sombra,
recebendo a brisa refrescante vinda do rio. Vista privilegiada do Tapajós, do
encontro das águas, do Amazonas. Li O
Livro de Ouro da Amazônia, de João Meirelles Filho, contemplei a paisagem, deixei
a mente fluir.
O calçadão da orla do Tapajós ferveu a partir ao final da
tarde. Famílias, casais, grupos, gente só, passeando, conversando, caminhando,
sentados nos bancos, em cadeiras trazidas de casa, em harmonia, convivendo em
paz com as diferenças. Comes e bebes aqui e ali. E de frente para as águas do
rio Tapajós, pelas quais, vira e mexe, passavam barcos, navios, lanchas,
canoas. Grupo de carimbó animava os que trefegavam pelo calçadão e paravam para
ouvir e dançar. Havia trechos do calçadão mais cheios, outros tranquilos ou quase
vazios, mas em todos os quilômetros dele havia gente prestigiando o espaço
público, gratuito, democrático.
Pela manhã andei próximo ao rio, Tapajós no início,
Amazonas depois, embora ainda com águas esverdeadas do primeiro. A área
circundava o porto das balsas de carga, além do terminal de passageiros,
inacabado e solenemente “inaugurado” pelo regime golpista que assaltou o governo
federal em 2016. Além das goteiras,
mofo, excrementos de pássaros, água parada e escura, nada funcionava ali.
Na praça Tiradentes, do outro lado da avenida Tapajós, sob
as sombras refrescadas pelo vento constante, conversei com senhora da zona
rural da cidade de Prainha. Viera entrar com o processo de aposentadoria. O
INSS ainda marcaria perícia para daí a dez dias. Mesmo antes da antipopular
reforma da previdência que o governo fascista e ultraliberal ansiava impor ao
povo brasileiro, beneficiando as corporações capitalistas, principalmente
banqueiros, o regime fazia de tudo para adiar a aposentadoria do povo, um direito
humano elementar. A senhora veio a Santarém de balsa desde Prainha, em viagem
de vinte quatro horas, dormindo em rede. Somente na manhã seguinte retornaria.
Aquela maratona se repetiria tantas vezes quanto necessária para obter a
merecida aposentadoria.
Tomei ônibus urbano com destino a Alter do Chão. Os cerca
de noventa minutos de percurso atravessou as periferias de Santarém, pequeno
trecho da rodovia Cuiabá-Santarém, a BR-163, para logo em seguida entrar na
PA-457, estradinha local, asfaltada e bem conservada. Passou ao lado de
comunidades rurais de São Braz e Cururumã, pela estrada acidentada ao lado da floresta
secundária. Desembarquei em Alter do Chão, pouco antes do ponto final, ao
avistar a igrejinha da praça central.
Dei voltas leves pela beira do Tapajós, bastante alto, vez
ou outra beijando a calçada ou até invadindo a rua. Praias daquele lado,
nenhuma. Na ilha em frente, cartão postal de Alter do Chão, somente nesgas de
areia próximas à elevação do morro. Árvores submersas, areias submersas,
barracas de comes e bebes submersas até quase a cobertura de palha. Vendedores
de passeios, barqueiros, guias, até que ofereciam serviços, mas sem maiores
convicções, cientes da baixa temporada e da ausência de praias chamativas.
Turistas ou viajantes, praticamente nenhum. Hotéis e
pousadas às moscas. Dentre bares e restaurantes, apenas um aberto e recebendo
poucos clientes, entre a pracinha e o rio. Tomei duas caipirinhas e uma porção
de bolinhos de piracuí. Andei pelas ruas arborizadas ao norte, entre casas e
mansões de ricaços, mais voltadas a aluguel de temporada do que frequentadas
pelos proprietários.
Sorvete de açaí e peguei o ônibus de volta a Santarém.
Praticamente todos os prédios altos em construção nos
bairros de Aldeia e Prainha se encontravam com as obras paralisadas. Tapumes
velhos, manchas de umidade nas lajes, nenhum funcionário. Coincidência ou
reflexos da recessão provocada pelo regime iniciado naquele ano?
Subi em ônibus à comunidade de Pajuçara. Antes do destino
final, via estrada de areia, entrou na comunidade de Santa Maria, quieta e
minúscula. Entre os passageiros, alunos de ensino fundamental, indo ou vindo
das escolas públicas dos arredores.
Localizada entre o aeroporto e Alter do Chão, ainda no
município de Santarém, a vila de Pajuçara era pacata e silenciosa, pelo menos
enquanto não se formavam praias no Tapajós. Desci longa escadaria de acesso ao
que seria praia em época de verão. Só havia estreita faixa de areia úmida,
espremida entre as águas do Tapajós e o barranco. Ninguém à vista. Barracas
vazias e cobertas de palha, barcos de passeio amarrados às árvores parcialmente
submersas. Na parte alta, pelas ruazinhas silenciosas, ouvi as professoras
ensinando contas de multiplicação e divisão para as crianças em escolas de bom
aspecto.
Esperei o ônibus de volta enquanto se ouvia nitidamente o
grito dos guaribas vindo das matas ao norte da vila.
Já perto da zona urbana de Santarém, o deplorável conjunto
“habitacional” Residencial da Salvação. Nada havia de residencial, habitacional
ou de salvação naquelas centenas de cubículos claustrofóbicos, tórridos, com
janelas diminutas, todos juntinhos uns aos outros. Um crime enjaular a
população necessitada naquele campo de concentração, sem ventilação, sem
praças, sem áreas culturais ou de lazer. Certamente as construtoras, as
administrações públicas municipais e estaduais, os políticos clientelistas,
ganharam fortunas e prestígio em cima do confinamento de famílias naqueles
caixotes sufocantes. E, triste ironia, muito dos pobres coitados para ali
deslocados se sentiam agradecidos pelo presente da casa própria.
continua...
Muito bom acompanhar o se minucioso relato, Augusto. Fico imaginando as belezas que você viu. E também o sofrimento da população. Triste ver tanto descaso, tanta riqueza natural tão mal aproveitada. Vou lendo aos poucos, viajando nas suas palavras e imagens tão interessantes. Obrigada pelo gentil comentário no meu blog. Um abraço.
ResponderExcluirOi Sônia,
ResponderExcluirObrigado pela visita e comentários.
Se desenvolvemos um olhar, não separaramos as sensações felizes das indignações. Uma não exclui a outra e a viagem se enriquece.
Comente sempre!