quinta-feira, 22 de maio de 2014

Paraná e Santa Catarina (parte 4/4)

...continuação
A sede veio a galope. Bebemos bastante água, seguida de mais sede e mais água. Tudo era caro na Ilha do Mel, sobretudo os líquidos. Levamos a do estabelecimento que doeu menos no bolso.
Desprovido de planos para o dia seguinte, optamos por passeio de lancha ao redor da ilha. Depois de voltear a extremidade sul, margear as praias de mar aberto, o farol, o vilarejo de Nova Brasília, paramos na praia da Fortaleza onde se erguia a Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, construída no século XVIII pelos invasores portugueses. Visitamos os interiores, os salões vazios e gradeados, as ameias acima, a fileira de canhões, o topo do morro oferecendo a vista panorâmica do nordeste da ilha.
Ao norte da Ilha do Mel, paramos na Ilha das Peças, onde moradores e turistas se agitavam para os festejos de São Sebastião. Lixo nas areias, águas e caminhos, bêbados caídos, muita gente, nenhuma atração digna de nota. Durante o trágico período da escravidão no Brasil, organizada e financiada durante séculos pelos países invasores da Europa, os africanos sequestrados eram largados ali e depois vendidos como peças, daí o nome da ilha. Fugimos de volta à Ilha do Mel.
Almoçamos no mesmo restaurante simples do dia anterior, atendido informalmente por garçons meio malucos, meio bêbados, meio chapados. A comida farta e saborosa não decepcionou.
A preguiça foi ao infinito em tarde ensolarada e tórrida. Nada de sombra na praia voltada ao poente. Água, muita água para hidratar o organismo e amenizar a sede.
O sol deu espetáculos de luzes e cores antes de se despedir. Por uns momentos esquecemos o calor, o suor pelo corpo, os mosquitos que punham as manguinhas de fora e começavam a atacar, para nos extasiarmos com aquelas imagens de cair o queixo. O sol já havia se escondido atrás das montanhas e no céu acima se formaram discretas faixas radiais e coloridas. O tom de metal fundido imprimia aspecto inesquecível às águas do mar.
Amanheceu novamente com o sol brilhando no céu azul desprovido de nuvens. E, logo pela manhã, quente, muito quente. Pegamos barco de linha ao trapiche de Nova Brasília, o segundo vilarejo da Ilha do Mel.
Nova Brasília, ao contrário de Encantadas, tinha as pousadas, bares, restaurantes, moradias, comércio discreto, voltados para dentro, por entre as trilhas e caminhos. Nada ficava de frente para o mar. O aspecto era de melhor infraestrutura das construções e instalações. E os preços, acompanhando a aparência, maiores, bem maiores que os de Encantadas.
Subimos pela trilha ao Farol das Conchas, de cujos altos tínhamos a vista estupenda de praias de ambos os lados da ilha.
Percorremos o istmo do meio da ilha, que as águas cobriam durante a maré alta em minha visita anterior à ilha. Naquela época, sobre a estreita faixa de areia, casas abandonadas, em ruínas, despencando, desmoronando, arrebentadas pelo avanço do mar. Dezenove anos depois o deslocamento do mar se invertera, o istmo de alargara, a vegetação crescia livremente.
Mergulhamos e nadamos nas águas mansas da praia do Farol, desprovida de qualquer nesga de sombra nas areias.
Conferimos mais uma vez os preços altos dos restaurantes de Nova Brasília, muitos dotados de som ao vivo, mesmo durante os almoços. Pegamos o próximo barco de linha e, sozinhos, apenas eu, ela e o barqueiro, fugimos para a informal praia de Encantadas.
E o calor não arrefecia. Andei cambaleante até o mar e entrei nas águas calmas e mornas. Boiei e nadei bastante. Despencamos nas cadeiras entre banhos refrescantes e reconfortantes na ducha do quintal da pousada. Até pensar cansava.
Saímos para dar voltas somente depois de escurecer, quando começava o discreto movimento noturno na beira do mar, a maioria com lanternas na mão. O céu estreladíssimo impressionava acima. Mas muitos moradores e turistas pareciam nem notar. Preferiam cutucar histericamente os celulares ou deitar os olhares bovinos na direção dos televisores instalados em alguns bares e restaurantes. Outros, mais felizes, se banhavam nas águas escuras do mar.
Mais sol, mais céu azul, mais calor ao novo amanhecer.
Caminhamos lentamente até a belíssima praia do Miguel, através do morro na parte norte da praia do Mar de Fora. Exceto os raros caminhantes em ambos os sentidos, a praia estava praticamente deserta em plena temporada de janeiro. E as areias e as águas, a despeito da ausência de sombras, nos convidavam a ficar e desfrutar. Nenhuma construção, nenhuma moradia, nenhum comércio. Ali permanecemos, contemplando e usufruindo da tranquilidade. Entramos na água transparente, contendo peixinhos ariscos, e nos refrescamos do sol ardente.
Ao bater a sede e a fome, vazamos à nossa velha conhecida praia de Encantadas. Regados a caipirinhas, comemos o farto e saboroso comercial com peixe, acompanhado do curtido, suculento e bem temperado feijão preto. Já nos tornáramos íntimos da casa.
E, para variar, após as caipirinhas e o lauto almoço, bateu aquele bode sob o sol fundindo tudo e todos. Caminhei perpendicular ao mar e caí nas águas mornas e com ondas pequenas. Mas não foi fácil, não. Devido à maré muito baixa, tive que andar mais de cem metros a fim de que o nível das águas alcançasse os meus quadris. Boiei, flutuei, com a cabeça para baixo e prendendo a respiração, para cima e olhando o céu incrivelmente azul.
Anoiteceu nublado com o céu sem indício de estrelas. Caíram oito ou dez pingos de chuva. Mais nada. Os pernilongos e borrachudos se assanharam atacando com mais fervor.
Amanheceu limpo, com céu azul, sol intenso e calor indescritível. Mas não era exatamente isso que buscávamos na Ilha do Mel?
Peguei trilha na extremidade norte da praia do Mar de Fora e subi o morro do Cruzeiro, em cujo topo um oratório a São Francisco de Assis e duas cruzes davam graças à praia do Miguel, à esquerda, e à praia do Mar de Fora, à direita. Paisagem exuberante numa ilha exuberante.
Nas imediações da Gruta de Encantadas, centenas de minúsculos caranguejos recém-nascidos se movimentavam desajeitadamente pelas areias úmidas, dando os primeiros passos independentes.
Mais mergulhos refrescantes diante de ondas bravas. Mais não fazer nada.
Cinzeiros feitos a partir de garrafas plásticas de água mineral e forrados de areia, inúmeros sacos plásticos, azuis ou pretos para diferenciar o lixo orgânico do lixo reciclável, distribuídos nas trilhas, caminhos e praias, garantiam a limpeza e o respeito à natureza por parte de moradores e visitantes. Pouco ou nada se via de lixo jogado fora dos recipientes apropriados. E em plena alta temporada de um janeiro ensolarado! Bem diferente da vizinha e emporcalhada Ilha das Peças, de passado sombrio, também na baía de Paranaguá. Eis um exemplo aos demais destinos turísticos brasileiros.
Noite abafada, mas de céu estrelado. Uma voltinha para cá, outra para lá. Assim encerramos nossa última noite na deslumbrante Ilha do Mel.
Acordamos cedo já sob o calor intenso. Abrimos o café da manhã da pousada. Fechamos tudo e nos despedimos do pessoal.
Barco para Pontal do Sul.
Ônibus para Curitiba, parando em cada ponto para embarque de novos passageiros, do começo do trajeto até atingir a rodovia que liga Paranaguá a Curitiba.
Ônibus ao aeroporto de Curitiba, em frente à estação rodoferroviária em obras, aos trancos e barrancos devido ao motorista afobado.
Avião e voo rápido em assentos desconfortáveis, somente com serviço de líquidos de transnacional estadunidense.
Ônibus comum para o metrô vindo do aeroporto de São Paulo. Raios, relâmpagos, trovões, estouravam no céu enegrecido e com nuvens pesadas a sudeste.
Metrô e caminhada até entrar em casa.
E assim, seis transportes ou nove horas depois, tudo num mesmo dia, naquele final de janeiro, nos deslocamos da repugnante Ilha do Mel à bela, arborizada e humana cidade de São Paulo. Quando é mesmo a próxima viagem?
 

4 comentários:

  1. Nessa viagem você se divertiu mais, e partiu para um lugar lindo, amigo, a ilha do Mel, famosa e especial, mas tudo muito caro. Uma garrafa de água de 500ml, não custa menos que 3,50 até 9,00 em alguns lugares do sul. Eu reclamo muito quando estou em SC e Paraná onde considero o custo de vida alto, mas faz parte por serem cidades com muitos atrativos. Não tive mais oportunidade de ler aqui. Acabei viajando e ficando bem mais tempo no sul, do que o previsto. Abração!

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  2. Oi Erotildes, obrigado pelos comentários.
    Sim, nos divertimos e aprendemos muito nessa viagem despretensiosa pelo sul do Brasil.
    Talvez por ser uma ilha, e turística, que tudo é muito caro na Ilha do Mel. Mas não estava tão cheia em plena alta temporada. E não podemos reclamar do clima, sol, céu azul, calor, perfeito.
    Antes passamos pelas serras catarinenses e por lá tivemos experiências incríveis também.
    Abraços e comente sempre!

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  3. Viajante Sustentável!

    Meu amigo, só quem sabe aproveitar uma viagem consegue colocar tudo o que viu e sentiu no papel. Apesar de alguns dissabores, só de estar sob um céu azul, com um sol maravilhoso, mais um mar com águas quentinhas, praias quase desertas, conhecendo lugares incríveis...associando ao seu bom humor aventureiro, foi um passeio e tanto, como: - "E as areias e as águas, a despeito da ausência de sombras, nos convidavam a ficar e desfrutar. Nenhuma construção, nenhuma moradia, nenhum comércio. Ali permanecemos, contemplando e usufruindo da tranquilidade. Entramos na água transparente, contendo peixinhos ariscos, e nos refrescamos do sol ardente." Acredito que aqui foi o paraíso. rsrsrs.
    Fico feliz e mais crédula quanto á educação do povo em relação a conservação do meio ambiente: - "Cinzeiros feitos a partir de garrafas plásticas de água mineral e forrados de areia, inúmeros sacos plásticos, azuis ou pretos para diferenciar o lixo orgânico do lixo reciclável, distribuídos nas trilhas, caminhos e praias, garantiam a limpeza e o respeito à natureza por parte de moradores e visitantes. Pouco ou nada se via de lixo jogado fora dos recipientes apropriados. E em plena alta temporada de um janeiro ensolarado! Bem diferente da vizinha e emporcalhada Ilha das Peças, de passado sombrio, também na baía de Paranaguá. Eis um exemplo aos demais destinos turísticos brasileiros." É uma pena que no nosso passado há um "tempo negro" e, alguns lugares nos lembram e nos deixam triste por saber que seres humanos tenham sido tratados com tanta crueldade. A escravidão plantou raízes profundas em nossa História e, ainda hoje há discriminação. Espero que as gerações futuras abominem os preconceitos.
    Obrigada pela viagem e como sabes sou caroneira. Nos encontramos nos próximos relatos. Até.

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  4. Oi Ivete, obrigadão por mais um comentário carinhoso!
    Concordo. Acho que passei, sim, o que vi e senti nessa viagem tão despretensiosa, mas não menos prazerosa, Sobretudo na Ilha do Mel, onde houve tempo de sobra para refletir e registrar.
    E que bom que você se sintonizou com o que escrevi. Muito bom isso.
    Os próximos relatos, de uma viagem bem mais ambiciosa, já estão no forno. Logo, logo serão publicados. Aguarde e comente sempre!
    Abraços...

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