terça-feira, 28 de junho de 2016

Guatemala e Honduras (parte 6/6)

...continuação
Em todos os lugares havia gente demais. Praças, corredores das arcadas laterais, dentro da Catedral, bares, cafés, restaurantes, ruas fechadas para veículos, calçadas. Muitos sentavam para descansar nas sarjetas ou nos desníveis das praças. E aquilo era apenas aperitivo para a semana santa, certamente impossível de se mover em meio a visitantes e romeiros da Guatemala e de países vizinhos que baixariam na cidade especialmente para acompanhar ou observar as manifestações de fé.
À noite, a praça e as ruas nas imediações da igreja La Merced permaneciam cheias. O povo não arredava pé. As barracas de comidas e bebidas fervilhavam de pedidos. Uns andavam, outros sentavam se encostando às paredes das casas, nas guias da calçada ou no adro da igreja. Haveria missas mais tarde.
No café da manhã fui de ovos mexidos, pasta de feijão preto, molho de tomate com nachos, queijo fresco, banana frita, uma fatia de pão, café com leite.
A lotação saiu de Antigua sob a visão privilegiada dos vulcões De Água, Acatenango e De Fuego, este mais calmo, mas ainda soltando fumaça pela cratera.
As estradas desceram o relevo em mais de mil e quinhentos metros, até o nível do mar. Cortaram zonas industriais, poluídas e feias. E, como regra na Guatemala, muito lixo jogado na beira das rodovias, transformando-as em lixões a céu aberto. O trajeto passou por Alotenango, Escuintla, Puerto Quetzal, Iztapa, antes de entrar na vila de Monterrico, na beira do oceano Pacífico.
Assim que a estrada atingiu o litoral, o aspecto geral de tudo lembrou demais trechos do litoral brasileiro. Construções mal feitas, pela metade ou sem acabamento. Falta de capricho no urbanismo e na arquitetura. Indiferença e descuido na aparência em geral. Os moradores, mestiços, usavam e abusavam da boa e velha descontração no vestir, andar, se comunicar. Homens e mulheres, jovens e adultos, me cumprimentavam sorrindo.
Balneário quase inteiramente voltado ao turismo, Monterrico contava com mar agitado e batido contra extensa praia de areias escuras devido aos vulcões próximos. Caminhei na praia inclinada próximo à linha d’água. Alguns pescadores se sentavam na sombra costurando ou remendando redes de pesca. Me sentei na sombra da murada lateral de um bar fechado. Descansei observando as ondas fortes do Pacífico e o movimento quase nulo de banhistas. As areias de coloração cinza-escura chamavam atenção, ainda mais em contraste com o azul do mar. Silêncio, preguiça, sol abrasador, calor úmido.
Atingi a rua paralela à praia, atrás da primeira fileira de construções, e voltei ao centrinho. Peguei a avenida transversal ao mar, ao longo da qual havia uma infinidade de bares e restaurantes, abertos e completamente vazios. Era hora do almoço e nada de clientes. Algumas lojinhas se intercalavam aos restaurantes, vendendo artigos de praia. Vazias também.
Troquei de calçada e dei meia volta. Avistei o único restaurante que acabara de se ocupar com trabalhadores a serviço na cidade. Entrei no ambiente naturalmente ventilado, sem paredes, chão de cimento batido. Local descontraído com atendimento para lá de informal.
Apesar do calor indecente, pedi caldo de peixe, camarão e caranguejo. O caldo e o gosto de tudo animou o espírito. A cestinha cheia de tortillas quentinhas e feitas na hora não poderia faltar. Fui com as mãos mesmo. Me lambuzei e não deixei nada sobre nada. Filetes de suor desciam pelo peito, costas, barriga, coxas. As garçonetes e a senhora gorda do caixa me assistiam disfarçando sorrisos. Me lavei na pia instalada no meio das mesas.
Repeti a praia. Permaneci sob a sombra de uma barraca de comes e bebes abandonada. Sol, calor, claridade intensa.
Ao final da tarde a lotação tomou o caminho de volta, serra acima. Canaviais e bananais sem fim, zonas portuárias de mau aspecto, pobreza às margens da rodovia.
Em determinado trecho de estrada passou enterro no sentido contrário. O caixão era carregado nas mãos, enquanto os familiares e amigos vinham caminhando logo atrás. Depois de todo o longo cortejo de pedestres, extensa fileira de carros e motos também seguia o féretro.
E encerrei a noite em Antigua.
A indústria da segurança armada, na maioria das vezes privada, se alimentava e lucrava com o pânico da criminalidade na Guatemala. Além dos bancos, comércios maiores, caminhões transportadores, estacionamentos comuns, qualquer local ou veículo que contivesse algo de valor ostentava seguranças escandalosamente armados na porta, junto à calçada, internamente, ou em movimento, ao carregar e descarregar. Muitos comércios se encontravam fortemente gradeados, como jaulas de zoológico. Era comum na beira das estradas placas com os dizeres “vizinhos organizados contra a delinquência”.
Mas não vi ou ouvi nada a respeito de ocorrências do tipo nas imediações por onde circulei em todo o país.
Permaneci sentado sobre a calçada coberta pelos arcos da praça Central. Observei o vaivém dos guatemaltecos e turistas. Os engravatados e as vestidas austeramente dos escritórios do centro em horário de almoço sentavam para pegar a fresca. Grupos de turistas passavam apressados com o guia à frente. Estudantes estrangeiros da língua espanhola davam voltas. Indígenas invariavelmente rechonchudas e com os filhos às costas tentavam vender bugigangas aos estrangeiros. Crianças vendiam guloseimas e cigarros ou passavam com a caixa de engraxate oferecendo serviços. Estudantes de uniforme, elas de camisa branca e saia listada e bem cortada, eles de roupas escuras e gravata. Pedintes, muitos pedintes. Gringos velhos, ora sentados, ora indo daqui para lá, fazendo ou pretendendo sei lá o quê.
Assim como Tiradentes e Parati, Antigua oferecia dezenas daqueles bares e restaurantes transadinhos, à meia luz, com música ambiente ou ao vivo. Destoavam acintosamente da cidade e do país. Na decoração, astral, música, cardápio, serviços, sobretudo nos preços. Os turistas adoravam. Frequentavam tais lugares com roupas escolhidas a dedo, desfilando poses ensaiadas e expressões de conteúdo. Nesses momentos não se sentiam e nem gostariam de se sentir na Guatemala real.
As redes de comida rápida, provenientes daquele regime terrorista ao norte do México, abundavam em Antigua. Estrangeiros, na maioria, se envenenavam diariamente com o lixo industrial, enquanto a diversificada e saborosa culinária guatemalteca era por eles ignorada.
Apesar de décadas da história recente da Guatemala terem se caracterizado por tragédias sociais, genocídios patrocinados pelas elites, ditaduras com ou sem eleições, invasões de exércitos estrangeiros, guerras civis, opressão e exploração das classes dominantes locais e estadunidenses, discriminação agressiva contra indígenas, entre tantas catástrofes sofridas, o povo guatemalteco se destacava pela simpatia, acolhimento, educação, boa vontade, sempre acompanhados de sorrisos. Essa docilidade talvez resvalasse na submissão a que eles, sobretudo a maioria pobre e miserável, têm sido submetidos desde séculos.
A praça Central de Antigua centralizava a vida de toda a cidade e, entre tantas características, concentrava fauna peculiar. Estadunidenses sessentões ou setentões perambulavam a pé, ou se sentavam nos bancos, todos os dias, durante praticamente o dia todo. Conversavam entre si em inglês. Adulavam, em espanhol, as indígenas vendedoras de quinquilharias turísticas. Circulavam para lá e para cá, sempre muito à vontade. Exageradamente à vontade. Aposentados que decidiram viver em Antigua? Egressos de planos de pacificação e domesticação do povo guatemalteco? Antigos soldados que participaram das invasões e golpes de Estado contra o povo da Guatemala? Integrantes de atividades comerciais duvidosas? Algo não combinava com uma suposta opção de vida ingênua durante a aposentadoria.
Missões de corporações evangélicas estrangeiras, quase sempre provenientes daquele regime estadunidense, circulavam impunemente pelas ruas da cidade. Duplinhas de mórmons. Grupos de jovens em cujas camisetas alardeavam programas odontológicos cristãos. Gringos disfarçados de ingênuos turistas. Todos pregando o fundamentalismo religioso, uma das armas para dobrar e abaixar ainda mais a cabeça do povo da Guatemala. Pelo jeito, o país continuava sendo quintal de experiências e fonte de lucros abusivos das grandes empresas estadunidenses, desde sempre, porém mais profundamente a partir da invasão e golpe de Estado de 1954.
Andei pela zona do mercado, labirinto de bancas cobertas vendendo de tudo um pouco. Placas alertando os delinquentes sobre o esquema de segurança armada apareciam em pontos visíveis. Policiais de uniforme preto, membros do exército carregando fuzis automáticos, entre outras delicadezas, desfilavam em pontos estratégicos.
A Guatemala começava a se despedir de mim. E eu dela. Deixaria saudades, certamente.
A lotação me pegou no início da manhã. Tudo correu bem nas estradas acidentadas e sinuosas. Na chegado ao subúrbio de Mixco, o congestionamento clássico da área metropolitana, entupida de carros, o infame transporte individual que polui o mundo todo. O motorista ainda tentou vias alternativas, virando aqui, dobrando ali, mas ganhou pouco. Cada avenida da Cidade da Guatemala estava paradíssima.
Mas, finalmente, entrei no saguão do aeroporto internacional La Aurora. Menos de quarenta e cinco quilômetros de percurso desde Antigua demorou mais de uma hora e meia.
O avião decolou e sobrevoou rota similar ao da ida. Destaque para vulcões em território provavelmente da Nicarágua. Um cuja cratera se enchia de água mansa, espelhada e escura. Outro, mais cônico e com encostas íngremes e raspadas pela descida de lavas, contava com a cratera expelindo cinzas e fumaça. Ilhas do lado do oceano Pacífico. Terreno seco e acastanhado, fartamente cultivado, nas ilhas e no continente.
Ao pousar no Panamá, áreas de manguezais, muitos navios no oceano, linha de arranha-céus na Cidade do Panamá, revelando ostentação e mau gosto, provavelmente imitação de congêneres daquele país ao norte do México, dono oficial do Panamá até o final do século XX.
Durante o segundo voo, o céu aberto me permitiu avistar as luzes de cidadezinhas e cidades do centro-oeste e sudeste brasileiro.
Desembarquei no meio da madrugada em São Paulo naquela segunda quinzena de março. Recusei os assaltos para comer alguma coisa no próprio aeroporto. E o metrô já começava a lotar de trabalhadores.
Depois do barato café da manhã na padaria do bairro, me deitei em casa para adormecer. Seguramente sonharia com as diversas e fascinantes facetas da Guatemala, todas elas ocupadas por povo sofrido, acolhedor, educado, sorridente.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Guatemala e Honduras (parte 5/6)

...continuação
Pouso sem sustos no aeroporto da Cidade da Guatemala enquanto a noite avançava. Por rodovias com tráfego intenso, sobretudo na saída da capital onde congestionou por vários quilômetros, o veículo tomou o rumo oeste. E logo entrou nas ruas calçadas de pedras irregulares da antiga cidade de Antigua.
Despenquei de sono na cama do hotel.
No salão do café da manhã, franceses não falavam e não entendiam, ou fingiam que não, outra língua que não a deles. E perguntavam de má vontade, sempre em francês, aos prestativos guatemaltecos se não falavam francês. Às respostas negativas, seguiam comendo com ares de enfado. A estupidez recorrente os afastava de todos, os empurrando a guetos, retroalimentando a própria segregação.
Saí pelas ruas de Antigua sem rumo, sem pressa, sem planos.
Embora bonita e razoavelmente bem conservada, a antiga capital da Guatemala, perdia feio para as similares cidades barrocas do Brasil. Construídas sobre terreno plano, as ruas e avenidas, normalmente largas e calçadas de pedra, contavam com traçado quadriculado, rigidamente no esquadro, respeitando os pontos cardeais. As avenidas no sentido norte sul e numeradas sequencialmente de leste para oeste. As ruas no sentido leste oeste e numeradas sequencialmente de sul para norte. Não emanava o charme irresistível dos becos, ladeiras, sinuosidades, traçado irregular, de, por exemplo, Ouro Preto, Tiradentes, Diamantina, Olinda, apenas para citar algumas das mais famosas no Brasil.
Mas Antigua reservava belezas próprias a cada quarteirão. As maiores construções, especificamente as igrejas, se encontravam parcialmente desmoronadas, em ruínas, em escombros, às vezes apenas com a frente em pé, como a Catedral. Reflexos diretos do terremoto de 1976 e dos tremores anteriores. As tais instituições internacionais, que tanto discorrem sobre reconstruções e restaurações, pouco ou nada faziam de concreto. A Catedral exibia, além da frente, pedaços de paredes internas, restos da cúpula e do teto, além de colunas, altos-relevos, imagens, peças em geral, espalhadas pelo chão, largadas ao sol ou sob as lonas plásticas improvisadas. E tudo isso décadas depois do sismo de alta intensidade.
Além da pobreza e miséria da maioria da população, a Guatemala sofria com o abandono da riqueza arquitetônica, histórica, artística, em uma das cidades mais visitadas do país.
Eu já sentia saudades dos ônibus coloridos, as camionetas, ausentes em Petén e na região do mar do Caribe. Para tanto, circulei pelo terminal de ônibus, urbano e interurbano de Antigua, situado atrás dos mercados municipais, me deliciando com o colorido dos veículos, entre o grito dos cobradores sobre os destinos de cada um deles aos potenciais clientes.
Caminhei muito. Apreciei portas, janelas, arcadas da praça Central, minúsculos sótãos acima dos telhados, tecidos brancos e violetas nas janelas indicando a quaresma, eventuais flagrantes de mulheres vestidas ao estilo tradicional de alguma etnia da cultura maia-quiché.
Ao redor da cidade, quilômetros adiante, a visão impressionante dos vulcões Acatenango, De Água e De Fuego, este em erupção explícita, soltando gases e cinzas atmosfera acima.
Na manhã seguinte, o veículo deixou as ruas de calçamento de pedra de Antigua e pegou rodovia rumo ao vulcão Pacaya. Ignorou o trevo de Escuintla e de várias cidadezinhas, como Amatitlán. Após a estradinha acentuadamente sinuosa subir bastante o relevo, se distanciando dos vales e povoados abaixo, atingiu o povoado de San Francisco de Sales.
A caminhada começou por trilha sobre terra escura, coberta de cinza e lava vulcânica pulverizada, oriunda das últimas erupções, em 2010 e 2014. Desde a reativação o vulcão Pacaya já contava com vinte e cinco erupções.
O solo vulcânico, escurecido, favorecia o cultivo de milho e abacate, entre outros itens. Uma usina geotérmica que extraía vapor quente de profundidades de até dois mil metros abastecia a energia de diversos povoados das imediações.
À medida que subia o relevo, o solo se tornava mais escuro e aumentava a granulação do terreno. Vegetação posterior às últimas erupções cresciam ao lado de árvores de médio porte que resistiram aos vulcanismos anteriores, entre elas o carvalho e a árvore de seiva avermelhada chamada localmente de chora sangre.
A vegetação rareava mais acima até desaparecer quase completamente, antes mesmo da subida final à cratera situada a dois mil e quinhentos metros de altitude e inacessível por óbvias questões de segurança. O vulcão Pacaya estava em atividade, soltando gases sulfurosos da extremidade da cratera.
Na base do cone da cratera tudo era cinza-escuro ou preto, proveniente do material basáltico, entre rochas, seixos, encostas, cavidades, matacões. Em uma faixa da encosta se via claramente a zona de contato entre duas lavas solidificadas, a cinza-escuro da erupção de 2010 e a castanho-avermelhada da erupção de 2014. Blocos soltos reservavam orifícios e porosidade, às vezes corpos pequenas cristalizações de quartzo. Nuvens e névoa surgiam do nada e cobriam o cone da cratera e as encostas mais altas. De algumas cavidades no piso da base soprava ar quente a partir de vapores provenientes das camadas mais profundas.
De volta a Antigua, eu desejava comer em local legitimamente guatemalteco e usado no dia a dia pela população trabalhadora. Encontrei autêntico comedor, pequeno, barato, acolhedor, tocado por casal maia-quiché e a filha adolescente. A dona, e também cozinheira, apresentou as duas opções de almoço. Fui de carne, arroz com legumes, guacamole, tortillas. Me hidratei com refrigerante nacional avermelhado. Não saí dali estufado, mas suficientemente satisfeito. Sem falar no preço, irrisório se comparado com os demais restaurantes da cidade e do país.
Em frente à igreja cinzenta da graciosa praça Escuela de Cristo ocorriam os preparativos para uma procissão da quaresma, período ferrenhamente cultuado na Guatemala. Os integrantes, homens, mulheres, meninos, meninas, se vestiam inteiramente de preto, da cabeça aos pés, fornecendo ar grave e funesto ao evento. Fieis e curiosos se aglomeravam na pracinha e no adro da igreja pesadona. Padres, parecendo os chefes do pedaço, revelavam rostos de pele clara, puramente europeus. E usavam e abusavam de expressões duras e autoritárias dirigidas à massa dos membros da procissão em formação, todos indígenas ou mestiços. À frente do cortejo, homens carregavam estandartes, negros, com dizeres religiosos ou ramalhetes de folhas verdes.
Dos interiores escuros da igreja começaram a sair os setores da procissão que percorreria parte das ruas de Antigua. O primeiro bloco se compunha de dois andores robustos de madeira trabalhada pintada em roxo e preto. O primeiro pequeno, o segundo imenso, levando o Cristo morto. Ambos os andores carregados nos ombros por fileiras de meninos em ambos os lados maiores dos retângulos. Na frente do primeiro andor, um menino de braços abertos simulava suportar todo o peso nas costas. Atrás do segundo andor, os músicos, percussão e instrumentos de sopro, conduzidos por maestro, todos também de roupa acetinada e preta. Tocavam temas litúrgicos, extremamente lentos, tristes, pesados. Melodias e ritmos soturnos, fúnebres. Era para sofrer mesmo!
Mulheres vestidas de preto e com véus negros e dourados distribuíam folhetos aos interessados. Os padres ou de outros cargos superiores, chefões puramente europeus, coordenavam os movimentos de todos, sem deixar de lado o semblante carrancudo e impaciente.
Das trevas da igreja começou a sair o segundo bloco da procissão. Novamente dois andores pesados e trabalhados nas cores negra e roxa. Ambos carregavam imagem da santa, o primeiro pequeno, o segundo imenso. Fileiras de meninas com ares de nenhuma satisfação pelo esforço físico levavam os andores nos ombros. Uma criança se postava na frente do primeiro andor, o menor. De braços abertos e cenhos franzidos, ela parecia suportar aos próprios ombros, sozinha, o peso da dor. Atrás do segundo bloco de andores carregados por meninas, também uma banda de músicos com maestro, percussão e instrumentos de sopro, tocando temas fúnebres, percussivos, depressivos, sofridos.
O cortejo passou sobre o tapete de folhas tendo o crucifixo ao centro, deu a volta pela pracinha Escuela de Cristo, pegou a rua dos Passos, ou Primeira avenida, no sentido norte. Fieis e curiosos seguiram atrás.
E voltei para não fazer nada no hotel.
A programação da televisão na Guatemala, aberta ou por assinatura, primava pela mediocridade. Noticiários, telenovelas, inclusive algumas brasileiras, filmes, esportes, programas de auditório, programas femininos, propaganda de empresas evangélicas e católicas, todos, se assemelhavam muitíssimo com a deprimente programação dos canais brasileiros. Um país parecia cópia do outro. Lá como cá, o objetivo é alienar, moldar, conformar, deformar. Nenhuma novidade em países como Guatemala e Brasil onde não há democracia nos meios de comunicação. Em vez de liberdade de Imprensa, as elites impuseram a liberdade de Empresa. Meia dúzia de corporações da mídia controla tudo e todos.
E amanheceu domingo. As ruas estavam tomadas por fieis e curiosos vindos dos vilarejos e cidades da região. A presença de turistas estrangeiros já não se impunha na paisagem humana, tamanha era a quantidade de guatemaltecos circulando por todos os cantos.
continua...

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Guatemala e Honduras (parte 4/6)

...continuação
A lancha avançava em águas do lago, sempre no sentido contrário à correnteza. Muita água e amplidão. As margens se distanciaram. As terras eram mais baixas. Casas isoladas. Pescadores tentavam a refeição do dia ou um excedente para vender ou trocar nos vilarejos por alimentos e mercadorias.
E logo surgiram algumas das causas de tanta pobreza, desmazelo e desserviços sociais na Guatemala. Tendo à frente imensos iates, suntuosas mansões de temporada, disfarçadas de rústicas e ecológicas, ocupadas pela elite guatemalteca e estrangeira. As mesmas elites que se beneficiaram pelos sucessivos regimes opressores desde o golpe Made in USA de 1954. E essas elites existem justamente porque as escolas e a assistência médica do país padecem pela falta de verbas, existem porque a maioria da população do país vive na pobreza ou na miséria, implorando “one dólar” aos turistas.
Mais à frente, o forte de São Felipe, construído pelos invasores espanhóis no século XVI.
E a lancha atracou no trapiche da vila de Rio Dulce. Embarquei em veículo que cruzou as ruas entupidas de ambulantes, comércio ruidoso, nervoso. Muita gente, a pé, de bicicletas, motos, veículos leves e pesados.
Mais adiante, rodovia de pista simples e cheia de caminhões, penetrando em região ocupada por chácaras, sítios, fazendas, em visual familiar, semelhante aos interiores do sudeste do Brasil. Cidades e vilas, tais como Modesto Méndez, San Luís, Poptún, Dolores, surgiam nas margens da estrada. Clima tropical, muito verde, calor, umidade. Era a região do Petén, norte da Guatemala. Montanhas a leste da estrada indicavam a proximidade com a fronteira internacional com Belize.
Monoculturas de palma africana, espécie exótica e importada irregularmente da África, envenenavam os solos da região com a seiva viscosa. Mas os lucros enriqueciam meia dúzia de grandes proprietários de terra, a gang do agronegócio. E fez lembrar os crimes sociais e ambientais das monoculturas de eucalipto e pinus pelos interiores do Brasil, os chamados desertos verdes. Catástrofes similares em dois países da América.
Mais estradas, aplainadas e bem distintas das do altiplano guatemalteco, sob o calor da tarde. E o veículo atravessou a ponte sobre as águas do lago Petén Itzá em Santa Elena, alcançando a ilha lacustre de Flores, onde se situava cidadezinha de mesmo nome, simpática, aconchegante, acolhedora.
Igreja no alto da colina, pesadona como as católicas construída pelos invasores espanhóis. Becos, ladeiras brandas, casario antigo, muitos com teto fortemente inclinado e coberto de chapas metálicas enrugadas. Na margem voltada para o poente, inúmeros bares, restaurantes, hotéis, pousadas, barracas de comes e bebes.
Jantei em restaurante de frente ao movimento da beira do lago. Fui de pimentão recheado, salada, acompanhados de muitas tortillas. E me hidratei com dois verdejantes mojitos.
Praticamente não vi indígenas nas ruas de Flores, elas ou eles, menos ainda de trajes tradicionais. A região de Petén concentrava população mestiça, mameluca, vestindo e se comportando de modo semelhante ao chamado mundo ocidental.
Depois do café da manhã, as estradas deixavam ao lado os vilarejos de Paxcaman, Ixlu, El Remate. E finalmente o Parque Arqueológico de Tikal, a atração turística mais internacionalmente famosa da Guatemala. E era para percorrer a pé a extensa área, explorando as principais evidências encontradas e pesquisadas até ali da civilização maia. Junto com Copán em Honduras e Palenque no México, Tikal foi a principal cidade maia daquela época.
Trilhas largas, bem marcadas e sinalizadas conduziam a diversos templos, praças, palácios, pirâmides, campos de jogos de bola, distribuídos pela floresta tropical rica em biodiversidade, entre árvores de grande porte, flores, macacos, aves, lagos, em relevo aplainado ou raros trechos levemente ondulados. O calor massacrava, sobretudo pela alta umidade, embora amenizado pelos caminhos naturalmente sombreados pela mata nativa.
As ruínas se encontravam em diferentes estados de conservação e de remoção da cobertura vegetal e de terra devido à antiguidade, ao abandono da área pelos moradores originais.
Além do templo Maior, fornecendo visão privilegiada de quase toda a área de Tikal desde o topo da pirâmide, dos templos 3, 5, do Mundo Perdido, do Observatório, da Praça dos Sete Templos, o destaque ficou por conta da Praça Principal, onde os templos 1 e 2, frente a frente, estrelavam. Os turistas compareciam em quantidade, sem, contudo, comprometer o silêncio e a tranquilidade para contemplar e apreciar o conjunto arquitetônico.
Na mesma Praça Principal, pequenas estelas, altares sagrados, alto relevo com inscrições, números, hieróglifos maias. Conforme a sinalização, alguns altares circulares ainda poderiam ser utilizados pelos habitantes atuais e herdeiros dos maias originais.
Depois de muito circular, observar, apreciar, estudar, aprender sobre a antiga cidade de Tikal, por mais de cinco horas a pé, a sede e a fome bateram em cheio. Longas mesas do refeitório interno do parque abrigavam grupos de turistas dos quatro cantos do mundo em ambiente arejado, sem paredes, ventilados naturalmente, sem o quase sempre supérfluo ar condicionado. Os simpáticos e descontraídos guatemaltecos serviam entre sorrisos.
Durante a refeição, o guia local emitiu opiniões fundamentadas sobre fatos da recente história da Guatemala, a dos últimos sessenta anos. O estopim veio das calúnias e difamações que a prêmio Nobel da Paz de 1992, a guatemalteca e maia-quiché Rigoberta Menchú, recebera dos meios de comunicação da classe dominante da Europa. Além de defendê-la das acusações, o guia se mostrou politizado e muito bem informado, se posicionando claramente sobre o caráter e as causas da exploração e opressão do povo guatemalteco, indicando que estratos defendiam quais interesses na luta de classes. Leitura simples, clara, direta, didática da situação social do país.
Entre os turistas em Tikal, se ouvia falantes de língua espanhola, japoneses, chineses, coreanos, italianos, franceses, alemães e, pela proximidade e pela dominação neocolonial, figuras provenientes daquele país ao norte do México. Desse último grupo, quatro trintões, embriagados, virando garrafas e garrafas de cerveja, gargalhavam e cantarolavam qualquer coisa, lançando olhares hostis e esbugalhados a quem se aproximasse.
No meio da tarde, de volta à ilha de Flores, dei mais voltas pelas ruas e becos, dessa vez escolhendo as vias internas. Casario interessante, balcões e sacadas de madeira pintada de cores fortes, outras cobertas com telhado de metal, alto e fortemente inclinado. Tuc-tucs avermelhados desfilavam a singeleza pelas ruazinhas em curva.
Jantei guisado de polvo e batatas em molho forte e picante, acompanhado de muito pão. Abri o apetite com uma dose de rum branco e desagradavelmente aromatizado. E encerrei a refeição com dose do mesmo rum, porém envelhecido em barril de carvalho e servido gelado. Sem encantar, desceu melhor que o anterior. Mas, porém, contudo, todavia, o rum, o rei dos destilados na América Central e Caribe e também destilado do caldo fermentado de cana-de-açúcar, perdia feio, em qualquer quesito, para a saborosa cachaça brasileira. E nem precisava ser das cachaças mais gabaritadas, brancas ou envelhecidas. Não era a primeira vez que experimentava e não me empolgava com o sabor do rum. Pela matéria prima empregada, a cana-de-açúcar, inevitável a comparação com a cachaça, esta sim imbatível entre as bebidas alcoólicas destiladas.
Na manhã seguinte, o veículo avançou próximo aos vilarejos de Paxcaman e Ixlu. Na beira do lago Sacnab, ao lado da aldeia de Macanche, lavadeiras se concentravam, cada uma delas em frente à respectiva pedra, para lavarem toneladas de roupas. E também para contar e ouvir as últimas novidades da vila. As crianças aproveitavam para se banhar e se refrescar do calor intenso, úmido e abafado.
O desvio à esquerda da estrada que seguia rumo à divisa internacional com Belize, por caminho encascalhado, levou à entrada do parque de Yaxhá, cujo portal se encontrava fortemente protegido por soldados do exército nacional, fardados e armados até os dentes. Nem em Tikal, a maior atração turística do país, e também a maior concentração de turistas estrangeiros, eu me deparei com tantas expressões carrancudas, uniformes camuflados, armas letais de última geração.
O parque de Yaxhá contava com trilhas largas e limpas rumo a praças principais e secundárias, pirâmides, templos, palácios reais, campos de jogos de bola, longas calçadas de comunicação, altares de sacrifícios e cerimônias, estelas ricamente trabalhadas em alto relevo, observatório astronômico, as torres gêmeas. Variavam o estado de conservação, assim como o estágio de escavação e pesquisa arqueológica. De qualquer maneira, ofereciam oportunidade única para tentar entender ou imaginar a vida e os costumes dos maias, seja por evidências explícitas, seja por inferências e suposições. O parque estava praticamente vazio, garantindo paz, silêncio, tranquilidade, necessárias para a exploração.
Subi as escadarias ao topo das pirâmides. Percorri trilhas pela floresta tropical. Ouvi gritos dos macacos nas proximidades. Observei pássaros variados e coloridos. Absorvi certa quantidade de informações.
O guia simpático e politizado, consciente das causas da catástrofe social que vivia a Guatemala, me deixou no final da tarde no pequeno aeroporto de Flores.
A aeronave de pequeno porte enfrentou zona de turbulência no meio do trajeto. Balançou, oscilou, subiu e desceu, em movimentos bruscos e assustadores. O pânico se alastrou entre os passageiros, que gritaram ou suspiraram alto. O avião se estabilizou em alguns minutos e todos voltaram ao normal, ou quase.
continua...

terça-feira, 14 de junho de 2016

Guatemala e Honduras (parte 3/6)

...continuação
Os hondurenhos e as hondurenhas da região mostravam peles mais claras, miscigenadas, menos indígenas. Da mesma forma, as roupas seguiam o padrão ocidental. Os sorrisos, a timidez, a submissão a estrangeiros, no entanto, se mantinham a mesma desde a Guatemala.
Não demorou a entrada ao parque das ruínas de Copán. Junto com Tikal na Guatemala e Palenque no México, compunham as três principais cidades da antiga civilização maia, antes e depois da era cristã.
O estado de conservação variava desde blocos rochosos desmoronados, construções parcialmente soterradas por terra e vegetação, a pirâmides e muros restaurados ou reconstruídos. As peças valiosas se encontravam protegidas no museu arqueológico da cidade de Copán.
Envolto pela floresta tropical, dotada de fauna variada, entre araras e cotias, as construções maias permitiam a visitação por baixo ou por cima, subindo as escadarias das pirâmides, templos, etc. Estelas, os monolitos verticais e intensamente trabalhados, revelavam detalhes da vida da época, contando com inscrições e hieróglifos que funcionavam como crônicas e relatos históricos.
O tempo claro e ensolarado, o frescor do final da tarde, sobretudo a ausência de turistas, permitiram a observação e apreciação de todo o conjunto, no geral e no particular, com calma e tranquilidade.
No finalzinho da tarde, a pequena Copán, cidade hondurenha colonial com calçamento de pedra, casario antigo, atmosfera de cidadezinha do interior. Grupos e famílias na praça da Matriz, missa programada para o começo da noite, restaurantes, barraquinhas de comes e bebes, os habitantes vestindo roupas de domingo.
Mais à noite, a praça da Matriz se animou em frequência diversificada e alegre. Em restaurante despojado, com muita madeira rústica e decoração entupida de objetos de todos os estilos imagináveis, chamou atenção a placa que proibia a entrada portando armas de fogo. Já avistara essa intrigante placa na portaria do hotel no centro de Panajachel, Guatemala.
Embora fosse proibida a venda e consumo de bebidas alcoólicas aos domingos depois das 17h, o restaurante liberava alguns coquetéis. E a proibição não era sem motivo. Ao entardecer, dezenas de bêbados, alguns de boa aparência e bem vestidos, cambaleavam pelas ruas e calçadas. Dois borrachos cismaram com duas turistas, tentando desajeitadamente ajudá-las naquilo que elas nem precisavam. Mais babavam e tropeçavam nos próprios beiços do que falavam ou explicavam. Apesar de tudo, os inofensivos bebuns com os chapelões na cabeça mais divertiam do que assustavam.
Detonei dois mojitos permitidos e bem preparados antes de cair de cabeça em carne grelhada com batatas, picles de legumes, nachos, pasta de feijão preto.
A praça da Matriz era prestigiada pelos simpáticos cidadãos. As ruas das imediações, estreitas, escuras e vazias, mas sem amedrontar em local onde parecia reinar a paz e a segurança. Atmosfera diferente e instigante.
Não muito depois da partida matinal da acolhedora Copán, a fronteira de volta à Guatemala, pegando o rumo nordeste, passando ao lado de Chiquimula, Zacapa, Rio Hondo, Los Amates.
As estradas de pistas simples e em asfalto irregular percorriam vale margeado pela muralha do altiplano guatemalteco a oeste. Cruzavam terrenos aplainados, tropicais, exibindo paisagens familiares do sudeste brasileiro. A pobreza se mantinha escancarada. Casas, casebres, barracos, em péssimas condições. Pontos de educação e saúde caindo aos pedaços, semiabandonados. Transportes coletivos que tratavam a população como gado, amontoando gente nas carrocerias. Vestimentas no estilo ocidental, puídas. Nada de trajes tradicionais indígenas. Mestiçagem acentuada em que homens e mulheres não apresentavam traços característicos marcantes de nenhuma origem. Algumas terras cultivadas de frutas. Algum rebanho de animais. Rios encascalhados com pouco volume de água em razão do inverno costumeiramente seco. Rostos sofridos e precocemente envelhecidos, deles e delas. Gente explorada, oprimida, largada à própria sorte.
Parada no sítio arqueológico de Quiriguá. Em meio à floresta tropical, com árvores seculares de grande porte, evidenciando clima quente e úmido, o pequeno e atraente conjunto de ruínas maias, guardava estelas finamente trabalhadas e informativas, altares em alto relevo, pirâmides cobertas de terra e vegetação ou reconstruídas, praças, campos de jogos de bola.
Ainda restavam pela frente as cidades de La Ruidosa e Entre Rios. Depois, a estrada desembocou na cidade portuária de Puerto Barrios, feia, decrépita, suja, desleixada, bagunçada. Caminhões, cargas, construções de péssimo aspecto, poluição, congestionamentos, poeira.
Embarquei em lancha simples, à beira das águas do mar do Caribe, oceano Atlântico. Negros e negras, inexistentes em outras regiões da Guatemala, começavam a se fazer notar. Travessia agradável até a foz do rio Dulce, passando por discretas praias ao norte da baía marítima. Milhares de pelicanos acinzentados pousavam nos trapiches de madeira.
Após acessar a boca do rio Dulce, a lancha ancorou no trapiche de Livingston. A vila abrigava população negra, indígenas da etnia garifuna, mestiços, brancos, turistas convencionais, neomochileiros, todos comprimidos em pequeno triângulo de terra entre a margem esquerda da foz do rio Dulce, o mar do Caribe no oceano Atlântico, e a não muito distante fronteira internacional com Belize.
Na ruazinha principal da vila, transversal ao rio e ao mar, repleta de comércio simples e variado, onde pedestres disputavam espaço com produtos à venda, bicicletas, motos e raros carros, um sujeito que se dizia panamenho me abordou em inglês e, carregado daquela falsa simpatia profissional, queria me guiar sei lá aonde. Primeiro adverti que ele se comunicasse em espanhol, a língua oficial da Guatemala. Ao saber de onde eu era, soltou as balelas decoradas que adorava o país, que tinha parentes lá, que se encantava com os brasileiros. E solicitou que o acompanhasse pela vila para que pudesse me indicar “o melhor restaurante da cidade”. Ignorei, sorri e fui andando. Ele ainda teve tempo de me oferecer maconha, haxixe e sei lá mais o quê, garantindo ser “a melhor mercadoria da cidade”.
Ao final da rua cheguei ao mar do Caribe. Praia de mar aberto, em que as ondas ameaçavam invadir o concreto do passeio. Mal se via a areia. Bares e restaurantes, velhos e abandonados, casas velhas e abandonadas, lixo, muito lixo em todos os cantos, desolação, abandono. Apesar do dia claro, ensolarado, com céu azul e livre de nuvens, praticamente ninguém por ali. No mar, sobre um recife, imagem de santa pintada de branco.
Circulei pelas ruas paralelas e transversais à rua principal. Muito reggae vibrando nas casas de madeira ou alvenaria e habitadas por população negra. Atmosfera geral de desmazelo, indolência, indiferença ao presente e ao futuro, mas também de descontração, tranquilidade, paz, segurança, ausência de riscos.
Desci ao porto da cidade, justamente onde começava a rua principal, e do qual saíam linhas regulares de barco para Puerto Barrios. Movimento de porto, comércio de beira de porto, sujeira de porto, frequência de arredores de porto.
Era uma Guatemala impressionantemente distinta da do altiplano indígena, da capital e de outras regiões, com paisagem, clima, ocupação humana, cultura em geral, tão oposta.
Encostei o esqueleto em bar bem de frente ao movimento da rua principal naquele fim de tarde. Um cheiro delicioso de pão quentinho vinha da padaria do outro lado da rua. De posse do diário, bebericando o daiquiri aguado e insosso, escrevi minhas impressões e reflexões do dia. Eu parecia um escritor maldito diante do papel, caneta, o copo, a bebida, frases inspiradas.
Depois de dormir maravilhosamente bem, ouvindo o barulho do rio sob os efeitos da maré batendo nas muradas do trapiche e os primeiros motores de barcos cruzando as águas do rio ao amanhecer, saltei da cama para mais um dia na incrível e diversificada Guatemala.
A lancha partiu cedo, rio Dulce acima. Após margear a vila de Livingston, na margem esquerda do rio, com casinhas, palafitas, trapiches, ancoradouros, hotéis, restaurantes, oficinas de embarcações, a lancha entrou pela garganta estreita e profunda do rio, cercada de altos paredões rochosos esbranquiçados, lindamente cobertos pela vegetação espessa da floresta tropical. Era um verde vivo, intenso, proporcionando um bem danado aos olhos, à alma. Nenhuma construção, lavoura, animais, ao longo das escarpas íngremes e da garganta. As águas esverdeavam pelo reflexo da floresta desenvolvida nos paredões.
Mais à frente, em cujas margens havia condições topográficas para construções, se erguiam casas e cabanas esparsas, cobertas de palha, muitas sem as paredes externas. Canoas levavam pescadores, de anzol, rede ou tarrafa.
Em seguida à curva acentuada, a lancha encostou à plataforma onde funcionava escola de ensino fundamental, ao lado de pequena concentração de cabanas de madeira. Precariedade total, nas carteiras, paredes, instalações sanitárias, condições de trabalho e materiais à disposição dos professores. As crianças de uma das duas salas de aula saudaram os visitantes. A aula foi interrompida. Todos levantaram e cumprimentarem efusivamente. Sorridentes, os alunos e alunas olhavam curiosos e assustados. A professora pediu às crianças para cantar uma conhecida canção infantil. Cantaram em várias línguas, regionais e internacionais. Tanto descaso na qualidade do ensino e as crianças decoravam canções em línguas diferentes!
Uns turistas da lancha doaram canetas para os alunos mais próximos. E, intencionalmente ou não, atiçavam a mendicância. Tanto que três das crianças, pré-adolescentes talvez, abordaram pedindo dinheiro, “one dólar”, ou simplesmente “dinheiro”. Outra turista, realimentando a mendicância, entregou dinheiro ao mais ousado deles, junto à recomendação para que dividissem entre si. Ingenuidade, má fé, alienação, não sei. Mas tais atos, na Guatemala ou em qualquer lugar do mundo, sempre incentivarão e alimentarão a mendicância. A passageira sensação de consciência tranquila, de “ajudar de alguma forma”, impedia que percebessem o mal que cometiam. Mesmo porque, próximo ao ponto final da travessia fluvial, bateríamos de frente com as causas e os responsáveis pelo descalabro da educação e pela penúria em que vivia tanta gente pelos interiores do país.
Nova parada à montante em canal da margem do rio Dulce, ao lado de piscina de águas naturalmente termais, quentes e sulfurosas. Morro acima, as bocas de duas cavernas com centenas de metros de profundidade no sentido das nascentes das águas termais. Avistei na trilha dois escorpiões marrons fugindo em disparada dos meus passos.
Mais acima, em afluente, casas e cabanas de madeira. Entre as construções, hotel no estilo rústico e sofisticado, voltado para clientes estrangeiros, endinheirados e bem nutridos, em busca do “verdadeiro contato com a natureza”.
Ainda no rio Dulce, o início do lago Izabal, em cujas águas esverdeadas brotavam pequenas e graciosas flores aquáticas de pétalas brancas, ao lado de vegetação flutuante circular e verde, remetendo à vitória-régia da Amazônia. Canoas a remo logo se aproximaram, vindas das cabanas das margens, trazendo mulheres e crianças, vendendo bugigangas de sementes, conchas, madeira, adornos, colares, brincos, pulseiras.
continua...

terça-feira, 7 de junho de 2016

Guatemala e Honduras (parte 2/6)

...continuação
Em carroceria de caminhonete, meio de transporte muito comum no país, cruzei toda a vila de Santiago Atitlán, passando acima de dezenas de lavadeiras esfregando e estendendo roupas sobre pedras na beira das águas.
Desci para conhecer local de culto sincrético entre o cristianismo e as tradições da cultura maia-quiché, em torno da divindade chamada Maximón. Nos fundos de casa simples, com muito lixo na entrada e no acesso à precária construção, uma estátua ou figura humana masculina coberta de oferendas e panos, ao lado da imagem do Cristo morto. Na penumbra apenas iluminada por velas esparsas ou filetes de luz natural, os fieis ofereciam dinheiro, tabaco, álcool, orando para pedir sorte, felicidade, cura de doenças, isso e aquilo.
A caminhonete me deixou nas imediações do mercado central. Mais autêntico que o de Chichicastenango, e também ao ar livre, voltado para a população local, o mercado de Santiago Atitlán vendia produtos espalhados principalmente sobre tecidos estendidos no chão. Perambulei pelas estreitas e lotadas vias entre as centenas de barracas, comidas sobre esteiras no meio das ruas e becos, lojinhas nas calçadas.
Novamente a lancha para cruzar as águas do lago Atitlán, no sentido da cidade de Panajachel. Depois, as já familiares estradas pelas montanhas que rodeiam o lago Atitlán. Passou novamente por Sololá e o trevo de Los Encuentros, de onde pegou a rodovia pan-americana, via com tráfego intenso de automóveis, ônibus, caminhões.
Parada para almoçar em restaurante de beira de estrada. Nenhum turista, apenas guatemaltecos em trânsito. Fui de pimentão recheado, arroz com legumes, salada mista e, é claro, não poderia faltar, tortillas, muitas tortillas, para dar sustância. E ainda acrescentei torta de frutas variadas.
E mais rodovia pan-americana antes do ramal rumo à cidadezinha de San Andrés Xecul, em cujo centro se erguia igreja pitoresca e destino de peregrinações. A construção, pesada como todas as de herança do barroco espanhol, comportava frente pintada de amarelo vivo e chamativo, repleta de imagens de santos católicos e divindades maias, expondo, novamente, o sincretismo religioso tão comum na América. Os interiores da igreja guardavam rachaduras significativas decorrentes dos diversos terremotos da história da Guatemala.
Retomada da rodovia pan-americana, de pista simples após o trevo de Quetzaltenango. Não faltaram buracos e trechos sem asfalto nas imediações de Quatro Caminos e San Francisco El Alto, fatores agravados pelo tráfego intenso, pelas curvas acentuadas, pelo sobes e desces do altiplano guatemalteco. Impossível superar a velocidade média de 50 km/h.
E surgiam placas nas margens da rodovia, especialmente junto a zonas residenciais, alertando que a vizinhança se encontrava treinada e preparada contra a delinquência. Combater as causas sociais e primeiras da delinquência, porém, não parecia ser a prioridade de ninguém por ali.
O relevo subia sem parar. Cruzamos a barreira dos três mil metros de altitude. A neblina e as nuvens baixas cobriram tudo e complicaram a visibilidade. E escureceu sob a chuva fina e intermitente.
No começo da noite, a feia cidade de Huehuetenango. Depois de largar as tralhas no quarto, desci ao salão de jantar do hotel, demasiadamente formal. No momento em que eu tocava no guardanapo, artisticamente dobrado sobre o prato, o garçom apareceu voando, retirou o guardanapo da minha mão, executou trejeitos no ar, soltando o nó do tecido, e o colocou feito dançarino clássico sobre meu colo, como se fosse véu único e valioso.
Escolhi sopa típica daquela região, recheada de legumes, queijo, frango, milho, temperos marcantes. As tortillas, sempre elas, não faltaram e me ajudaram a forrar o estômago. O atendimento, exageradamente afetado dos garçons descendentes diretos dos antigos maias, mas simpático, acolhedor, sorridente, perdurou por todo o lauto jantar.
Nada do bom e velho bufê livre no café da manhã. Escolhi a opção chapin, ou guatemalteca, contando com ovos mexidos com tomate e cebola, pasta de feijão preto, queijo branco, banana assada, manteiga, tortillas, café com leite. Certamente me abasteceria mais e melhor do que as familiares e mais leves.
Huehuetenango, cidade de importância econômica e logística, mas sem belezas arquitetônicas, era base conveniente para explorar os arredores. Nem bem acabaram as ruas da cidade, e passando por Chiantla, as estradinhas asfaltadas, mas estreitas e extremamente íngremes, começaram a serpentear a serra dos Cuchumatanes, subindo acentuadamente, em meio a cruéis sinuosidades. Nos ziguezagues fechados, os veículos maiores precisavam invadir a pista contrária a fim de conseguir completar o movimento. As lotações com passageiros locais transitavam como loucos, ultrapassando nas curvas, em trechos sem suficiente visibilidade, arriscando a vida de todos. Não por acaso se viam cruzes afixadas nas beiradas da pista indicando vidas perdidas pela imprudência deliberada. Precipícios se multiplicavam à medida que a estrada subia.
O tempo que amanhecera encoberto e ameaçador abriu, liberando o sol para brilhar no céu incrivelmente azul. E o frio veio com tudo.
Comunidades esparsas cultivavam o mínimo essencial naquelas altitudes. Solos rochosos com evidências vulcânicas. Espécies de sisal de grande porte, pequenas hortas, rebanhos de ovelhas. População inteiramente indígena.
O veículo alcançou o topo da serra dos Cuchumatanes, a 3.500 metros de altitude. Dali a vista estupenda, acima das nuvens, do vale a oeste, dos ziguezagues da estrada, dos precipícios, encostas, vilarejos, partes da cidade de Huehuetenango, vulcões distantes, inclusive o Tajumulco, o mais alto da Guatemala, já extinto, com mais de 4.200 metros de altitude.
Crianças e uma senhora idosa logo rodearam implorando ajuda pra enfrentar as carências da vida miserável. Pedintes e indigência seriam regra naquela viagem. A situação de miséria e pobreza que vivia a maior parte do povo da Guatemala decorria de sucessivas ditaduras, civis ou militares, com ou sem eleições, a serviço das corporações estadunidenses. E esse longo ciclo de opressão e exploração teve início com o golpe de Estado de 1954, organizado, financiado e posto em prática pelo regime terrorista ao norte do México, através de bombardeios aéreos, de apoios logísticos e de armas, de recrutamento e treinamento de exércitos de mercenários junto a miseráveis dos países vizinhos, de propaganda na mídia para semear o pânico, de apoio total e escancarado à elite local e às corporações estadunidenses, em especial à infame United Fruit, La Frutera. Os contos do livro Week-End Na Guatemala, de Miguel Ángel Asturias, tratam com rara lucidez e brilho literário aqueles eventos criminosos.
Mais adiante dos altos da serra, o veículo percorreu o altiplano das Cuchumatanes, pouco povoado e raramente cultivado. O frio e o vento constante fustigavam a paisagem.
Entre mais ziguezagues e relevo acidentado, iniciamos a descida do outro lado da serra, rumo ao vale onde se localiza a cidadezinha de Todos Santos Cuchumatán. A descida por estradas estreitas cruzava pequenas propriedades, construções recentes de dois ou mais pavimentos. Algumas delas exibiam a bandeira do regime estadunidense, em razão do dinheiro ali empregado vir das remessas dos guatemaltecos que eram obrigados a se sujeitar a subempregos naquele país. País cujo regime, não por acaso, era o responsável pela miséria dos guatemaltecos.
E continuou a descer cada vez mais, até a entrada da pequena vila de Todos Santos Cuchumatán, encravada na encosta montanhosa. A estrada principal prosseguia no sentido noroeste, rumo a uma das fronteiras com o México.
Era o dia da feira semanal dos sábados, ao ar livre. Destaque para os trajes tradicionais dos descendentes dos maias. Eles, crianças, jovens e adultos, vestiam roupas impecavelmente novas, limpas, passadas. Calças longas e largas, vermelhas com listas verticais brancas, camisões brancos com detalhes e listas finas e verticais azuis, bolsa de tecido estampado e colorido, chapéu de abas curtas com círculo decorado em tons azulados. Compunham festival de cores vivas e alegres. Elas naquele festival de cores e bordados, predominando os azuis, levando o filho enrolado às costas.
Embora de pequena extensão, o mercado a céu aberto vibrava pelos produtos oferecidos, circulação do povo vestido a caráter para ocasião tão nobre, sorrisos sempre presentes, pela transparência da manhã ensolarada, pelo otimismo, ainda que passageiro, dos que se deslocaram de tantos vilarejos das redondezas.
O veículo refez todo o trajeto da manhã, subindo e descendo as encostas sinuosas e íngremes da serra dos Cuchumatanes. Passou batido ao lado de Chiantla e Huehuetenango. Retomou a rodovia pan-americana, ali ainda de pista simples e trânsito infernal.
Parada para experimentar os chicharrones, o popular torresmo de porco. Era barraca de beira de estrada caindo aos pedaços, velha e encardida, atendida por casal idoso vestindo roupas velhas e encardidas. Água corrente ou demais serviços sanitários por ali, nem pensar. E provei aquela iguaria tão comum nos interiores guatemaltecos, acompanhada de tortillas, é claro, e rabanete picado. Tudo na beira da rodovia, estreita, entupida de ônibus, lotações, caminhões e mais caminhões, com direito a poeira, fumaça de escapamentos, poluição sonora.
A rodovia pan-americana retomou a pista dupla e melhores condições do asfalto a partir do trevo de Quetzaltenango, em Quatro Caminos. O tempo voltou a fechar com nuvens baixas e escuras. A temperatura que voltara a subir caiu levemente.
Perto de Tecpán, almocei carne de porco e guacamole, acompanhada de, adivinhem, é claro, tortillas, muitas delas, claras e escuras.
Recomeçou a chover fino nas proximidades de Chimaltenango e Mixco, acompanhado de congestionamento respeitável. Entrei na capital da Guatemala antes de anoitecer.
Levantei com tempo suficiente para detonar no café da manhã que consistia de farto e variado bufê, livre, à vontade. Ataquei sem dó nem piedade.
O veículo cruzou avenidas planejadas e bem arborizadas do centro expandido da Cidade da Guatemala. Margeou a periferia, assustadoramente pobre, com barracos em vias de despencar dos altos paredões verticais. E pegou a rodovia de pista dupla no sentido do vale do Motagua.
O sudeste da Guatemala era mais seco, de clima semiárido. Vegetação rala, solo pedregoso, eventuais leitos de riachos sem um pingo de água na superfície, pouca terra cultivada, esparsos rebanhos bovinos e ovinos. E não havia o colorido das culturas indígenas do altiplano. Os tipos físicos mantinham ainda traços dos descendentes dos maias, porém mais claros, mestiços, vestindo roupas padrões do mundo ocidental. Em terrenos isolados das margens da estrada, culturas irrigadas de melões, melancias, mamões. Banquinhas junto ao asfalto ofereciam os produtos frescos aos viajantes. A pobreza, regra geral em toda a Guatemala, ali se escancarava com mais evidência, nas moradias, vestimentas, aspecto de tudo.
Veículos decorados com guirlandas coloridas, inclusive os alegres e charmosíssimos ônibus antigos, as camionetas, faziam o caminho de volta de romaria ao local onde se venerava um Cristo negro.
O veículo avançava pelas estradas. Passou ao lado de Sanarate, Guastatoya, Teculután, Rio Hondo, Estanzuela, Zacapa, Chiquimula, Jocotán, El Florido. Pertenciam geograficamente ao vale do Motagua, o que fez lembrar o delirante conto Americanos, Todos!, incluído no livro Week-End Na Guatemala, de Miguel Ángel Asturias.
À medida que a fronteira hondurenha se aproximava, mais miséria e desolação do povo guatemalteco. Numa parada nas imediações de El Florido, os moradores, sobreviventes na verdade, das casas de taipa cobertas de palha, apareceram e, assustados, me observaram entre sorrisos tímidos. Eletricidade, água e esgotos, nem pensar. O Estado não existia por ali, talvez somente com a costumeira repressão contra os pobres.
E surgiu a fronteira internacional. Os chapéus gigantescos, de abas largas e curvadas para cima, invariavelmente brancos ou de cores claras, na cabeça de praticamente todos os homens adultos, deram as boas-vindas a Honduras. Automaticamente me lembrei da figura do ex-presidente hondurenho Manoel Zelaya, deposto por golpe de Estado em 2009, financiado e apoiado pelo regime terrorista daquele país ao norte do México, pelo simples fato do governo dele ter se preocupado com os pobres.
continua...

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Guatemala e Honduras (parte 1/6)

O metrô e o ônibus comum me levaram ao Terminal 2 do aeroporto internacional de Cumbica. Circulei pelos saguões sem consumir nada nos comércios abusivamente caros. E passei batido pelas lojas do freeshop, inundado de inutilidades.
No início de março o avião apertado decolou quase lotado. Desembarquei na Cidade do Panamá de manhãzinha. O segundo voo cruzou os céus da América Central de sudeste a noroeste, do Atlântico ao Pacífico. Ilhas, praias, oceanos, crateras de vulcões ativos e extintos, lagos, rios estreitos e sinuosos, serrotes, cidades e vilarejos cintilando ao sol.
O avião pousou na Cidade da Guatemala no final da manhã. Enquanto a aeronave rodava acima da cidade aguardando autorização para descer, a visão de três vulcões. O De Fuego, em plena atividade, expelia fumaça cinzenta e espessa, atingindo centenas de metros acima da cratera. À noite, a lava incandescente, avermelhada, brilhante, iluminada, escorria da cratera pelas encostas do cone.
Nos arredores das pistas do aeroporto, favelas e mais favelas acima dos barrancos de um lado, prédios comerciais e residenciais do outro.
Avancei por avenidas sem fim da capital, algumas arborizadas na forma de charmosas alamedas sombreadas, até o bairro chamado de Zona 10. Fui alertado sobre o risco de roubos e assaltos, em bairros e no centro da cidade. Mas ali, conhecido como Zona Viva, cheio de prédios altos, escritórios, hotéis, bares, restaurantes, comércios metidos a besta, não havia perigo. Não por acaso, muito, mas muito mesmo, em todo canto, policiamento truculento, segurança privada carrancuda, ostentando armamento pesado, de guerra.
Almocei em restaurante de comida guatemalteca. Comida saborosa e barata. E atendimento simpático, sempre acompanhado de sorrisos, em especial da baixinha que assava as tortillas.
Acordei faminto para o café da manhã. No salão, alguns turistas europeus e estadunidenses, mas principalmente falantes de língua espanhola, com feições indígenas, vestindo roupas formais, provavelmente a trabalho, vindos do interior da Guatemala ou dos países vizinhos.
A saída da capital se deu via rodovias duplicadas, altiplano acima, em meio a curvas acentuadas, a sobes e desces. Depois do subúrbio de Mixco, vilarejos agrícolas cujas mulheres vestiam trajes tradicionais, coloridos, trabalhados detalhadamente.
A extensa e famosa rodovia pan-americana penetrou na região de Chimaltenango, razoavelmente cultivada e intensamente viva no comércio, nas ruas, nos transportes lotados e ariscos. De cara chamaram a atenção os ônibus coloridos e vivamente decorados. Dotados de carrocerias antiquíssimas, mas esbanjando charme, as camionetas reinavam absolutas nas cidades, vilas, subúrbios, rodovias. Motos adaptadas, com carroceria e cobertura, os tuc-tucs, similares aos da Ásia, serviam de táxis para corridas mais curtas.
Nas proximidades de Tecpán, estrada vicinal rumo às ruínas da antiga cidade maia de Iximché. A maquete em exposição na entrada do parque exibia o que foi a cidade inteira, antes do abandono da população e da consequente sujeição a intempéries, terremotos, desgastes naturais, à cobertura de terra e vegetação.
Iximché englobava extensa área, entre pirâmides, praças, palácios, altares de sacrifício, campos de jogos de bola, bases de oferendas. Mais adiante das ruínas, após percorrer trilha larga na floresta, ao pé de morro escurecido pela fuligem das sucessivas fogueiras no chão, duas famílias realizavam rituais para alcançarem desejos, sonhos, vidas melhores. A fumaça ascendente, as posturas, os olhares, as expressões, se imbuíam de concentração e fé.
Na beira da estrada almocei linguiça de porco com pasta de feijão preto e guacamole, acompanhado de várias tortillas, sobre as quais apliquei molho e pimenta.
A rota se manteve no asfalto da pan-americana por horas, até os altos de Sololá, mais precisamente Los Encuentros. Era entroncamento rodoviário repleto de lotações, ônibus e tuc-tucs. Meios de transporte populares, camionetas, caminhonetes, tuc-tucs, lotações em geral, desrespeitavam descaradamente as mínimas leis de segurança no trânsito. Excesso de lotação e de velocidade, ultrapassagem nas curvas ou com faixa contínua, tráfego pela contramão, direção suicida. Tudo para chegar mais rápido que a concorrência e atender aos absurdos tempos de percurso impostos pelos donos das frotas. Situação igualzinha à da crueldade imposta aos motoboys da região metropolitana de São Paulo.
Subi em um daqueles ônibus coloridos, a legítima camioneta, ao lado de guatemaltecos do altiplano. Vivenciei parte infinitesimal da rotina diária deles. Não chegou a lotar, pelo menos não naquela rota, naquele dia, naquele horário. Passageiros subiam e desciam no meio da estradinha estreita e sinuosa, serra abaixo.
Lá no fundo do vale, o centro da cidade de Sololá. Desembarquei ao lado da suntuosa igreja, decorada internamente com motivos da quaresma e da páscoa.
Daí rumo ao lago Atitlán. Parada na vibrante cidade de Panajachel, ocupada por enxames de turistas, sobretudo de neomochileiros, tentando a todo custo se sentirem naturais e à vontade em meio aos guatemaltecos. Pelas ruas estreitas abundavam os sensacionais ônibus coloridos, avermelhados, amarelados, esverdeados, brilhantes. Guardas com armas de guerra se postavam na frente dos bancos, as instituições sagradas do capital.
O final da tarde corria solto através de sobes e desces pelas estradas estreitas e sinuosas, margeando escarpas, até o vilarejo de Santa Catarina Palopó, à margem do lago Atitlán, com direito a vista de três vulcões que se erguiam na margem oposta.
Amanheceu escandalosa e deliciosamente com o canto dos pássaros, galos, latidos de cachorros. Circulei pela beira das águas, pelo ancoradouro cheio de barquinhos esperando os condutores. Mulheres coloridamente vestidas à maneira autêntica da etnia local começavam a estender tecidos também coloridos ao longo do beco que dava acesso ao centrinho do vilarejo. Ao final do beco, caminhei lentamente ao redor da pracinha em cujo centro se erguia discreta igreja. Caminhões descarregavam lenha que era imediatamente recolhida, em blocos amarrados e transportados às costas, sobretudo por mulheres vestidas a caráter.
Em hotel que não oferecia o café da manhã no sistema de bufê, escolhi a opção sololateca. Além de café, leite, manteiga, suco, pão à vontade, geleia de morango em pedaços, veio ovos mexidos com tomate, feijão preto, queijo branco, banana frita.
O itinerário subiu novamente as escarpas dotadas de vistas estupendas das águas do lago, vulcões, montanhas, vilas. Passou pela já conhecida Sololá e pelo trevo em Los Encuentros. E o trajeto tomou estrada incrivelmente sinuosa, cruzando serra íngreme coberta de vegetação de médio porte, de um verde pálido pela seca do inverno tropical. Alguns trechos cultivados, pequenas propriedades, indígenas na lavoura. Elas bem coloridas e às vezes com turbante, carregando o filho enlaçado às costas. Eles com calças largas, de tecidos estampados ou de listas verticais, geralmente curtas ou levemente abaixo dos joelhos, tecidos enrolados na cintura, chapéus de abas largas e curvas.
Em nenhum nível o ensino era obrigatório na Guatemala, país com alto índice de analfabetismo. Havia sistema de saúde pública, mas em colapso total. Faltavam medicamentos, soros, gazes, itens básicos e essenciais para o mínimo funcionamento. A educação e a medicina privada, para poucos, sorriam de felicidade diante do caminho livre para mais lucros.
E chegamos a Chichicastenango, cidade serrana abrigando a tradicional feira ao ar livre das quintas-feiras. As ruas e becos se entupiam de barracas, tendas, quiosques, oferecendo artesanato, real e industrializado, produtos para todos os usos imagináveis, comida, sobretudo tortillas claras ou escuras, dependendo da cor do milho, batatas, frituras em geral, doces, frutas, matérias primas. Vendedores avulsos, principalmente crianças, circulavam por entre o conjunto, tentando sobreviver e juntar algum para a família.
A todo instante, vindos das redondezas, carrocerias de caminhonetes, ônibus coloridos, lotações, despejavam fregueses para a feira. Era o dia da abundância, da felicidade, ainda que ilusória, do reencontro entre conhecidos e familiares. As cenas me lembraram dos versos no poema Manhã, de Paulinho Pedra Azul e Marcelo Drummond.
As igrejas da cidade, sobretudo a de Santo Tomás, de arquitetura pesada, internamente escura, lúgubre, revelavam atmosfera triste, soturna. Os fieis ocupavam os corredores com objetos fúnebres, de culto e comunicação com os mortos. Conjuntos de velas acesas, também nas cercanias da nave principal, serviam de pontos de orações, pedidos, lamentos, choros, de familiares dos mortos. Verdadeira neblina cobria os interiores da igreja, entre murmúrios desesperados, orações cheias de dor, lamúrias sentidas. Era a fé do sincretismo entre o cristianismo e a crença tradicional maia-quiché, esta registrada no livro sagrado do Popol-Vuh.
Ambulantes vendiam flores, velas, demais utensílios para os rituais, nas portas e escadarias das igrejas. No interior de uma delas, fieis consultavam videntes, adivinhos, místicos, que liam a sorte, previam o futuro, atendiam pedidos dos mais variados. Os homens sagrados se muniam de pedras e pequenos objetos coloridos que fizeram lembrar os búzios das também sincréticas religiões afro-brasileiras.
 Assim como os demais avistados na região, o cemitério da periferia de Chichicastenango usava e abusava de cores vivas e alegres nos mausoléus, tumbas, lápides. Também ali, familiares dos mortos acendiam fogueiras para se comunicarem com os que se foram. Entoavam orações, ora em espanhol, ora em uma das línguas maias.
 Almocei em restaurante simples e, como de praxe entre os guatemaltecos, bem atendido. Fui de sopa de milho e legumes, tortillas, muitas tortillas, molhos apimentados na mesa, carne de porco, arroz, guacamole, rabanetes.
O comércio das empresas evangélicas florescia em meio à pobreza da Guatemala. O fundamentalismo lucrava horrores em cima da ignorância, da falta de escolaridade, despolitização, ausência de democracia e de liberdade de imprensa, da miséria material e política dos guatemaltecos. Proliferavam nomes dos mais esdrúxulos e hipócritas nas portas dos cultos farsescos das corporações evangélicas.
Da cidade de Panajachel, eu tomei lancha matinal. A embarcação cruzou as águas do lago Atitlán, permitindo a contemplação de montanhas que cercavam as águas, dos vulcões, vilarejos, eventuais barcos de pesca.
Atracando na vila de Santiago Atitlán, logo chamou atenção as roupas tradicionais da etnia Zutuhil. Os homens vestiam calças listadas, coloridas e curtas, camisas sociais, novas, limpíssimas, passadíssimas, sem vincos Os chapéus imensos, de abas largas e curvadas para cima. Elas, além das roupas sempre coloridas e trabalhadas, decoradas de panos nas costas e nos braços, cobriam a cabeça com tiras de tecido vermelho, quilométricas, enroladas em dezenas de voltas concêntricas em cujas últimas e externas vinham tiras coloridas.
continua...