...continuação
Ao entardecer desci à orla para contemplar o por do sol
nas escadas diante do rio. Vivas ao urbanismo de Santarém, pelo menos nesse
trecho, se abrindo às águas do Tapajós! Compareciam pescadores, atletas e
aspirantes, estudantes, casais, grupos, gaúchos agarrados ao chimarrão.
Emendei no bar e restaurante instalado em plataforma de
madeira que avançava sobre as águas do Tapajós. Além de duas caipirinhas
detonei prato com maniçoba, vatapá, arroz com toques de jambu e camarão.
Morcegos sobrevoavam, aos montes, brincando por entre a iluminação pública, sem
sugar o sangue de ninguém.
Durante a chuva da manhã me refugiei sob a marquise. Bem
na frente, cruzamento sem semáforos, com faixa de pedestres. Tráfego intenso.
Os motoristas, de carros, ônibus, motos, caminhões, cediam constantemente passagem
aos pedestres. Trânsito educado e não agressivo, na prática.
Em restaurante especializado em peixes abri o apetite com
duas caipirinhas pequenas e saborosas e emendei com caldeirada de tucunaré,
imensa, de peixe inteiro. Arroz branco e pirão acompanharam a tigela que mais
parecia balde, repleta de caldo, legumes, batata, quatro ovos cozidos e todos
os pedaços do tucunaré. Saí com dores no abdómen de tão estufado.
À noite, sorvete de açaí com tapioca e nada mais. Volta
leve pelo sempre animado e bem frequentado calçadão da orla de Santarém. Vaivém
variado e divertido, além das famílias e grupos que se estabeleciam em cadeiras
trazidas de casa ou nas escadarias diante das águas do rio Tapajós.
Embarquei em navio ao Amapá no meio da tarde, no flutuante
em frente à praça Tiradentes. Comecei a ler Úrsula,
livro de Maria Firmina dos Reis.
O amapaense de Laranjal do Jari desembarcaria em Almeirim,
de onde pegaria lotação até Monte Dourado, atravessaria de canoa o rio Jari e
chegaria, finalmente, ao destino. Segundo ele, o Beiradão, o famigerado
Beiradão de Laranjal do Jari, ainda provocava assassinatos eventuais. Nada
comparado com décadas antes. Mas, mesmo assim, como bem salientou:
“Se o sujeito vacilar, morre.”
O senhor de Oriximiná iria visitar as filhas em Macapá. Politizado,
atuante, brilhou naquele mar de alienação, despolitização, resignação,
conformismo e submissão ao fundamentalismo evangélico de muitos passageiros.
Pouco antes da partida, surgiu passageiro setentão e encostou por ali. Escolheu
o colega de Oriximiná para puxar conversa, em voz baixa. Deu para eu ouvir,
entre os sussurros, a ladainha fundamentalista. Autoritário, o setentão não
permitia que o oponente se manifestasse, impondo frases mal decoradas e tentando
cooptar o senhor de Oriximiná. Mais tarde soube que o evangélico agressivo não se
deu bem. Nada como o conhecimento para derrotar os fanatismos.
O navio zarpou à tardinha, deixando para trás a acolhedora
Santarém dourada pelas luzes do fim da tarde. Mais adiante, o alaranjado do por
do sol sobre as águas da popa.
Antes de escurecer, quando Santarém ainda aparecia no
final do horizonte oeste, foi servida a tradicional sopa das primeiras noites
de barco. Cada passageiro recebeu a tigela de sopa encorpada com legumes,
macaxeira, pedaços de rabada. Acrescentei a farinha grossa para dar mais
sustância.
Três horas depois da partida ainda se notava o clarão de
Santarém no horizonte da popa. Acima, céu escandalosamente estrelado. No
horizonte da proa, a leste, relâmpagos, muitos relâmpagos. Seria naquele trecho
perigoso, após a parada em Monte Alegre, o local da pior tempestade fluvial que
eu já enfrentara quatorze anos antes?
Parada de meia hora em Prainha enquanto começava a
amanhecer. Desembarques mais numerosos que embarques.
Logo em seguida serviram o café da manhã. Nada de boca
livre como antes. Cota única por passageiro. Pão com queijo e presunto, maçã,
fatia de mamão, fatia de melancia, copo descartável (para contribuir com a
poluição) de café com leite adoçado.
Nas redes, ou nos bancos laterais, um ou outro passageiro
lia a bíblia. Alguns, sobretudo mulheres, jamais deixavam as redes. Recebiam as
refeições trazidas por acompanhantes e comiam ali mesmo. Circular pelos pisos
da embarcação seria coisa do diabo para os fundamentalistas?
O navio navegava em água grande. As margens do rio
Amazonas se afastavam para bem longe. Ilhas alongadas e alagadas surgiam vez ou
outra. Houve desembarque de passageiros, com bagagens e tudo mais, em voadeiras
que se aproximavam vindas de dentro de lagoas ou paranás onde se abriam pequenas
comunidades. Ao fundo, serras alongadas contavam com escarpas significativas.
Nas águas, canaranas boiavam à deriva. Nas margens aningas se destacavam
imensas. Pássaros sobrevoavam o navio. Os horizontes, cada vez mais distantes.
O navio atracou no meio do dia em Almeirim. No alto do
barranco, no ponto mais visível e destacado, sede de filial de empresa
evangélica, roubando bolsos e mentes da população, ainda mais depois que a
corporação passou a fazer parte do governo federal, o mesmo que corta
investimentos em previdência, educação e saúde para o povo. O crime lhes tirava
a máscara e mostrava para quem quer ver o real papel desempenhado pelos
fundamentalistas contra a sociedade. Tanto que a letra “d”, usada no nome das
empresas do ramo, mais se encaixa com diabo ou demônio, jamais com deus.
Almeirim era mais uma cidade amazônica dependente de quase
de tudo de fora. Não criava e nem cultivava praticamente nada. Bastava observar
as inúmeras cargas do navio deixadas no porto da cidade: legumes, verduras,
frutas, temperos. Os ricaços da cidade, aí incluídos os empresários do
fundamentalismo evangélico, deviam lucrar bastante com a penúria alimentícia de
Almeirim e de tantas outras cidades ribeirinhas da Amazônia.
Assim que o navio apitou para partir foi servido o almoço.
Um prato por pessoa com arroz, macarrão, duas fatias de carne assada. Nas mesas
do refeitório, livres em quantidade, feijão, salada com maionese, salada de
verduras cruas, farinha, abacaxi fatiado.
Após a foz do rio Jari, na margem esquerda do rio Amazonas,
o navio entrava em águas do estado do Amapá.
O senhor de Oriximiná, orgulhoso e ativo na vida, me
mostrou, pelo celular, pirogravuras de própria autoria com motivos locais.
Garantiu que mais de cem delas jaziam guardadas em casa para futura exposição. Lhe
doei o livro O Livro de Ouro da Amazônia,
de João Meirelles Filho. Ele agradeceu comovido e me pediu dedicatória. O
livro, adquirido em sebo, já possuía uma, de não sei quem para não sei quem.
Pus a minha na contracapa.
Durante o jantar cada passageiro recebeu prato com arroz,
macarrão, pedaço generoso de frango assado ou de peixe. Da mesa, livre para
todos, salada crua, feijão, farinha, fatias de abacaxi.
Do lado de fora chuva forte, mas nada de tempestade ou
vendavais. O navio nem sentia o tranco das águas agitadas e crespas do rio
Amazonas.
Pouco depois da meia-noite o navio atracou no porto
privado do Grego, em Santana, Amapá, cidade vinte quilômetros a sul da capital.
Nem saí da suíte. Os ruídos do desembarque, de carga e principalmente de passageiros,
reverberando pelas estruturas metálicas da embarcação, me fizeram oscilar entre
sono leve, vigília, breves cochilos. Assim foi até o amanhecer. Fechei toda a
bagagem e fui verificar o restante do navio. Menos de dez passageiros
permaneciam nos pisos das redes. Aguardavam, como eu, clarear de vez e espantar
o perigo dos arredores do porto, para irem embora.
Percorri a distância entre as cidades de Santana e Macapá,
com direito a cruzar a linha do equador pela zona sul da capital amapaense e
entrar no hemisfério norte. Embora o traçado da cidade fosse quadriculado, com
ruas longas e normalmente de mão única, os ônibus urbanos ziguezagueavam, em
vez de seguir direto ao destino, a fim de pescar mais passageiros e faturar
mais. O tempo de percurso, óbvio, aumentava bastante.
Macapá, no geral, apresentava esgotos a céu aberto, canais
e igarapés poluídos, mato crescido nas calçadas. Aliás, as calçadas macapaenses
eram casos à parte. Cada imóvel construía a própria calçada, do jeito que bem
entendia, na altura, inclinação, material do piso, ou simplesmente não
construía nada, largando a terra, as pedras, o mato, os buracos se fingirem de
calçada. Caminhar por elas ou pela ausência delas era saltar obstáculos, muitas
deles instransponíveis. Os pedestres, de todas as condições físicas, eram
obrigados a andar pela rua. Ainda bem que o tráfego de Macapá era respeitoso,
não agressivo, gentil, parando nas faixas de pedestres ao sinal do braço. Os
prédios no centro comercial, baixos na maioria, se apresentavam mal conservados,
quase caindo aos pedaços, sem preocupações com a aparência e, provavelmente,
com o conteúdo. Por outro lado, o açaí, o camarão, a oferta de alimentos
variados, abundavam na cidade. A influência indígena e africana concorria para
aperfeiçoar os pratos da culinária regional.
Ao sair para jantar, já noite avançada, conversei com
paulista de São Bernardo a trabalho em obras civis no quartel do exército. Estava
pessimista em relação ao futuro social do Brasil. Tinha votado na
extrema-direita porque ela representava a mudança. Fora eleitor e simpatizante
petista durante anos. E considerava todas as medidas do governo da
extrema-direita ruim para o Brasil e os brasileiros.
A orla de Macapá, ao longo da avenida e calçadão da margem
esquerda do rio Amazonas, por quilômetros e quilômetros, não tinha preço. Gente
caminhando, correndo, se exercitando, perambulando, namorando, aproveitando o
relativo frescor da noite. E havia o antes e o depois da fortaleza de São José
de Macapá. Trechos frequentados, outros vazios, escuros, privativos,
silenciosos. Ao norte da fortaleza, quiosques, trailers, comes e bebes,
frequência variada e discreta, mas que sempre cumprimentava, bom dia, boa
tarde, boa noite.
Jantei caldeirada de tucunaré em restaurante cuja vista do
rio pelas imensas e transparentes vidraças fascinava entre mordidas no peixe e
goles nas caipirinhas bem preparadas. Frequência triste nas outras mesas, com
exceção a de almirantes e afins na enorme mesa reservada ao lado. Saí antes de
o álcool fazer efeito e de eles soltarem a franga.
Nos quarteirões contemporâneos de Macapá, ao lado de
construções modernas, ainda havia casas de madeira, com estilo, aspecto e
conservação de algo velho, antigo, dos primórdios da capital do antigo
território federal do Amapá. E nessas casas morava gente, como se o tempo não
tivesse passado. Testemunhos de outros tempos, resistindo às engrenagens que
elimina o que é considerado obsoleto e ergue o que é supostamente moderno e
eficiente.
Longa caminhada pela cidade plana até o museu Sacaca. Aberto
gratuitamente ao público, local de eventos voltados à educação e questões
socioambientais, ocupando todo o imenso quarteirão, o museu exibia espécies da
flora nativa da Amazônia, quelônios, pássaros, em ambiente natural, ao ar
livre, junto a inúmeras representações de cenas ribeirinhas, como casa da
parteira, casa do castanheiro, casa do seringueiro. Também ali, diversas
culturas que compõem o povo amapaense, entre elas os negros da região de
Mazagão e Curiaú, emprestando à região a cultura de parte da África, as canções
e danças do marabaixo, por exemplo. Um barco, o regatão, se deslocava sobre
curso d’água a fim de mostrar como era o comércio nos velhos tempos na
floresta. Ligado ao Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado
do Amapá, responsável por fomentar e divulgar a produção científica e
tecnológica local, que era vasta e amplamente reconhecida, o museu Sacaca
corria sérios riscos de sobrevivência em razão das ações criminosas do regime
de plantão no governo federal. Antes dessa calamidade, porém, os visitantes poderiam
aprender bastante com os amapaenses.
À noite jantei bem, regado a duas razoáveis caipirinhas. Sentado
em mesa ventilada na calçada eu pude ver através do vidro a festa de noivado,
como aliança e tudo mais, em longa mesa interna. O garçom que me atendeu, trintão,
não registrado em carteira, somando oito filhos de três mulheres diferentes,
rodara bastante pelo Brasil. Com a esposa do momento, grávida, planejava se
mudar para Londrina. Falava como grande administrador da própria vida, das
próprias finanças. Dei corda e ele deitou a contar a vida, passada, atual e
futura.
Choveu forte durante a madrugada inteira. Água, muita
água. Nada de relâmpagos, raios ou trovões. Só água.
continua...
Muito bem escrito e descrito..divulgue muito quiçá os governantes olhem c carinho e dê soluções p cidades precárias desse País tão lindo..porém tão largado. Oremos!
ResponderExcluirOi Lu!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Entendi sua indignação, mas os governantes jamais irão olhar com carinho ou dar soluções. Quem resolverá os nossos problemas e construir um Brasil que queremos será nós mesmos, o povo. E o povo organizado, com um projeto alternativo de país nas mãos. A saída não é fácil, porém é a única.
Em vez de oremos, lutemos!
Abraços e comente sempre!
Estive em Macapá em dezembro de 2019. Mesmo já conhecendo o Rio Amazonas, me encantei com o barulho das ondas ao final da tarde e com um lindo por do Sol por trás da Forte. Se tivesse que descreve Macapá, começaria pelo barulho do Rio. Depois segui para o Oiapoque. Muita História do Brasil colônia por essas terras. A fronteira não é apenas um lugar dos ilícitos. Tem muita histórias vividas. Vc compartilha muitas delas.
ResponderExcluirOlá!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Aprendemos muito aí viajar, além da diversão, é claro.
Macapá e o estado do Amapá têm algo em especial, sim. Oiapoque estive da primeira vez à região, na viagem que chamei "do Acre ao Tocantins". Lugar único, mas qualidades e defeitos. Numa outra oportunidade explorei o sul do estado, o entorno de Laranjal do Jari. Já foi?
E vamos viajar e conhecer mais do Brasil!
Comente sempre!
Pela riqueza descritiva, pela carona dos seus olhos, pelas críticas implícitas e as explícitas, agradeço a viagem. Do Norte, em pequenos pedaços estive, inesquecíveis. Mas diferentes deste mergulho de água e gente, extenso em cenário e gosto. Lindo relato!
ResponderExcluirOlá!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Viajar, sem dúvidas, é um prazer, e não apenas pelas coisas belas. A realidade, mesmo a mais deplorável, é bem-vinda, pois com ela aprendemos e refletimos sobre as necessárias possibilidades de mudanças.
Comente sempre!
Fenomenais teus relatos de viagem. Tu expõe de maneira direta o que sente e o que acontece. Não me canso de ler cada relato teu aqui neste blog. Não pare.
ResponderExcluirOlá!
ResponderExcluirObrigado pela visita e comentários.
A espontaneidade na escrita é minha característica.
Comente sempre!
Gostei, bacana, as suas viagens, além de prazerosas são de muito aprendizado. Permite viver as realidades dessas localidades e procurar compreender de forma crítica.
ResponderExcluirOlá,
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Você sintetizou em poucas palavras o que quero e o que faço de minhas viagens.
E, claro, procuro compartilhar essas impressões com todos vocês.
Comente sempre!