sexta-feira, 20 de setembro de 2019

do Acre ao Piauí (parte 6/8)

...continuação
Foram duas horas de ônibus comum para percorrer setenta quilômetros a Mazagão Velho, pela rodovia AP-010. Após o acesso à Santana, vieram os campos de cerrado. Parecendo cruzamento de gado com hipopótamo, búfalos mergulhavam em alagados repletos de buritis, cujas lâminas das águas refletidas pelo sol davam espetáculos de brilho e esplendor. Ao sul do rio Matapi, atravessado por ponte em arco, o cerrado deu lugar à floresta mais úmida. Mais rios, mais pontes, alguns balneários fluviais com banhistas de fim de semana.
Entrada em Mazagão Novo. Cidadezinha planejada e espalhada. Já se notava o aumento de negros, mulatos, cafuzos. Adiante, a rodovia AP-010 mergulhou de vez na floresta úmida, intercalada de campos verdes.
Desembarquei em Mazagão Velho, fundada em 1770, a partir de transferência, pelos invasores portugueses, da colônia de mesmo nome na costa do Marrocos, onde os cristãos guerreavam contra os muçulmanos.
Banhada por igarapé de águas escuras e cristalinas, repleto de árvores, buritizais, aningas, a vilazinha conquistava pela tranquilidade, bucolismo, sossego, beleza do pequeno casario diante do balneário de Matuapá. As famílias colocavam cadeiras na frente das casas para conversar e observar o movimento.
Também de frente ao igarapé, a igreja de Nossa Senhora da Anunciação, ao redor da qual eram celebradas as festividades de São Tiago no final de julho. Maior presença de negros e mulatos, descendentes diretos dos africanos escravizados pelos europeus durante séculos na América.
O lavrador negro cinquentão, devido a problemas renais, parou de trabalhar na roça e apelou à culinária para sobreviver. Com os dentes estropiados como o primeiro, o outro negro já estivera no Marrocos, justamente na antiga Mazagão, atual El Jadida. Ele conhecia bastante das duas Mazagão, a marroquina e a amapaense, e me pincelou parte daquela intrigante história.
Assisti parte do baile no clube, sem paredes, de frente para o gramado e o balneário. Vocalista e teclado com percussão programada tocavam repertório próprio e novo aos meus ouvidos. Alguns dançavam em frente ao palco. Outros assistiam da calçada ou das varandas das casas.
Peguei ônibus para encarar longa viagem de volta a Macapá.
Embarquei pela manhã em Santana em navio rumo a Belém. A suíte contava com ar condicionado, fixado em 16 graus, temperatura indecente até para siberianos. A camareira afirmou a “impossibilidade” de regular a temperatura. Assim como em outros navios eu providenciaria o controle remoto junto à cabine de comando para ajustar às civilizadas temperaturas de 23 ou 24 graus. Das três refeições apenas o café da manhã estava incluído no valor da passagem.
O navio zarpou com poucos passageiros. À tarde começou a balançar. As águas se revolveram sob a chuva fina.  O navio, como regra nas tardes modorrentas, mergulhou no silêncio.
Mais tarde a embarcação penetrou no labirinto de canais, por entre ilhas do arquipélago de Marajó. Oportunidade para apreciar de perto a floresta amazônica, os açaizeiros, esparsas casinhas de madeira na forma de palafitas, a genial solução cabocla. Após trecho em água grande, entrou no estreito e longo canal do Limão.  Dois barquinhos se aproximaram e descarregaram dezenas de sacos de murmuru, fruto pequeno e acastanhado, utilizado como matéria prima na indústria de cosméticos. Das casinhas precárias de ambos as margens saíam canoas, normalmente conduzidas por crianças, na esperança de receber donativos dos passageiros do navio. Mendicância similar àquela do estreito de Breves, ao sul do arquipélago. Além das palafitas, comércio, serrarias, posto de combustíveis. Tudo básico, simples. Nenhuma escola. Nenhum posto de assistência médica. Nenhum centro ou projeto cultural. Mas lá estavam as empresas do fundamentalismo evangélico, aos montes. As mesmas empresas que apoiam e participam do regime contra o povo do governo federal. As mesmas que sugam os bolsos e as mentes dos ribeirinhos asfixiados entre o nada e aquilo.
Choveu fino durante toda a travessia do canal do Limão. No bar dos fundos do terceiro piso do navio a tripulante e alguns passageiros assistiam com olhar bovino a filme de fantasia estadunidense.
Conversei com paraense que já trabalhara de tudo em São Paulo. Atualmente comprava e vendia roupas. Reclamou do mal que o governo federal de plantão, o antipopular, tem feito ao povo brasileiro e que temia a situação piorar ainda mais com aquele regime de ricos contra pobres. Sentia saudades das políticas sociais e distributivistas dos governos Lula e Dilma.
Dormi bastante. Se houve paradas do navio durante a madrugada, não ouvi um ruído sequer.
Acordei cedo e tomei o café da manhã. Não houve filas entre os cerca de cinquenta passageiros. Exceto o trajeto de Manaus a Nhamundá, quatorze anos antes, no qual havia menos de dez passageiros, aquela era a viagem mais vazia a bordo dentre os percursos fluviais que realizei pela Amazônia.
Lá fora, água grande. Nada de terra firme próxima, somente no horizonte distante. Outras embarcações navegavam a perder de vista. O sol ameaçava furar o bloqueio das nuvens.
Mais tarde as chaminés poluidoras do distrito industrial de Barcarena. Pouco depois, no fundo do horizonte, a linha de edifícios altos da cidade de Belém. Desembarquei no terminal hidroviário da capital paraense no meio da manhã.
Jantei em restaurante lotado em noite de segunda feira. Duas mesas comemoraram aniversário. A tradicional celebração do restaurante incluiu luzes apagadas, chapéu de palhaço nos aniversariantes, fogos, garçons caracterizados, fotografando, dançando, cantando os parabéns. Porém, detalhe bizarro, os garçons cantaram primeiro em inglês e depois em espanhol, somente nessas duas línguas, em ritmo caribenho indefinido. Todos ali, nas mesas, corredores, nas cadeiras, funcionários e clientes, aniversariantes, todos, sem exceção, eram brasileirinhos da silva. Cenas para agradar aqueles indivíduos fanáticos que vestem camisetas da CBF, dançam nas avenidas em volta de um pato e, com pavor dos pobres, imploram por golpes de Estado e por ditadores.
Caminhei bastante pelo centro histórico de Belém. O forte do Castelo, a Casa das Onze Janelas, a praça da catedral, o museu de Arte Sacra, o mercado Ver-O-Peso, as tendas de alimentos, artesanatos, garrafadas, peixes, açaí, polpas. Destaque para os comes e bebes no balcão, especialmente peixe frito ou camarão, acompanhado da cuia de creme fresco de açaí, sem açúcar, à paraense. E a centrífuga bem em frente, produzindo, a todo instante, aquele creme divino assim que a tigelona baixasse de nível.
Encerrei Úrsula, livro de Maria Firmina dos Reis. Escrita rebuscada demais. Enredo romântico e dramático ao extremo. Abordagens ingênuas e religiosas do começo ao fim. Tá, o livro é de 1859. Tá, a autora denuncia a escravidão, ainda que em curto trecho, numa época em que ninguém o fazia, ainda mais uma mulher. Descontos à parte, o livro vale somente para estudiosos da história da literatura. Ou para os que buscam referências, embora breves, aos crimes do comércio de escravos e da própria escravidão. No entanto, longe do tema e enredo central do livro, as reflexões sobre a escravidão se dão em poucas e pequenas passagens.
Em fim da tarde o ônibus praticamente vazio, confortável, com o ar condicionado em temperatura civilizada, partiu rumo ao Piauí.
Pela BR-316, depois de parar em Capanema para o jantar, o ônibus atravessou a ponte sobre o rio Gurupi e alcançou a primeira cidade do Maranhão, Boa Vista do Gurupi. E logo adormeci.
O trecho maranhense da estrada rendeu sacolejos do veículo em razão dos buracos e irregularidades da pista. Após margear várias cidadezinhas, inclusive Zé Doca, entrou na rodoviária de Santa Inês pouco antes do amanhecer. A partir daí, estrada estreita, embora de nome BR-222, se apresentando mais conservada. Valeu por se livrar do tráfego pesado das rodovias principais e tomar contato com o nordeste do Maranhão. Desembarcaram e embarcaram passageiros nas inúmeras paradas, como Vitória do Mearim, Arari, Miranda do Norte.
Os babaçuais reinavam na paisagem aplainada, eventualmente cortada por serrotes também coalhados de babaçus. A maior concentração dessa palmeira ocorreu entre Vargem Grande e Chapadinha, onde placa no acostamento indicava uma das associações de quebradeiras de coco, mão de obra baratíssima que gera matéria prima para a indústria de óleo, cosméticos, farmacêutica, produtos de limpeza. As quebradeiras se defendiam como podiam dos fazendeiros e do agronegócio que ansiavam pelas terras e pela devastação dos babaçuais. Nesse mesmo trecho da estrada abundavam casas de taipa e cobertas de palha da palmeira. A despeito do charme, bucolismo e singeleza dos moradores, refletiam as más condições de habitação do maranhense, povo tão massacrado por séculos de oligarquias medievais. O progressista governo do estado, no começo do segundo mandato, ainda batalharia muito ao lado do povo para superar a miséria catastrófica da população.
Entre as cidades de Anapurus e Brejo, a monocultura extensiva, empregando pouca mão de obra e muitos agrotóxicos. Marcas de fornecedores estrangeiros, presença de transnacionais, ao lado de comércio com nomes e referências gaúchas. O agronegócio em todo o Brasil jamais beneficiou a população. Só trouxe miséria para a maioria e o enriquecimento de poucos.
Meia hora depois de atravessar o rio Parnaíba, e entrar no estado do Piauí, pela BR-343, o ônibus estacionou na rodoviária da cidade de Parnaíba.
À noite andei pela avenida São Sebastião, o destino noturno dos parnaibanos, larga e extensa, com amplo canteiro central, arborizado na forma de duas alamedas de árvores, mais calçadão de ambos os lados. Próximos à rotatória movimentada, quiosques, pontos de espeto, sanduíches, grelhados, tanto no canteiro central como na calçada, um ao lado do outro, ao ar livre, atraindo a população e alegrando a noite do norte piauiense.
Encontrei restaurante de cardápio variado, em ambiente sério, elegante. Quinhentos gramas de maminha ao ponto, suculenta, macaxeira cozida, pão com alho, farofa e vinagrete. Lentamente, prazerosamente, não deixei ciscos sobre pratos e travessas.
Pela manhã, na região central, reconheci pontos onde eu frequentava até minha última visita doze anos antes. A praça Santo Antônio, com casario imponente, construído no início do século XX. Mais adiante a praça da Graça, a principal de Parnaíba. Igrejas pesadas, comércio em volta, pessoas tomando a fresca nas sombras dos bancos. Dali ao rio Igaraçu, braço do rio Parnaíba, o miolo antigo da cidade, mal conservado, muita coisa em ruínas e abandonada. Era a região do Porto das Barcas. Revi a avenida Getúlio Vargas, estreita, outrora minha favorita para as flanadas noturnas, sob as árvores farfalhando ao vento e o silêncio do casario então residencial.
Peguei transversal a fim de atingir a margem do rio Igaraçu, na avenida Beira Rio. Bares e restaurantes isolados, a capitania dos portos do Piauí, dois clubes, deserto de gente naquela hora tórrida do final da manhã. Tomei cajuína cristalina para matar parte da sede.
Subi em ônibus urbano rumo à praia da Pedra do Sal, ainda no município de Parnaíba, mas na outra margem do rio, na ilha grande de Santa Isabel, via a PI-116. Pelo caminho, belíssimos carnaubais em zonas alagadas com aguapés. Impossível não se encantar com essas palmeiras típicas do Piauí e de tantos usos para o ser humano. As carnaúbas cresciam principalmente em zonas alagadas e refletidas pela luz do sol, sempre enfeitando a paisagem. Atraentes dunas de areia se erguiam pelos interiores da ilha. Já nas imediações da praia, dezenas de torres coletoras de energia eólica.
continua...

6 comentários:

  1. Seus relatos são muito bons, prendem a atenção. Por aqui vamos conhecendo um pouco deste nosso vasto país, suas belezas, sua riqueza e também a miséria. Você deveria publicar um livro.

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  2. Oi Sônia,
    Obrigado pela visita e comentários.
    A publicação de um ou mais livros não está descartada. Mas a liberdade que tenho por aqui é tanta, que não me esforço no caminho editorial. Um dia, quem sabe, um dia...
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  3. Boa noite amigo Augusto !!!.Vc não vai acreditar?!...Tomei muitos banhos no Rio Gurupi, pois morei no Chega tudo ( cidade de nome popular.pois era uma mina de ouro,entre o Para e o Maranhão.E Zé - Doca é onde başcı!!!
    Süper relato de viagem e super cultural
    Parabéns 👏👏👏👏🙏🏼❤

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  4. Olá!
    Obrigado pela visita e pelos comentários.
    Quer dizer que andei percorrendo regiões de sua criação? Meu olhar difere muito das suas lembranças?
    Percorrer o Brasil profundo, fora das rotas turísticas, sempre me encantou. É onde encontramos o povo agindo de modo autêntico.
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  5. Excelentes relatos. Fiquei um pouco carente de imagens ilustrando suas descrições. Muito bom.

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  6. Oi Eliane! Obrigado pela visita e pelos comentários.
    A ideia do blog é essa mesmo, mais textos com as impressões, sensações, reflexões, sobre o que vi e senti. Numa palavra, exponho o meu olhar.
    As imagens, além de redundantes, se banalizaram na internet. Qualquer um pode acessar e baixar imagens de qualquer lugar do mundo.
    De qualquer maneira, valeu pelos elogios. Tenho certeza que irá se encantar com os demais relatos publicados neste blog. Tem pra todos os gostos e destinos.
    Comente sempre!

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