...continuação
O aeroporto municipal de Jordão se encheu de Kashinawá. Mantendo
a tradição, bastava um Kashinawá viajar ou voltar à terra natal para a festa ser
grandiosa e prestigiada.
O voo no mesmo bandeirante da ida correu tranquilo até o
pouso em Tarauacá. Esperei o ônibus, procedente de Cruzeiro do Sul. Logo desembarquei
em Feijó, cidade feia, sem rodoviária, com buraqueira nas ruas, sem calçadas, o
mesmo descaso de Tarauacá com a população.
A chuva teimosa desabou na cidade à tardinha, em seguida a
raios e trovões. O espeto de carne de porco do jantar veio acompanhado de
baião, macaxeira e suco de cupuaçu. O cardápio, a grelha na calçada, o dono,
claro e de óculos, não podiam ser mais cearenses, como praticamente todo o Acre
não indígena.
Dei volta leve pelas ruas escuras, molhadas e esvaziadas de
Feijó.
Baixei cedo pela manhã no pequeno, simpático e
naturalmente ventilado aeroporto municipal de Feijó, construído no estilo de
cabana de floresta, com toras resistentes de madeira e coberto com duas águas
de telha de verdade, de cerâmica. Muitos voos dali, depois de parar em Envira,
seguiriam a Eirunepé, cidade onde, quinze anos antes, esperei oito dias a
embarcação para baixar o rio Juruá, o sinuosíssimo Juruá.
Antes do embarque na aeronave, as bagagens, e também os
passageiros, foram pesados e checados no saguão.
Em monomotor do modelo minuano, para seis passageiros,
mais o piloto e o copiloto, o voo partiu lotado, com direito à vista
impressionante da floresta e das curvas dos rios. O avião pousou em Envira, já
no estado do Amazonas, cidade da margem direita do rio Tarauacá.
Envira, assim como Guajará, Ipixuna, Boca do Acre, e
parcialmente Eirunepé, todas elas cidades do Amazonas, se abasteciam e
recorriam ao estado do Acre. Pela mesma distância absurda da capital Manaus, as
amazonenses Lábrea, Humaitá, Apuí, se voltavam para o estado de Rondônia.
No meio da tarde, violento vendaval atingiu a cidade. Portas
e janelas tremeram. Areia e poeira penetraram pelas frestas e cobriram os
interiores do hotel. O céu escureceu, as nuvens engrossaram, mas caiu pouca
chuva. O que caiu, ligeiramente, foi a temperatura. Chamado de friagem, o
fenômeno anunciava o fim do inverno amazônico, a estação das chuvas, e o começo
do verão amazônico, a estação seca.
Dei voltas pela cidade ao cair da tarde. As obras do porto
fluvial, atrás do hotel, andavam a passos de tartaruga havia anos. A orla de
Envira, toda arrebentada, estava interditada com cerca de madeira apodrecida
caindo aos pedaços. Os moradores a ignoravam e a ultrapassavam impunemente. A
prefeitura de Envira abandonava completamente as responsabilidades sociais. Pelas
ruas, muitas construções abandonadas, vazias, inacabadas, em ruínas. Típico de
cidades do interior do Amazonas, cujos prefeitos e secretários nem residiam nas
cidades, preferindo torrar o dinheiro público na capital ou no exterior. A
situação só pioraria com o governo federal tomado por forças ultraliberais e
antipopulares.
Quatro passageiros de voo vespertino se hospedaram no
hotel, exibindo olhares esbugalhados. Devido ao vendaval da tarde, o voo foi
terrível, assustador, turbulento, nervoso. Ventou, choveu, descarregou
eletricidade em meio às nuvens negras e espessas.
Não encontrei restaurantes para jantar. Os sons, gritos e
apupos vindos do ginásio municipal de esportes me atraíram. Parece que metade
da população de Envira lotava a parte interna do ginásio e os entornos. Campeonato
de futebol de salão empolgava torcedores e curiosos. Lanchonetes e ambulantes
dos arredores abasteciam os frequentadores. A polícia militar comparecia com o
veículo de pisca-pisca aceso e seis policiais armados de cassetetes longos e
armas de fogo. A frequência raramente superava os dezoito anos de idade. Os jogos
eram bem jogados, bem disputados, entre times uniformizados e batizados com
nomes de equipes famosas, brasileiras e estrangeiras.
Abriram a torneira do céu e a esqueceram aberta por toda a
madrugada. Choveu demais e assim amanheceu. Mas que som aconchegante batendo na
cobertura de alumínio do hotel!
Durante o café da manhã, os passageiros do voo dos
horrores da tarde anterior aguardavam a liberação do aeroporto para a
continuação até Itamarati, com escala em Eirunepé. Em breve estiagem eles foram
chamados para embarcar. Menos de uma hora depois ouvi o ronco do motor e
avistei o avião a caminho do vale do Juruá.
A chuva engrossou para valer, firme e forte, mais tarde. A
televisão do quarto, como regra nos demais hotéis, continha noventa por cento dos
canais voltados a comerciais, sobretudo propagando o fanatismo religioso. Pelas
ruas, dos templos de empresas evangélicas, se ouviam os gritos histéricos dos pastores
e das ovelhinhas mais exaltadas, tomadas pelo transe fundamentalista.
À noite, repeti as imediações do ginásio de esportes, aonde
todo mundo ia. Meninas, crianças ainda, andavam de mãos dados com o namorado,
noivo, marido, e já carregavam filhos no colo. O futebol de salão prosseguia
bem jogado e disputado na quadra.
Acompanhando o costume dos interiores brasileiros, Envira
acordava cedo, bem cedo, de maneira ruidosa, transbordando vida para todos os
lados. Andei bastante, por quase toda a cidade. Arrisquei o fim de muitas ruas,
mas a lama acumulada impedia e me forçava à outra opção. O sol e as picadas dos
piuns arderam sem dó nem piedade.
Deliberadamente abandonada, Envira se apresentava suja, em
obras inacabadas ou interrompidas, largada, indiferente à população sofrida que
pagava impostos e era convocada somente em períodos eleitorais. Barro, lama,
poeira, mato alto, construções fechadas, deixadas para trás, em ruínas, praças
que viraram matagais, parques transformados em depósitos de lixo. A população
se mantinha resignada, desanimada, amortecida, sem ninguém para lhe abrir os
olhos e levantar o ânimo com novas políticas, novos projetos urbanos, utopias
necessárias. Nesse caldo de cultura fedorento os oportunistas das empresas do
comércio da fé, sobretudo as evangélicas, usavam e abusavam da desesperança
generalizada, mergulhando o povo em buraco ainda mais fundo e pegajoso.
Poucos indígenas circulavam pelas ruas de cidade mestiça.
Eram da etnia Kulina. Caminhavam em grupos fechados, molambentos, maltrapilhos,
em condições físicas preocupantes.
Após o café da manhã, sempre bem servido e com ovos fritos
na hora, saí decidido a caminhar bastante. Inicialmente o curto trecho ao
aeroporto municipal. Margeei a pista do aeroporto até a cabeceira, por estrada de
chão, larga, desprovida de beleza e ocupada por caminhões em trânsito. Dobrei à
direita, por caminho estreito, entre cabanas isoladas de madeira. Nada plantado
ou criado. Peguei estradinha próxima ao outro lado da área do aeroporto. Atoleiros,
água empoçada, argila pegajosa e plástica, a famosa tabatinga. Uma atolada
aqui, uma afundada de pé ali, e rapidamente os pés, tornozelos, papetes, partes
das canelas, se cobriram de lama e água barrenta.
Ao retornar à zona urbana, o conjunto de casas populares,
pré-fabricadas, eufemismo para cubículos claustrofóbicos que os opressores da
elite empurravam aos pobres, se encontrava abandonado, sem moradores, com o
mato alto. “Casas” novas, jamais usadas, jaziam largadas pelos governos
municipais.
No trecho urbano e calçado de tijolos entrei na extensa
área do elefante branco batizado de Parque de Exposições do Produtor. Inúmeras
construções de alvenaria, arena para rodeios, salas de esportes e jogos,
espaços para apresentações musicais, espaços vazios e urbanizados, água
encanada, energia elétrica. Construções com o dinheiro público para funcionar
uma ou duas vezes ao ano, ocupando espaço imenso no meio da cidade.
Aproveitei o banheiro abandonado e aberto do tal parque.
Usei a abusei da água encanada do monstrengo vazio para lavar os pés,
tornozelos, papetes, pernas, respingos de barro na bermuda. Mais à frente, mas
ainda nas dependências internas, desertas e sem fim do elefante branco,
arrematei o restante da sujeira numa das várias torneiras de tanques espalhados
e sem uso pela população cuja maioria nem possuía água encanada em casa.
À tarde o céu limpou e o sol brilhou desimpedido. A poeira
que já incomodava se tornou preocupante. As ruas se cobriam de terra e areia,
pelas obras na margem do rio, pelos caminhões transportando cascalho e terra,
pelos veículos em geral revolvendo e mantendo tudo em suspensão. Os moradores
tampavam bocas e narizes com as mãos, com a camiseta erguida até os olhos, com
pedaços de pano solto.
Durante o café da manhã, em conversas com piloto de táxi
aéreo, lamentamos que cidades ribeirinhas, antes autossuficientes em produtos
agropecuários para alimentar os moradores, passaram a depender em tudo de fora
depois dos êxodos populacionais rumo aos grandes centros. A população pagava bem
mais caro por produtos piores, e isso quando os produtos chegavam.
No saguão do pequeno aeroporto municipal de Envira, mais críticas
ao prefeito que se elegeu e fugiu da cidade, gastando o dinheiro dos
envirenses, largando a população às moscas, ao barro, à poeira. Não se
aperceberam, porém, da catástrofe social do governo federal que pretendia
arrancar o pouco do que o povo conquistara nos tempos progressistas de Lula e
Dilma para entregar aos grandes capitalistas, sobretudo estrangeiros.
Depois de pesar as bagagens e os passageiros embarquei em
monomotor, do modelo corisco, com capacidade para somente três passageiros,
mais o piloto. Comigo, moço rústico e o “doutor” de origem peruana. Já na
pista, com ambas as portas dianteiras abertas, para ventilar, e fechadas
somente depois da decolagem, o piloto grandalhão se virou e comunicou:
“Será mais ou menos meia hora de voo. Vai balançar um
pouco porque já é tarde e o ar esquentou.”
E se virou para acionar os motores no máximo e decolar. O
voo e o pouso em Feijó, porém, foram sem turbulências, possibilitando visão
privilegiada da floresta amazônica, do rio Tarauacá, da boca do Envira a
montante da cidade de Envira. Sequências belíssimas de curvas sinuosas dos rios
por entre a mata fechada.
Na beira do rio Envira, centro de Feijó, os Ashaninka e os
Kashinawá perambulavam maltrapilhos, bem diferentes dos orgulhosos de Jordão.
Ali em Feijó se comportavam mais como párias do que como legítimos e originais
moradores daquelas terras.
Jantei novamente no espetinho cearense próximo ao hotel. Depois,
atravessei a rua para me deliciar com uma bola de sorvete de açaí e outra de
cupuaçu. Mais adiante, a praça ocupada por famílias. No quarteirão seguinte,
outro espetinho, também cearense. No final da calçada, a entrada do parque urbanizado,
repleto de quadras, trilhas, pistas para bicicleta, fazendo lembrar o Parque da
Maternidade em Rio Branco.
De manhãzinha embarquei no ônibus com destino a Rio
Branco.
Pelo caminho a extensa ponte, de mais de duzentos metros,
sobre o caudaloso rio Purus. Almoço de meia hora no centro de Sena Madureira.
Pancada de chuva intensa e rápida nas imediações de Bujari. Nova pancada de
chuva na entrada de Rio Branco.
Caminhando pelo centro de Rio Branco, me sentei na margem
esquerda do rio Acre, sob a sombra providencial das palmeiras. Vez ou outra a
brisa leve amenizava o calor abafado. Vendedores, grupos de recuperação de
dependências químicas, pedintes, pediam ajuda, sem insistir ou grudar. Me
sentia satisfeito de rever aquele pedaço tão aconchegante da capital acreana. As
pontes para veículos motorizados, a passarela para pedestres, ambas as margens
do rio Acre, o comércio bem organizado dos arredores, o vaivém dos moradores,
visitantes, curiosos.
Pela manhã embarquei em ônibus para Porto Velho. Durante a
travessia da balsa sobre o rio Madeira, ao lado da construção quase finalizada
da ponte, eu não avistei à montante, como em viagens anteriores, as dezenas de balsas
flutuantes de garimpo de ouro, de triste fama e de muitas mortes “acidentais”.
No Acre o ônibus passou pelas cidades de Senador Guiomar e
Acrelândia. Em Rondônia, Califórnia, Extrema, Vista Alegre do Abunã, Jaci
Paraná, o distrito de Teotônio, ao longo do qual, por dezenas de quilômetros, a
BR-364 atravessou o lago formado pelas novas hidrelétricas de Jirau e Santo
Antônio.
Desembarquei na apertada rodoviária de Porto Velho no
começo da noite.
Pela manhã caminhei pelo traçado quadriculado o longo
trecho até o porto do Cai N’Água, na margem direita do rio Madeira. Ao lado,
totalmente cercado e fechado para visitação, o espaço da antiga estação da
ferrovia Madeira Mamoré. Triste fim de meio de transporte que tantas vidas e
dinheiro público foram consumidos na construção mais de cem anos antes.
No porto, ferryboat
programado para partir daí a dois dias a Manaus. Camarotes e suítes, todos
lotados. Nova embarcação, do mesmo tipo,
sem o charme e a beleza dos navios e barcos convencionais, por ser mais voltada
a carga de veículos do que de passageiros, somente daí a cinco dias.
Definitivamente Porto Velho deixara de ser amazônica. Nem
o rio Madeira ali ao lado lhe assegurava o ar de cidade ribeirinha, ainda que
média a grande. Pelos imigrantes que deram o tom no estado de Rondônia, a
cidade adquiriu jeitão de cidades do centro-oeste brasileiro, do oeste paulista,
do triângulo mineiro. Vez ou outra eu esbarrava em lojas de venda de creme
fresco de açaí ou de cupuaçu, lembrando que eu estava na Amazônia. O imponente
rio Madeira se escondia atrás das construções da margem das águas. Não havia
orla fluvial a fim de aproximar os moradores do rio. O crescimento da cidade
afastou os habitantes da maior riqueza natural ali disponível. Mais uma cidade
amazônica a dar as costas à fonte de água, de peixes, de lazer, de transportes.
continua...
Salve!
ResponderExcluirDesesperadora a situação em Envira. Como tão bem relata a população fica esmagada entre os políticos e os fanáticos evangélicos que lucram com a miséria e a ignorância dos moradores.
Não tem saída?
Parabéns pelo blog.
Olá, anônimo!
ResponderExcluirAntes de mais nada, obrigado pela visita e pelos comentários.
Pois é, sempre me indigno com situações assim por onde passo em minhas viagens.
Saídas sempre tem. Começa pela organização E mobilização dos moradores contra as causas do problema. E, mais, eles têm que apresenta uma solução alternativa.
Nada vai cair do céu, muito menos das frases mal decoradas nas filiais das empresas evangélicas.
Comente sempre!
Amigo você sabe se tem voos regulares entre Eirunepé e Feijó ou Eirunepe a Rio branco ou Eirunepé a Porto Velho? Abraço
ExcluirOlá Taiã!
ResponderExcluirObrigado pela visita.
Entre Eirunepé e Feijó há voos regulares, sim, com escala em Envira. De Feijó é fácil pegar voos para Rio Branco e depois Porto Velho.
Espero ter ajudado.
Abraços!
Sempre muito claro em suas descrições é um prazer te ler.
ResponderExcluirComo mudar este Brasil? Dureza!
Oi Carmo!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Para mudar o país somente conversando e debatendo com a população, sobretudo a mais carente, um projeto alternativo de Brasil. Sem politização do povo, sem trabalho de base, continuaremos andando para trás.
Comente sempre!