Subimos a pequena serra a leste de Pomerode a caminho de
Timbó, cidadezinha conhecida por abrigar atividades em meio à natureza ao
redor. A cidade em si, aplainada, modernizada, com ruas largas, sem um centro
com cara de centro, sem arquiteturas dignas de nota, em nada atraía os olhares.
Seguimos em frente até Indaial e pegamos a BR-470, rodovia
que corta todo o estado de Santa Catarina, do litoral até a divisa com a
Argentina. Tomamos o sentido oeste e nos deparamos com trânsito intenso. Eram
filas e mais filas, de automóveis e caminhões.
Nos livramos daquela tortura rodoviária na cidade de Rio
do Sul, onde dobramos para sul, avançando novamente em estrada local, sinuosa, tranquila,
bucólica, em meio a pequenas propriedades, casinhas de madeira, plantações, araucárias,
alguma mata atlântica ainda intacta. Passamos por Aurora, Ituporanga, distritos
menores, antes de arriscar restaurante de beira de estrada para encher a pança.
Quem nos atendeu foi o filho dos proprietários, adolescente loiro e gorducho.
Também, pudera, ele recolhia os restos de refrigerantes que os clientes largavam
nas garrafas das mesas, juntava em outras garrafas e bebia tudo depois.
Na cidade de Alfredo Wagner não pudemos evitar outro
inferno rodoviário, a BR-282, via ascendente e perigosa, de tráfego pesado, que
liga Florianópolis a Lages. Mas por pouco tempo. Em Bom Retiro, escapamos para
outra estrada local, no sentido sul. Menos veículos, mais cenas rurais, menos
ocupação humana, natureza menos depredada. Avistamos araucárias, mata
atlântica, em meio a relevo acidentado, muitas curvas, aclives e declives, casinhas
de madeira, hortas familiares.
Entramos em Urubici, cidade que se espalhava ao longo do
vale cortado pela avenida principal e por curtas transversais. Fazia um sol
agradável e a luz de fim de tarde tingia o cenário de amarelo e laranja.
Jantamos comida de verdade depois de dois dias e meio na
base de sanduíches e salgados. E nos hidratamos com o saboroso vinho
catarinense produzido a partir de uvas cujos nomes eu jamais ouvira.
O tempo virou radicalmente à noite, com direitos a ventos
e chuva.
Mergulhamos de cabeça no bufê farto e variado do café da
manhã do hotel.
Um casal quarentão chamou a atenção entre os demais
hóspedes. Ela trazia tudo para ele na mesa, que se mantinha sentado, de boné e
expressão emburrada, como um menininho mimado e cheio de vontades. E ele pedia
mais isso e mais aquilo. Ela praticamente não parava na mesa, ia e vinha do bufê
o tempo todo. Nem tinha tempo de comer. As cenas patéticas atingiram o ápice
quando ela trouxe um canudo para ele tomar o café com leite. Não sabíamos se riamos
ou chorávamos diante daquela cena na qual um adulto, saudável física e
mentalmente, recebia tudo na mão e ainda tomava café com leite de canudinho.
Ela não parecia reclamar da situação. Fazia tudo correndo e sorrindo. Ao final
saíram do salão. Ela, elétrica e sorridente, ele, é claro, de cara fechada.
Percorremos estradas locais impecavelmente conservadas e
sinalizadas, cortando pequenas propriedades com casinhas de madeira, entre
macieiras, milharais, plantações de tomate, trechos de mata atlântica preservada
e muitas araucárias.
A subida íngreme e repleta de curvas ao Parque Nacional de
São Joaquim abria cenários naturais belíssimos. No topo do morro, ventava e
fazia frio suave. Nuvens se movimentavam com rapidez impressionante, encobrindo
e descobrindo as escarpas basálticas. Do alto do Morro da Igreja, quando as
nuvens permitiam, podíamos avistar abaixo a Pedra Furada.
Dezenas de motoqueiros, vestido a caráter, também pararam
ali. Mas nada ou quase nada da estupenda paisagem eles olhavam. Estavam mais
preocupados em olhar as próprias motos, os outros motoqueiros e as motos dos
outros motoqueiros. E conversavam sobre as próprias motos, sobre os outros
motoqueiros e sobre as motos dos outros motoqueiros. As paisagens por onde eles
passavam eram apenas pretexto para adorarem as próprias motos, os outros
motoqueiros e as motos dos outros motoqueiros.
Descemos o Morro da Igreja e pegamos novamente a estrada
local impecavelmente conservada e sinalizada. Seguimos adiante até outra estradinha,
encascalhada e esburacada, umedecida pela chuva da noite anterior.
Subimos acentuadamente até a Serra do Corvo Branco. A
estradinha cortava a montanha rochosa compondo uma garganta estreita, extensa e
profunda, de quase cem metros de altura. Ao final da garganta, o asfalto
voltava, mas mal cabendo um carro e em condições precárias. Em declives e
sinuosidades violentas, a estrada ziguezagueava serra abaixo, rumo às
cidadezinhas de Grão Pará e Braço do Norte.
As nuvens e a névoa em constante movimento, as garoas
finas e ocasionais, forneciam uma atmosfera misteriosa e instigante ao conjunto
da Serra do Corvo Branco.
Na beira da estrada asfaltada, impecavelmente conservada e
sinalizada, que nos levaria de volta a Urubici, paramos para almoçar em
estabelecimento harmoniosamente decorado em madeira. Nos empanturramos de
picanha grelhada ao ponto, acompanhada do bufê de saladas e grãos. O senão
ficou por conta da caipirinha, aguada, mal temperada, insípida. Mudei para água
com gás.
Mas o dia estava longe de terminar.
Pegamos estradinha de terra até a propriedade particular
que abrigava o Morro do Campestre. Dali, somente a pé ou de trator, morro
acima. No meio da primeira subida acentuada, no entanto, encontrei um carro
tracionado empacado na lama. Os turistas ignoraram as advertências dos
moradores, se deram mal e tiveram que ser rebocados de trator.
À medida que eu subia o relevo, os vales abaixo se abriam
e, naquela tarde nublada, exibiam tons de um verde pálido e esmaecido,
demarcando as plantações, as araucárias, a mata nativa, formando um mosaico cortado
por cursos d’água. Talvez a ausência da luz direta do sol tenha realçado tão
elegantemente essas nuances do verde. Eu parava e me voltava para, não só
recuperar a fôlego, mas me deleitar com as imagens.
No topo, a visão de trezentos e sessenta graus de vales,
formações rochosas, se destacando uma delas cuja cavidade se abria como um
portal. Era local privilegiado para se sentar por horas, relaxar, deixar os
pensamentos livres, alinhar as ideias, pensar em tudo, não pensar em nada.
Mas os borrachudos mostraram quem mandava no pedaço.
Pontos de sangue apareceram em minhas pernas e braços, acompanhados de coceiras
irritantes. Registrei o que tinha para registrar. Peguei o caminho de volta e
desci quase sem parar.
À noitinha, uma sopa de legumes com pãezinhos caiu mais
que bem para encerrar aquele dia repleto de espetáculos visuais.
Comemos a valer no farto café da manhã do hotel. E lá
estava o adulto emburrado e mimado, sempre de boné, servido na boquinha pela
companheira, feito uma escrava sorridente.
Alguns motoqueiros se hospedaram no mesmo hotel. Um deles,
já bem maduro, tinha a cara, o resto de cabelo amarrado atrás, o corpo,
sobretudo a barriga, tudo igualzinho ao personagem Wood do cartunista Angeli.
Ou seria o Stock?
Rumamos pela estrada asfaltada rumo a São Joaquim. As
sinuosidades da rodovia cruzaram relevo serrano entre muito verde, pequenas
plantações e criações de animais, araucárias, pinheirais, alguma mata atlântica
primária. Placas avermelhadas alertavam para gelo na pista.
Se a paisagem durante o percurso encantou, a cidade de São
Joaquim, tão comentada pelo Brasil afora, decepcionou profundamente. Feia, sem
personalidade, mal cuidada, sem qualquer atrativo arquitetônico. Talvez o
termômetro instalado na praça da insípida Matriz restasse como a única atração
aos visitantes, mas somente no inverno.
Na volta a Urubici pegamos o acesso à cachoeira do Avencal
por propriedade privada que costumava barrar os visitantes. A trilha nos levou
aos pés da escarpa rochosa e da cascata exibindo grande vazão de água ao longo
de mais de cem metros de queda. Araucárias e mata atlântica abrigando imensa
variedade de plantas e pássaros, pitangueiras e xaxins, uma ou outra aranha
arisca sobre as pedras, compuseram o cenário durante a caminhada.
À noite, encontramos apenas um restaurante aberto.
Empurramos goela abaixo truta grelhada, insossa, sem tempero, com acompanhamentos
também insossos e sem tempero. E era o prato típico da casa. A clientela lançava
olhares bovinos para os televisores instalados nos cantos estratégicos.
Praticamente nem se conversavam, ingerindo passivamente a dose diária de embrutecimento
mental.
Acordamos cedo para o dia que seria longo, cansativo, mas
estupendo e deslumbrante descendo a famosa Serra do Rio do Rastro.
Do alto do mirante, logo após cruzarmos a cidadezinha de
Bom Jardim da Serra, nos deliciamos com vista panorâmica da serra, as escarpas
rochosas, a estrada ziguezagueando violentamente montanha abaixo, os vales íngremes,
o verde intenso das encostas, o verde azulado do horizonte nas partes baixas na
direção do litoral catarinense.
Iniciamos a descida abrupta pela estrada radicalmente
sinuosa. Sequências intermináveis de curvas em U, em S, ou ainda mais
fechadas. Acostamento, nem pensar.
Ocasionalmente os caminhões mais longos se viam obrigadas
a invadir a pista contrária. Em uma curva de mais de cento e oitenta graus me
deparei com uma carreta que subia tentando contornar a absurda sinuosidade. No
momento em que eu iniciava a curva, a carreta abriu, invadiu a pista
descendente, a que eu estava, e se manteve assim, em ritmo lento e constante. Deixei
o caminhoneiro trafegar subindo na pista descendente, enquanto me desviei para
a esquerda e desci a curva pela pista ascendente. Ambos na contramão das
respectivas faixas.
Ninguém ultrapassava ninguém. Fora sustos passageiros, a
emoção e o visual das curvas, das escarpas, das encostas, eventuais quedas
d’água, muito verde, flora abundante e variada, as imagens vista de cima e de
baixo, garantiam o prazer de percorrer um dos caminhos mais espetaculares do
Brasil.
continua...
Percebo que a viagem está valendo a pena, a leitura mais ainda. Adorei: - À medida que eu subia o relevo, os vales abaixo se abriam e, naquela tarde nublada, exibiam tons de um verde pálido e esmaecido, demarcando as plantações, as araucárias, a mata nativa, formando um mosaico cortado por cursos d’água. Talvez a ausência da luz direta do sol tenha realçado tão elegantemente essas nuances do verde. Eu parava e me voltava para, não só recuperar a fôlego, mas me deleitar com as imagens. Sem comentários. Obrigada Viajante Sustentável. Continuo na carona. Abraços.
ResponderExcluirOi Ivete!
ResponderExcluirClaro que essa viagem valeu a pena. Vez ou outra, demonstro minha irritação com alguma coisa, mas logo em seguida me animo novamente. As alegrias, empolgações, deslumbres, superam com folga, os eventuais desgostos passageiros. Ainda mais diante daquela paisagem montanhosa e em contato com o povo tão acolhedor.
Comente sempre!
Muito legal o post. Depois de conhecer as praias, meu próximo roteiro em SC certamente vai ser pela serra.
ResponderExcluirOi Nivaldo, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirA serra catarinense é muito cênica. Você vai adorar.
Qualquer coisa me pergunte...
Comente sempre!