A sede veio a galope. Bebemos bastante água, seguida de
mais sede e mais água. Tudo era caro na Ilha do Mel, sobretudo os líquidos.
Levamos a do estabelecimento que doeu menos no bolso.
Desprovido de planos para o dia seguinte, optamos por
passeio de lancha ao redor da ilha. Depois de voltear a extremidade sul, margear
as praias de mar aberto, o farol, o vilarejo de Nova Brasília, paramos na praia
da Fortaleza onde se erguia a Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres,
construída no século XVIII pelos invasores portugueses. Visitamos os
interiores, os salões vazios e gradeados, as ameias acima, a fileira de canhões,
o topo do morro oferecendo a vista panorâmica do nordeste da ilha.
Ao norte da Ilha do Mel, paramos na Ilha das Peças, onde
moradores e turistas se agitavam para os festejos de São Sebastião. Lixo nas
areias, águas e caminhos, bêbados caídos, muita gente, nenhuma atração digna de
nota. Durante o trágico período da escravidão no Brasil, organizada e
financiada durante séculos pelos países invasores da Europa, os africanos sequestrados
eram largados ali e depois vendidos como peças, daí o nome da ilha. Fugimos de
volta à Ilha do Mel.
Almoçamos no mesmo restaurante simples do dia anterior,
atendido informalmente por garçons meio malucos, meio bêbados, meio chapados. A
comida farta e saborosa não decepcionou.
A preguiça foi ao infinito em tarde ensolarada e tórrida. Nada
de sombra na praia voltada ao poente. Água, muita água para hidratar o
organismo e amenizar a sede.
O sol deu espetáculos de luzes e cores antes de se
despedir. Por uns momentos esquecemos o calor, o suor pelo corpo, os mosquitos
que punham as manguinhas de fora e começavam a atacar, para nos extasiarmos com
aquelas imagens de cair o queixo. O sol já havia se escondido atrás das
montanhas e no céu acima se formaram discretas faixas radiais e coloridas. O
tom de metal fundido imprimia aspecto inesquecível às águas do mar.
Amanheceu novamente com o sol brilhando no céu azul
desprovido de nuvens. E, logo pela manhã, quente, muito quente. Pegamos barco
de linha ao trapiche de Nova Brasília, o segundo vilarejo da Ilha do Mel.
Nova Brasília, ao contrário de Encantadas, tinha as
pousadas, bares, restaurantes, moradias, comércio discreto, voltados para
dentro, por entre as trilhas e caminhos. Nada ficava de frente para o mar. O
aspecto era de melhor infraestrutura das construções e instalações. E os
preços, acompanhando a aparência, maiores, bem maiores que os de Encantadas.
Subimos pela trilha ao Farol das Conchas, de cujos altos tínhamos
a vista estupenda de praias de ambos os lados da ilha.
Percorremos o istmo do meio da ilha, que as águas cobriam durante
a maré alta em minha visita anterior à ilha. Naquela época, sobre a estreita
faixa de areia, casas abandonadas, em ruínas, despencando, desmoronando,
arrebentadas pelo avanço do mar. Dezenove anos depois o deslocamento do mar se
invertera, o istmo de alargara, a vegetação crescia livremente.
Mergulhamos e nadamos nas águas mansas da praia do Farol,
desprovida de qualquer nesga de sombra nas areias.
Conferimos mais uma vez os preços altos dos restaurantes
de Nova Brasília, muitos dotados de som ao vivo, mesmo durante os almoços.
Pegamos o próximo barco de linha e, sozinhos, apenas eu, ela e o barqueiro,
fugimos para a informal praia de Encantadas.
E o calor não arrefecia. Andei cambaleante até o mar e
entrei nas águas calmas e mornas. Boiei e nadei bastante. Despencamos nas
cadeiras entre banhos refrescantes e reconfortantes na ducha do quintal da
pousada. Até pensar cansava.
Saímos para dar voltas somente depois de escurecer, quando
começava o discreto movimento noturno na beira do mar, a maioria com lanternas
na mão. O céu estreladíssimo impressionava acima. Mas muitos moradores e
turistas pareciam nem notar. Preferiam cutucar histericamente os celulares ou deitar
os olhares bovinos na direção dos televisores instalados em alguns bares e
restaurantes. Outros, mais felizes, se banhavam nas águas escuras do mar.
Mais sol, mais céu azul, mais calor ao novo amanhecer.
Caminhamos lentamente até a belíssima praia do Miguel,
através do morro na parte norte da praia do Mar de Fora. Exceto os raros
caminhantes em ambos os sentidos, a praia estava praticamente deserta em plena
temporada de janeiro. E as areias e as águas, a despeito da ausência de sombras,
nos convidavam a ficar e desfrutar. Nenhuma construção, nenhuma moradia, nenhum
comércio. Ali permanecemos, contemplando e usufruindo da tranquilidade. Entramos
na água transparente, contendo peixinhos ariscos, e nos refrescamos do sol
ardente.
Ao bater a sede e a fome, vazamos à nossa velha conhecida
praia de Encantadas. Regados a caipirinhas, comemos o farto e saboroso
comercial com peixe, acompanhado do curtido, suculento e bem temperado feijão
preto. Já nos tornáramos íntimos da casa.
E, para variar, após as caipirinhas e o lauto almoço,
bateu aquele bode sob o sol fundindo tudo e todos. Caminhei perpendicular ao
mar e caí nas águas mornas e com ondas pequenas. Mas não foi fácil, não. Devido
à maré muito baixa, tive que andar mais de cem metros a fim de que o nível das
águas alcançasse os meus quadris. Boiei, flutuei, com a cabeça para baixo e
prendendo a respiração, para cima e olhando o céu incrivelmente azul.
Anoiteceu nublado com o céu sem indício de estrelas.
Caíram oito ou dez pingos de chuva. Mais nada. Os pernilongos e borrachudos se
assanharam atacando com mais fervor.
Amanheceu limpo, com céu azul, sol intenso e calor
indescritível. Mas não era exatamente isso que buscávamos na Ilha do Mel?
Peguei trilha na extremidade norte da praia do Mar de Fora
e subi o morro do Cruzeiro, em cujo topo um oratório a São Francisco de Assis e
duas cruzes davam graças à praia do Miguel, à esquerda, e à praia do Mar de
Fora, à direita. Paisagem exuberante numa ilha exuberante.
Nas imediações da Gruta de Encantadas, centenas de
minúsculos caranguejos recém-nascidos se movimentavam desajeitadamente pelas
areias úmidas, dando os primeiros passos independentes.
Mais mergulhos refrescantes diante de ondas bravas. Mais não
fazer nada.
Cinzeiros feitos a partir de garrafas plásticas de água
mineral e forrados de areia, inúmeros sacos plásticos, azuis ou pretos para
diferenciar o lixo orgânico do lixo reciclável, distribuídos nas trilhas,
caminhos e praias, garantiam a limpeza e o respeito à natureza por parte de moradores
e visitantes. Pouco ou nada se via de lixo jogado fora dos recipientes
apropriados. E em plena alta temporada de um janeiro ensolarado! Bem diferente
da vizinha e emporcalhada Ilha das Peças, de passado sombrio, também na baía de
Paranaguá. Eis um exemplo aos demais destinos turísticos brasileiros.
Noite abafada, mas de céu estrelado. Uma voltinha para cá,
outra para lá. Assim encerramos nossa última noite na deslumbrante Ilha do Mel.
Acordamos cedo já sob o calor intenso. Abrimos o café da
manhã da pousada. Fechamos tudo e nos despedimos do pessoal.
Barco para Pontal do Sul.
Ônibus para Curitiba, parando em cada ponto para embarque
de novos passageiros, do começo do trajeto até atingir a rodovia que liga Paranaguá
a Curitiba.
Ônibus ao aeroporto de Curitiba, em frente à estação
rodoferroviária em obras, aos trancos e barrancos devido ao motorista afobado.
Avião e voo rápido em assentos desconfortáveis, somente com
serviço de líquidos de transnacional estadunidense.
Ônibus comum para o metrô vindo do aeroporto de São Paulo.
Raios, relâmpagos, trovões, estouravam no céu enegrecido e com nuvens pesadas a
sudeste.
Metrô e caminhada até entrar em casa.
E assim, seis transportes ou nove horas depois, tudo num
mesmo dia, naquele final de janeiro, nos deslocamos da repugnante Ilha
do Mel à bela, arborizada e humana cidade de São Paulo. Quando é mesmo a
próxima viagem?