Passava da meia-noite do fim de março quando o avião
pousou, debaixo de garoa, no aeroporto de Rio Branco, cidade com fuso duas
horas atrás de Brasília.
Durante o dia perambulei por cidade familiarizada de
outras viagens. A capital acreana continuava de bom aspecto, pelo menos na
região ao redor do centro e das margens do rio Acre, então alto pelas chuvas
recentes. O tempo abafado, nublado e sem chuva, aumentava a temperatura do
corpo.
Na manhã seguinte embarquei em ônibus a Tarauacá. Parada
para o café da manhã entre as cidades de Bujari e Sena Madureira. Exceto curtos
trechos, a BR-364 se mantinha esburacada, impedindo maiores velocidades do
ônibus. Às margens da rodovia, pastos, capinzais, quase nada plantado, algum
gado perambulando.
Depois da ponte sobre o rio Purus, do acesso a Manoel
Urbano e da entrada para embarque e desembarque na cidade de Feijó, o ônibus
encostou na rodoviária de Tarauacá.
As ruas de Tarauacá, em completo
abandono pela administração municipal, se entupiam de crateras, lama, terra,
poeira, restos de asfalto e de calçamento de lajota de barro. Ao anoitecer desabou
a típica chuva amazônica. Sem relâmpagos, raios ou trovões. Nem vento havia.
Somente água, muita água, e por muito tempo. O inverno seguia firme e forte.
Após simplório e suficiente café da manhã do hotel fui
caminhar nas ruas e caminhos próximos da margem do rio Tarauacá, do mercado
municipal, e, mais à jusante, da pista da BR-364. Casas e barracos de madeira,
ruas de lama, areia ou restos de calçamento de tijolos. Tudo feio, sujo,
abandonado. O rio, refletindo as recentes e intensas chuvas, corria ligeiro,
alto, caudaloso, barrento, carregando troncos e galhos. Laranjas e bananas eram
vendidas em grandes quantidades pelas ruas. Morangos, “diretos do produtor”,
oferecidos em caixas nas calçadas. E abacaxis, muitos e enormes abacaxis.
Os moradores, sorridentes, cumprimentavam, saudavam
discretamente, se abriam para prosa. Indígenas, poucos, baixos, atarracados,
vestindo roupas urbanas, de pintura nos rostos, sobretudo listras pretas e
horizontais na altura dos olhos, circulavam na zona comercial. Mulheres indígenas
recheadas de adornos coloridos, nos braços, pescoço, pernas, mas sem pinturas
na pele. Os demais pela cidade, moradores de jeito cearense.
Os barcos que subiam o rio rumo à cidade de Jordão eram
invariavelmente pequenos e precários para percurso de sete dias de viagem. Eu
já percorrera dezenas de rios, subindo ou baixando, por toda a Amazônia. O
sacrifício para ver paisagens e cenas familiares não valeria a pena naquelas
condições. Entre boas conversas no hotel me convenci a optar pelos voos
regionais para chegar a Jordão.
À tarde detonei um litro de creme de açaí recém-batido
diretamente da fruta. Furei o saco plástico e engoli aquele néctar em minutos.
Tentei circular pelas ruas a fim observar a noite de
sábado de Tarauacá. As dificuldades de andar durante o dia, tal o descalabro
das ruas e restos de calçadas, se multiplicavam com a escuridão e a parca
iluminação pública. Era enorme o risco de cair, tropeçar, escorregar, atolar,
entre outros prazeres ao ar livre. A volta tímida e arriscada no quarteirão do
hotel já foi um sufoco. A avenida com canteiro central arborizado, com duas
fileiras de árvores, aguardava o fim das obras. Telas e pilares de proteção
cercavam tudo, por vários quarteirões. A população, intolerante com o descaso
da prefeitura, derrubou os pilares e as telas, circulando por ali, mesmo em
meio às infindáveis obras.
Tantos absurdos urbanos não eram para menos. A prefeita de
Tarauacá ignorava as necessidades do povo, preferindo viajar pelo Brasil e
exterior. E fez questão de beijar a mão do novo presidente do Brasil, o mesmo
que defende os ricos contra os pobres.
O sol quente continuou a torrar no período da tarde em
Tarauacá. Permanecer no quarto do hotel era a solução em cidade que dava as
costas para o rio e para a brisa que dele sopra. Mais uma cidade estupidamente
construída, ignorando e desprezando a maior riqueza dela. Passei o tempo entre
releituras de O Livro de Ouro da Amazônia,
de João Meirelles Filho.
Ao anoitecer a população encheu as ruas, arremedos de
praças, rascunhos de calçadas, ruas esburacadas, lanchonetes, sorveterias,
bares, os raros restaurantes. A maioria vestia roupas de domingo, especialmente
elas, enfeitadas até demais. Famílias saíam completas para passear, comer ou
beber algo. Alguns de carro ou moto, a maioria de bicicleta, meio abundante na
cidade, ou a pé.
Na manhã do outro dia paguei o valor da passagem no balcão
da empresa aérea no saguão do aeroporto municipal. Não recebi bilhete, cartão
de embarque ou comprovante de pagamento.
Fiz hora perto da pista, conversando com outros
passageiros, enquanto observava a carga a ser transportada para Jordão. Tomate,
verduras, cebola, ovo, frango congelado, entre outros. Itens que pagariam de
frete a bagatela de três reais por quilo. Jordão era mais uma cidade amazônica
que nada produzia, nem alimentos simples de plantar e criar, e de tudo dependia
de outros centros. E transportar os alimentos de barcos, pequenos, lentos, sem
refrigeração adequada, nem pensar.
O bandeirante era modelo para até dezoito passageiros,
mais piloto e copiloto, além de amplo compartimento de carga. O copiloto deu as
boas-vindas e se sentou ao lado do comandante.
A aeronave voou a uma altura em que permitia boa visão da
floresta amazônica, compacta na maior parte do trajeto, de pastos esparsos, de
suaves colinas entre drenagens, uma atrás da outra. Exceto por alguns minutos,
ao passar por nuvens espessas e escuras, com direto a chuva e trepidação
preocupante, o voo passou sem susto.
Depois de grande contorno sobre a cidade de Jordão, o rio
Tarauacá e a boca do rio Jordão, o bandeirante pousou na pista do aeroporto
municipal. Muita gente se aglomerava no minúsculo saguão ventilado e sem
paredes.
Almocei peixe ensopado ao molho de macaxeira, com arroz,
feijão e farinha. A jarra de um litro de creme fresco de açaí coroou o
banquete.
Um cacique Kashinawá também almoçou ali e me convidou a
visitar a aldeia, rio Jordão acima. Mais tarde outro Kashinawá apareceu, me
pedindo dinheiro para consertar o motor do barco, em troca de pulseira de
miçangas coloridas.
Na mesa ao lado do restaurante, dois grandalhões
evangélicos e moradores de Tarauacá não paravam de perguntar ao jovem à frente sobre
tudo e todos da região, sobretudo temas comerciais. Ele e ela queriam saber dos
preços, quantidades, movimentos, interesses, oferta e procura, isso e aquilo,
nos mínimos detalhes. Se diziam a passeio, mas carregavam segundas e terceiras
intenções de se estabelecer ali, colados aos poderosos, associados a quem
mandava. Planejavam mandar e lucrar também em cima da população. Típico
comportamento de quem se enriquece do comércio da fé alheia, de quem manipula
os bens e as consciências do povo.
Integrantes da etnia Kashinawá era o que mais tinha pelas
ruas de Jordão. Vinham de aldeias rio Tarauacá acima, e principalmente do rio
Jordão, para os afazeres urbanos. As aldeias do rio Jordão atraíam inúmeros
turistas, brasileiros e estrangeiros, para tomar contato com a cultura
Kashinawá, participar das atividades coletivas, comprar artesanato e,
principalmente, beber muito chá de ayahuasca.
Era a chamada vivência nas comunidades indígenas.
Avistei gringos, ou turistas do sul do Brasil, sujos e
maltrapilhos, provavelmente entre duas cerimônias com o chá de ayahuasca. E os Kashinawá, pela cidade
toda, me abordando sempre:
“De onde você é?”
“Chegou hoje?”
Circulei na beira do rio Tarauacá, estreito e correndo
violentamente. Pequenas embarcações, daquelas de linha ou dos Kashinawá,
estavam atracadas em ambas as margens. Na margem oposta, a floresta, não muito
alta. Jogo de futebol de fim de tarde na areia da margem do rio. A rua
principal ao lado, com a prefeitura, a câmara de vereadores, a igreja Matriz,
algumas secretarias municipais, o hospital, lembrou rua similar em Marechal
Thaumaturgo, mas sem o charme e a beleza da margem do rio Juruá. Lá, encantava a
visão mais de cima, sob a sombra da tarde, com a luz do sol batendo na margem
oposta, em curva sinuosa e atraente.
Antes de jantar avancei até o fim da rua principal. Seitas
evangélicas berravam histericamente para o demônio que supunham surdo. Centros
de atividades físicas e musicais, ambas ligadas à prefeitura, então de administração
progressista, recebiam bom número de interessados. E novamente fui abordado por
outro cacique Kashinawá. Após as perguntas de sempre, discorreu sobre o que
fazia. Pediu o meu número de telefone e me ofereceu rapé, além de outros
produtos que não identifiquei. Expos algo sobre se tornar padre, com batismo, mas
padre indígena.
Dividi a única mesa coletiva no café da manhã do hotel com
o casal grandalhão e evangélico. O tal pastor discursou que a igreja “dele” não
visava o dinheiro dos fieis e sim passar a “palavra”, a “mensagem de conforto”,
atitude distinta das grandes corporações do mercado da fé que ele rejeitava.
Certamente vomitava tamanha demagogia porque ainda se sentia pequeno no ramo. À
medida que o negócio auferisse mais lucros, fatalmente o tal pastor e equipe se
comportariam como os demais empresários do fundamentalismo evangélico,
sequestrando bens e consciências dos frequentadores, se é que já não agiam
assim desde sempre.
Sentado sob a sombra dos jambeiros na calçada da rua
principal, contemplei a vida fluvial e ribeirinha da cidade, puxada pelo vaivém
dos Kashinawá de todas as idades, vestindo roupas urbanas, mas com pinturas,
adornos, pulseiras e colares característicos.
Moradores e comerciantes enfatizavam que os Kashinawá, nas
aldeias e na zona urbana, compreendiam cerca de dois terços da população do
município de Jordão. Eles eram o principal ativador do comércio local, os que
mantinham a vida na cidade, comercial, política, humana, cultural.
Além do chá de ayahuasca,
havia outras drogas disponíveis nas aldeias, para euforia dos turistas
deslumbrados, sedentos pela fuga da realidade. O kampô, excreção do pescoço de
determinada espécie de sapo, inoculado no sangue. O xuru, a maconha para os
nativos. Certa substância pingada nos olhos, da qual não obtive maiores
detalhes. Os turistas que vagavam pelas ruas de Jordão feito zumbis, em trapos,
de olhos esbugalhados, lembraram os equivalentes na situação com quem cruzei pelos
interiores da Índia. Em ambos os locais a busca desenfreada de tirar os pés, ou
o corpo todo, da realidade maçante nas respectivas origens. Os indígenas
brasileiros, e isso não era exclusividade dos Kashinawá ou do Acre, e os
indianos, aproveitavam a situação e aumentavam as receitas. E, também nos dois
casos, se expunham à desfiguração cultural e à dispersão dos próprios povos.
No geral Jordão apresentava bom aspecto, com traçado
quadriculado das ruas, a maioria revestida de tijolos, mais guias e sarjetas
para escoamento da água e esgotos. E calçadas de cimento, contínuas e em bom
estado. Escolas, inclusive de ensino médio, novas e bem conservadas. Postos de
saúde de boa aparência externa. Órgãos públicos apresentáveis. No que a
população mais necessitava Jordão estava melhor que Tarauacá e Feijó.
Sentado sozinho na mesa coletiva do café da manhã, um gringo ouvia notícias em inglês pelo celular. Não parecia consumidor do chá ou dos demais alucinógenos. Mais um honorável membro da biopirataria, solenemente ignorado pelas autoridades diante de tais crimes contra a soberania nacional?
Sentado sozinho na mesa coletiva do café da manhã, um gringo ouvia notícias em inglês pelo celular. Não parecia consumidor do chá ou dos demais alucinógenos. Mais um honorável membro da biopirataria, solenemente ignorado pelas autoridades diante de tais crimes contra a soberania nacional?
Experiência incrível. Belo relato.
ResponderExcluirOi Laura,
ResponderExcluirObrigado pela visita e comentários.
Vem mais por aí...
Comente sempre!
Seu relato é de muita sensibilidade, parabéns!
ResponderExcluirParabéns!
ResponderExcluirExcelente forma de relatar. Adorando ler
Obrigada
Oi Veronica!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Procuro escrever o que vejo e sinto durante essas viagens sem maiores roteiros pré-definidos.
Tem muita coisa mais para você pesquisar aqui no blog, para todos os gostos e destinos.
Comente sempre!
Descritivo, denunciador, posicionado!É um prazer conhecer lugares pelos seus escritos! Adentrar nas terras longínquas e sentir no peito um pouco delas.
ResponderExcluirOlá!
ResponderExcluirObrigado pela visita e comentários.
Procuro sempre refletir e me posicionar diante do que vejo e sinto. É preciso.
Então você vai gostar de ler os dezenas de outros relatos daqui do blog.
Comente sempre!
Oi, aqui é Tania Aguiar. Relato interessante, viajar é isso: enxergar esse Brasil tão diversos, sofrido, poder contar histórias e dividir as experiências. Obrigada
ResponderExcluirOi Tânia,
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Você captou bem minhas intenções , nas viagens e nas impressões registradas neste blog.
Publiquei muita coisa aqui, pra todos os gostos e destinos.
Comente sempre!