quinta-feira, 22 de agosto de 2013

O Rio Purus (de Manaus a Rio Branco) (parte 6/6)

...continuação
Coloquei a mochila nas costas. Subi a rampa até a rua asfaltada, seguindo à praça, onde me hospedei em hotel mais que suficiente para aquela noite.
Esvaziei a mochila para me livrar de possíveis lembranças, vivas ou mortas, provenientes de ambos os barcos. Fiz a barba agachado em razão do espelho do banheiro se alinhar com meu umbigo. Tomei banho caprichado, agora sem pressa, em local amplo, podendo permanecer com a coluna ereta, finalmente.
A praça e as ruas que desembocavam nela lotavam naquela noite, sobretudo de adolescentes. Elas se vestiam para matar, usando saltos quilométricos, vestidos ou saias curtíssimas, colantes e de cores berrantes, produção exagerada no rosto, cabelos previsivelmente alisados. Todas parecidas, desfilando com os celulares numa mão, alisando e repuxando os cabelos com a outra, conferindo se os cabelos artificialmente alisados ainda estavam alisados, bem alisados. Muitas eram lindas de rosto e de corpo, a despeito da produção de rodar a bolsinha.
Ainda me sentia zonzo de tantos dias de barco. Me desequilibrava com facilidade ao andar pelas ruas e, se fechasse os olhos, certamente desabaria no chão. Os efeitos da longa viagem sobre as águas do Purus não me largariam tão cedo. Ainda bem!
Dormi sono tranquilo, profundo, sem suor em cascatas e o abafamento do camarote do primeiro barco, sem o desconforto da rede durante horas e o vento da madrugada do segundo.
Me acabei de tanto comer no café da manhã do hotel, entre frutas, sucos, pão fresco, queijo artesanal, ovos fritos, cuscuz, tapioca, banana frita. Reconfortante comer bem e variado pela manhã.
Que maravilha! Agora eu podia parar ou andar de cabeça erguida, coluna ereta, por todos os lugares. Era um alívio permanecer numa postura decente.
Antes de partir passeei rapidamente por Boca do Acre, aproveitando a luz do dia. Fui olhar o rio Acre, na boca com o Purus, acidente geográfico que deu o nome à cidade. Contemplei as construções de madeira, algumas em sobrado, que davam toque especial ao conjunto arquitetônico urbano. Matava saudades da cidadezinha que explorara com tempo dez anos antes.
Peguei o ônibus para a capital acreana, que lotou depois de parar em inúmeros pontos pelas ruas de Boca do Acre.
A viagem de seis horas até Rio Branco correu a maior parte do tempo em asfalto, exceto três trechos curtos de estrada de chão. Ali, ainda no estado do Amazonas, o ônibus cruzou áreas indígenas que não aceitavam uma estrada dentro dos territórios ancestrais, muito menos asfaltada.
Rostos sulinos começavam a aparecer entre os passageiros, indicando o avanço das fronteiras agrícolas e, a considerar a ação destruidora desses migrantes em regiões próximas, deixando um alerta vermelho para os que amam a floresta em pé.
Desembarquei à tarde no novíssimo, moderno e internacional terminal rodoviário de Rio Branco. Dali, ônibus chegavam e partiam para diversas localidades do Peru, inclusive Cuzco e Lima, via a rodovia do pacífico.
Peguei carona com um passageiro do ônibus até o hotel. Entrei no quarto contando com enorme janelão que permitia a entrada de luz natural e de imagens da cidade, inclusive da catedral e da imensa bandeira do estado do Acre, distante dali, erguida na margem do rio Acre.
Lavei as roupas mais sujas. Tomei banho caprichado e demorado. Esvaziei e escondi a mochila em cima do armário. Não queria olhar para ela, muito menos manuseá-la, por uns bons dias.
O centro de Rio Branco agradava pela limpeza, humanização, praças amplas e prestigiadas pela população, de dia e de noite. Quiosques padronizados vendiam tacacá tradicional, rabada ao tucupi, lanches, sucos, comes e bebes em geral. Restaurantes de tipos variados se escondiam nessa ou naquela rua.
Dormi bem e bastante em cama alta e macia. Mas meu corpo, especialmente ao fechar os olhos, ainda sentia o oscilar dos barcos sobre as águas do Purus. Por mais que me afastasse do rio, minha mente insistia em recordar aquele relacionamento fluvial de doze dias.
Os povos indígenas que tiveram as terras milenares cortadas por estrada no sul do Amazonas, a mesma que eu cruzara na tarde anterior, se recusavam a aceitar o asfaltamento da mesma e iniciariam processo de cobrança de pedágio, como em certos trechos do nordeste de Mato Grosso. Alguns moradores das cidades se indignavam com a reação indígena, alegando que não haveria alternativa de traçado da estrada, e os territórios indígenas seriam cortados de qualquer maneira. Mas se este é o caso, por que construíram a estrada? Por que não utilizar o rio Acre ou rio Purus, como vias de transporte do Amazonas ao Acre, deixando os povos indígenas em paz na terra deles?
Já de passagem marcada de volta para casa, o negócio era relaxar e aproveitar o aconchegante estado do Acre.
Aproveitei o céu nublado e o vento fresco para circular pela beira do rio Acre e pelo calçadão em frente ao Mercado Velho. Me sentei no banco da praça para observar as pessoas pelo centro de Rio Branco. Andei até as bandas do Mercado atual. O centro da cidade continuava bem arrumado, limpo, humanizado, com muito verde, sombra, locais para sentar e descansar. E as recentes administrações públicas acreanas não cometeram o crime, tão comum nos interiores brasileiros, de mutilar geometricamente as árvores das ruas e das praças com podas criminosas, estragando as árvores e eliminando as sombras. As árvores cresciam livremente e as sombras refrescavam do calor acreano. Mesmo nas áreas de comércio popular, normalmente suja e confusa nas principais cidades brasileiras, havia organização e limpeza.
A população se mantinha educada e prestativa, dando passagem para os pedestres nos cruzamentos, cumprimentando gentilmente, sorrindo discretamente.
Tanto durante o café da manhã no hotel, com nas ruas da cidade, se via significativa presença de rostos e sotaques sulinos, referências verbais ao Paraná e estados vizinhos. Se essas criaturas agirem como têm agido no Mato Grosso, Rondônia, sudeste do Pará, sul do Amazonas, coitado do Acre e dos acreanos. Por onde passam, ligados direta ou indiretamente aos crimes do agronegócio exportador e envenenado de agrotóxicos, esses infelizes têm deixado como marca somente a destruição da natureza e a miséria social e cultural.
Não tinha preço não ser forçado a me movimentar abaixado, curvo, olhando para chão ou para os lados, por conta dos tetos, chuveiros, espelhos, batentes, entre outros tantos limitadores de altura aos quais me submeti e padeci por dias e dias. Agora o céu era o limite. Os tetos, duchas, espelhos, superavam minha altura. A coluna e todo o meu corpo agradeciam aliviados essa liberdade postural.
Após o almoço, fui ao Mercado Municipal e detonei meio litro de creme de açaí fresco. Não fora centrifugado naquele momento, como os de Codajás, mas delícia seria pouco para qualificar aquela iguaria amazônica.
Mais uma noite na capital acreana, mais uma oportunidade de contemplar e admirar o centro revitalizado da cidade. Praças, restaurantes, quiosques de tacacá, rabada ao tucupi, lanches, doces, bares na beira do rio Acre, escolas, apresentavam movimento discreto em plena segunda-feira. O povo da cidade e os visitantes prestigiavam diversos pontos da região central, sem alarde, sem tensões, sem perigos, sem pânicos, despreocupadamente, flanando.
As demais capitais e cidades grandes brasileiras teriam muito que aprender com Rio Branco em matéria de valorização e humanização dos respectivos centros da cidade.
“Terceiro andar”. “Descendo”. “Terceiro andar”. “Descendo”. Era o que mais eu ouvia, sem parar, vindo do elevador bem em frente à porta do quarto do hotel. Ouvia até mesmo quando o elevador se encontrava no andar de baixo. “Segundo andar”. “Subindo”. “Segundo andar”. “Descendo”.
Perambulei por ruas, becos e calçadões, nas proximidades da margem esquerda do rio Acre. Em cada oportunidade que eu retornava a Rio Branco, e aquela não seria a primeira e nem a última, as administrações públicas, municipal e estadual, encabeçadas nas últimas gestões pelo Partido dos Trabalhadores, organizavam, revitalizavam, humanizavam, mais e mais, o centro da cidade e os arredores. A população e visitantes agradeciam e aproveitavam.
Depois do almoço com a variada comida regional, novamente estiquei até o Mercado Municipal para tomar o açaí nosso de cada dia. E, para manter a regra, fui carinhosamente atendido.
À noite, a brisa fresca deixou a temperatura bem amena. Nem transpirei durante caminhada de ida e volta ao Parque da Maternidade, impecavelmente cuidado. Mais um local prestigiado pela população que de dia, e principalmente à noite, exercia diversas atividades esportivas, culturais e de lazer. Era um parque linear na acepção da palavra, uma vez que se dispunha ao longo de extenso igarapé, não canalizado, felizmente. Parque linear, que em São Paulo, a maior cidade do Brasil, era somente uma promessa demagógica de empresários e políticos, já era realidade em Rio Branco havia no mínimo dez anos.
Escolhi mesa tranquila do bar e restaurante de frente para a pista de caminhada. Entre caipirinhas e comidinhas, refleti sobre a viagem, sobre o Purus, sobre a primeira vez que estivera ali, naquele mesmo bar, dez anos antes. Naquela oportunidade, me sentei em local próximo e fui presenteado pela enorme e brilhante lua cheia nascendo do outro lado do igarapé, enquanto a população desfilava na minha frente, na pista de caminhada.
Mais uma manhã de enrolação e perambulações a esmo, muito bem-vindas por sinal. Não tinha a mínima ambição de passeios específicos, apenas flanar e observar. Já explorara pacientemente a cidade nas visitas anteriores, sobretudo na última, três anos antes. O sol despontava à esquerda. O centro de Rio Branco se clareava para mais um dia. Abri todo o vidro do janelão a fim de receber o ar fresco da manhã e os primeiros sons da cidade.
Tomei ônibus urbano vazio até o distante aeroporto. Li bastante. Enganei o estômago.
Durante o voo, terminei de reler o ótimo livro Maíra, de Darcy Ribeiro. Sem disfarçar, o larguei no bolsão à minha frente. O livro grosso se despedaçara em três partes e eu não pretendia carregar aqueles destroços. Que quem o encontrasse fizesse bom uso.
O avião pousou na segunda semana de maio em Congonhas, São Paulo, na velha e curta pista que sempre provoca calafrios.
Imediatamente lembrei que o barco no qual subira o rio Purus, naquele instante, deveria estar nas imediações de Lábrea, rio abaixo, rumo a Manaus. Desconfortos à parte, a viagem de subida do Purus me deu muito prazer, prazer que não acabaria jamais.
Tanto que durante o voo da volta para casa eu rascunhei possíveis novos roteiros fluviais pela Amazônia. Ficariam para as próximas viagens. Viagens que certamente não demorariam a acontecer.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O Rio Purus (de Manaus a Rio Branco) (parte 5/6)

...continuação
Ao lado do barco, o navio do PAI, Pronto Atendimento Itinerante, do governo do Amazonas, atendendo a população em quase todas as modalidades de serviços públicos, cartoriais, médicos, odontológicos, sociais, psicológicos, jurídicos. Filas enormes se formavam ao lado do flutuante de acesso.
No final da tarde, o dono do barco, olhando para o infinito, comendo as palavras, nem completando as frases, aos trancos e barrancos, comunicou que talvez, nada certo ainda, seríamos transferidos para um barco menor, partindo no dia seguinte para Boca do Acre. Alegou que, diante da vazante acelerada do Purus, o barco correria riscos de encalhe ou acidentes piores rio acima. E que, embora programado orginalmente para seguir viagem até Boca do Acre, retornaria a Manaus de Pauini mesmo.
Eu e o colega fomos à caldeirada de tambaqui previamente encomendada na rua perpendicular ao rio. Traçamos aquela delícia com direito a suor em cascatas pelos cabelos, braços, rosto, peito, pernas. De vez em quando eu chacoalhava os braços na esperança de o suor escorrer para o chão e eu poder continuar a degustar aquela iguaria. Gastava dezenas de folhas de guardanapos para tentar enxugar o suor empapado na testa, rosto, pescoço, nuca. Mas valeu e muito a pena. Caldeiradas, e especialmente as de tambaqui, são pratos únicos da culinária amazonense. O soberbo jantar renderia lembranças por muito tempo.
Retornamos ao barco com o corpo pegando fogo, no escuro, não enxergando quase nada, nos equilibrando ao longo das tábuas alinhadas sobre a lama ressecada, tomando todo o cuidado para não despencar de maduro.
Aguardei o suor e a quentura pelo corpo amenizar, ainda que parcialmente, para tomar um banho frio. Pouco adiantou. A sauna do camarote me provocou mais ondas de transpiração e fusão pelo corpo todo.
O céu estupidamente estrelado ajudou a disfarçar o horror visual da lama seca na beira da água em Pauini. A agitação dos passageiros dos dias anteriores não existia mais. Algum ruído vindo de fora, de terra, de eventuais barcos que encostavam e nada mais. Entrei no camarote parecendo um forno de padaria. O ventilador era mesmo que nada.
Durante a noite toda, permaneci banhado de suor dentro da fornalha do camarote sem ventilação natural. Desci ao banheiro contemplando o vazio do piso superior, sem o mar de redes. Não havia água, nem na descarga, nem no chuveiro, nem nas pias.
Nenhum movimento no barco ou nos demais atracados. Nada de vento, nada de brisa. Conforme eu andava pelo piso superior e piso de lazer do barco, me enroscava nas teias de aranha formadas da noite para o dia.
Ainda no escuro começou o movimento dos barcos menores, carregadores, motos. A cidade amazônica de Pauini acordava cedo. O nascer do sol encantou com a visão da curva do Purus bem defronte à cidade, destacando a figura da imensa samaúma na margem oposta. E os motores rabetas anunciavam a chegada de um novo dia.
A fila para o atendimento no navio do PAI se formou bem cedo e imediatamente se alongou. O navio ainda permaneceria na cidade por mais dez dias.
No meio da manhã, o dono e senhor de tudo do barco avisou. Todos que seguiriam até Boca do Acre deveriam se mudar de mala e cuia para o barco menor, cuja partida estava prevista para o meio do dia.
 Este segundo barco possuía dois pisos para redes, sendo que o debaixo também contava com a cozinha, a mesa da copa, dois banheiros, camarote do dono e comandante, acesso ao motor e ao porão de carga. No piso de cima, amplo espaço para as redes, o camarote da tripulação, a cabine de comando e, na popa, pequena área livre e descoberta, voltada para lazer, caixa d’água, lavagem e secagem de roupas.
Optei em me instalar no piso superior, mais ventilado, mais espaçoso, mais distante dos ruídos, odores e calores do motor. Atei a rede, estrategicamente guardada para emergências como aquela, bem atrás do camarote da tripulação. De tecido leve e sintético, ela era menor e menos confortável que as dos outros passageiros, de algodão, avarandadas, grandes e macias.
Deu tempo de almoçar comida caseira no mesmo restaurante do dia anterior. Me empanturrei de arroz, feijão, bife acebolado, salada. Tudo bem preparado, bem temperado, bem saboroso.
No começo da tarde, o segundo e menor barco partiu de Pauini, rio Purus acima, sob um céu azul e brilhante, com raras nuvens. O calor abafava, mesmo com o movimento que trazia o vento refrescante.
Entre os passageiros, a maioria ficaria em Boca do Acre. Os demais seguiriam para Rio Branco. Destes, eu ficaria lá, os outros ainda pegariam ônibus para Cruzeiro do Sul, oeste do estado do Acre. Vinham de mudança da cidade de Tabatinga, no alto Solimões, entupidos de bagagens e esperanças de mudar de vida, para melhor.
O menor tamanho do barco, em comparação com o anterior, simpatizava e alegrava a viagem. Ficava mais difícil, porém, fugir do sol, sobretudo diante da infinidade de curvas do Purus, deixando o sol girar completamente, por várias vezes, forçando os passageiros para lá e para cá, a todo instante.
O grupo para Cruzeiro do Sul, nem bem o barco partiu, começou a espalhar as coisas e comer sentado no chão do convés, emporcalhando tudo. Depois se deitavam sobre o piso ainda com restos de comida, espalhando a sujeira um pouquinho mais.
Após a longa parada em Pauini, era bom voltar à navegação nas águas do Purus, se estreitando, vazando, expondo praias e barrancos cada vez mais extensos e altos.
Tarde ensolarada, muito quente, colorida, luminosa, realçando as cores da floresta, dos paus-mulatos castanho-avermelhados, das moradias ribeirinhas acima da linha da vazante do rio.
Passageiros formaram mesa de baralho na parte descoberta do piso superior e lutavam para se livrar da luz e do calor do sol. Assisti, dei risadas, me entrosando, ajudando passar o tempo. Ou permanecia no banco da proa, em frente à cabine de comando, alternando contemplações da paisagem, releituras de Maíra, do Darcy Ribeiro, anotações no diário de viagem.
O jantar veio de pratos feitos de arroz com frango ensopado, em quantidade suficiente e de boa qualidade. Um dos dois únicos tripulantes o preparou e dispôs os exatos vinte pratos sobre a mesa da copa. Bastava pegar e comer. Com o prato na mão esquerda e a colher na direita, me encostei à pilha de sacos de castanhas amazônicas. Bebi água gelada da garrafa térmica e abasteci minha garrafinha para eventuais sedes durante a noite.
O silêncio logo baixou sobre o barco. Entrei cedo na rede. Tive que apagar a lâmpada bem acima da minha cabeça. O enxame de mosquitos ao redor da luz e da minha rede perturbava demais da conta. A paz voltou com o escuro. Fiquei quietinho e não demorei a adormecer.
Até que dormi bem, considerando a rede pequena e escorregadia pelo tipo de tecido, sem o lençol providencial para o frescor da madrugada que todos usavam. Acordei no escuro para a ducha fria e providencial em banheiro mais limpo, espaçoso e funcional que os do primeiro barco.
Retornei à rede quando começava clarear. O barco parou no meio do rio aguardando a voadeira que trazia um ribeirinho para palestrar com o comandante. Ao desligar o motor e o barco parar sobre as águas, nas imediações da comunidade do Tabocal, aconteceu o ataque. O exército, a marinha e a aeronáutica de milhares de famintos carapanãs nos sufocaram sem tréguas. A ausência de brisa ou vento deu-lhes garantias para nos massacrar impiedosamente. Eu me defendia me escondendo dentro da rede ou agitando-a para tentar, em vão, espantá-los. Não funcionou. Fugi da rede e me sentei na proa, ao lado do comando do barco. O massacre dos carapanãs amenizou ligeiramente.
Somente quando os motores retornaram à atividade e o barco passou a deslizar Purus acima é que nos livramos definitivamente dos carapanãs sedentos de sangue.
As praias mais extensas e mais largas, os barrancos mais altos, espremiam as águas espelhadas do Purus. A névoa cobria as copas das árvores e formava véus sobre a superfície do rio.
O café da manhã disfarçou a fome com café e leite já misturados na garrafa térmica, bolachas secas e quebradas, margarina. O sol já brilhava nas árvores, praias, águas do Purus. E estava quente, bem quente àquela hora do começo da manhã.
Se de uma das margens, barrancos altos e desmoronados evidenciavam o constante redesenho do curso do rio, na margem oposta, o afloramento e aumento das praias propiciava condições para os ribeirinhos cultivarem feijão, abóbora, melancia, melão, colhendo durante o verão amazônico. Os ribeirinhos deixavam as canoas na beira da água e semeavam as praias, em atividade harmônica com os ciclos da natureza. Procedimentos sustentáveis havia séculos, ou milênios no caso dos povos indígenas, muito tempo antes dos especialistas de gabinete “inventarem” o termo “sustentável”.
Também nas praias, tracajás, tartarugas e demais quelônios, desovariam para procriar durante a seca. Socós brancos se agrupavam nas praias e bocas dos igarapés para pescar peixes desavisados. Botos rosados, enormes, se exibiam de quando em vez.
Uma senhora do grupo de mudança de Tabatinga para Cruzeiro do Sul, talvez a líder da empreitada, não parava de fumar. Fumava em todos os lugares do barco, a todo instante, inclusive próximo às redes, mais especificamente ao lado da minha que era feita de material altamente inflamável. Me cansei de lhe chamar a atenção. Em vão. Algo não funcionava direito naquela senhora e no grupo como um todo. Pareciam boas pessoas, mas excessivamente broncas e embrutecidas pela vida.
A passageira que ficaria em Boca do Acre, acompanhada da filha pequena, também fumava sem parar, se queixando do calor. Cheinha, com cara de enfado e os peitões quase de fora, repreendia a filha, impedindo-a de fazer isso ou aquilo. Mas falava tão sem convicção que a filhota nem ligava ou simplesmente olhava para a mãe fumante, continuando a fazer o que estava fazendo, sem mudar nada. A filhotinha se juntava com a outra da mesma idade, do grupo dos retirantes, arteira como ela. E, aflitas pela monotonia da viagem, se punham a pentelhar quem passasse pela frente, a pular, agarrar, gritar. E eu fantasiava lançá-las às sucuris do Purus.
Almoço com o cardápio do jantar anterior e a mesma disposição dos vinte pratos feitos sobre a mesa da copa. Escolhi a mesma pilha de sacos de castanhas da Amazônia para me encostar e comer. E reforcei a refeição com o resto de castanhas, frutas secas e dois queijinhos que sobraram da minha provisão suplementar.
Logo depois, passamos em frente à boca do igarapé do Mapiá, margem esquerda do Purus. Subindo de canoa o tal curso d’água, se chegaria ao Céu do Mapiá, sede da seita do Santo Daime, que pegou fama por conta das celebridades e endinheirados entre os membros. E, sobretudo, pelo chá alucinógeno preparado a partir de cipó específico, tomado regularmente pelos seguidores e simpatizantes. Dez anos antes, ao desembarcar em Boca do Acre, vindo de ônibus de Rio Branco, muitos me perguntavam nas ruas se eu ia para o Mapiá, certos de que eu vinha pela seita e pelo chá.
Mais acima, o Purus fez curva de cento e oitenta graus, invertendo o sol da popa para bater em cheio na proa, justamente onde eu relaxava no banco em frente da cabine de comando. Tive que sair às pressas para não entrar em fusão ou combustão espontânea.
Mais curvas fechadas, mais praias, menos volume de água, menor profundidade do rio. E, mais próximas ambas as margens do Purus, mais central o rumo do barco, mantendo certa equidistância das praias, ao contrário de a jusante de Lábrea, quando, com o rio cheio, os trechos de praias alagadas eram os procurados para navegar, evitando as imediações dos igapós onde a correnteza era maior, desfavorável para quem sobe o rio.
Numa sequência interminável de curvas em “S”, em “U”, em ferradura, atingimos a traiçoeira praia em curva da Curitiba, rasa, com bancos de areia e tocos dentro d’água decorrentes de desmoronamentos e quedas de árvores dos barrancos da concavidade da curva. O comandante reduziu a força do motor e redobrou a atenção. Ao fim do perigo, retomou a velocidade costumeira do motor e tocou em frente com vontade, sinalizando que o pior ficara para trás. Mas as curvas, fechadas e acompanhadas de praias, continuaram a aparecer rio acima.
Notei maior número de embarcações descendo o rio, lanchas com um ou dois passageiros inclusive. Seriam ilustres membros, simpatizantes ou curiosos a caminho das alucinações do Santo Daime no Céu do Mapiá?
Comunidades despontavam nas terras mais altas. E aumentou a presença de fazendas, casas, embarcações navegando ou atracadas, crescendo as intervenções danosas à natureza, anunciando a aproximação de cidade. E cidade com conexão rodoviária, como Boca do Acre, o que era bem pior.
Pequena tensão ao ultrapassar outra curva acentuada em frente à comunidade de Valparaíso, se deparando com os mesmos problemas inerentes às curvas anteriores, só que agravada pela infinidade de canoas e voadeiras de pescadores, mais outro barco de passageiros. Ficou arriscado ultrapassar trecho tão estreito e congestionado. O comandante reduziu a velocidade ao mínimo para superar os problemas sem sustos. Meia hora depois, retomando a velocidade máxima, superávamos ilesos os obstáculos naturais e humanos.
Anoiteceu em meio à procissão de voadeiras, canoas, barcos, lanchas, descendo o Purus. Não vi mais nada até o desembarque à noite no porto flutuante de Boca do Acre, localizado na margem direita do rio Acre e próximo à foz, a famosa boca, na margem direita do Purus.
continua...

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O Rio Purus (de Manaus a Rio Branco) (parte 4/6)

...continuação
O barco aportou no meio da manhã em Lábrea, em frente à ponte metálica e flutuante da rua movimentada que ligava ao centro da cidade. Logo juntou gente para assistir ao desembarque, receber parentes e amigos, pegar encomendas e cargas, peruar tipos e rostos. O dono deu as orientações durante a estadia na cidade. Se referiu aos horários, à economia de água durante a parada, aos comportamentos gerais. Todos ouviam como se o dono do mundo os ensinasse a viver.
Dei uma volta livre pela feia cidade de Lábrea, agitadíssima pelo comércio nas ruas centrais. O insistente picadinho de carne de oitava categoria servido durante o almoço na mesa de refeições foi de matar. Me arrependi de não ter tentado nada pela cidade. E deveria arriscar algo mais aceitável para o jantar.
Pela proximidade a diversas terras indígenas, por contar com centro de saúde e assistência social, ambos exclusivos para povos originais, Lábrea atraía muitas etnias da região. Notei vários grupos deles perambulando pela cidade, alguns conversando em línguas próprias.
A praça central de Lábrea, de razoáveis dimensões para o porte da cidade, guardava dezenas de árvores plantadas. Então, beleza e sombra abundantes? Muito pelo contrário! Todas as árvores eram criminosamente mutiladas e reduzidas a formatos geométricos de péssimo gosto, diminuindo drasticamente as copas e eliminando a chance de sombras. A sofrida população tinha que se espremer na busca desesperada de um mínimo pedaço da preciosa fresca. Estupidez oficial das administrações municipais que se propagou feito epidemia pelos interiores quentes do Brasil.
Na volta ao barco, peguei o livro. Difícil ler, ainda mais parado, sem ventilação natural. No camarote, fornalha. Nos banquinhos fora, depois de cavar uma sombra rala, ou eram crianças, grudando, empurrando, pulando, ou era a barulheira dos caminhões e carregadores em frente, na rua, e ao lado, nas balsas carregadas, ou eram adultos que puxavam assunto durante aquele marasmo da espera da partida. Um dos passageiros comentou que certa vez lera um livro muito impressionante, sobre uma mulher que passara dias no céu e depois dias no inferno. Ainda hoje se lembrava dele e me recomendou insistentemente.
Larguei o livro no camarote e saí para caminhar mais pela cidade. Revi ruas e bairros esquecidos de minha visita dez anos antes. O hotel em que me hospedara ainda funcionava, mas completamente sujo, podre, abandonado. O restaurante ao lado, de melhor aspecto, recebia fregueses isolados nas mesas, todos de frente a imenso televisor de tela plana.
Antes de sair para jantar fora, paguei para ver as opções do jantar no próprio barco. E valeu a pena. Foi servido jaraqui assado, caldo de peixe, arroz branco. Mandei ver três pratos com bastante caldo, engrossando tudo com farinha de mandioca.
A praça central de Lábrea encheu à noite, e não só dos grupos indígenas em trânsito pela cidade. Os moradores vieram em peso para passear, beliscar os comes e bebes das barraquinhas improvisadas, fugir do calor, e também assistir, na quadra do meio da praça, à partida de futebol de salão feminino. As torcidas empolgavam, empurravam as equipes, debochavam de algumas jogadoras. Nada mal para uma noite de começo de semana em cidade na margem do rio Purus.
O piso de lazer do barco praticamente não teria mais lazer. Durante a parada, cargas e mais cargas que não couberam no porão do piso principal passaram a ocupar aquele convés, sobretudo a parte descoberta. O dono aproveitou a ausência da fiscalização para ajeitar as coisas em área proibida para cargas.
Com o barco parado, sem o vento providencial, o calor tornou-se infernal. Tanto nas áreas externas como, principalmente, dentro do camarote. Adormeci mesmo assim. Ao acordar, antes do amanhecer, já deixáramos Lábrea e navegávamos Purus acima.
Amanheceu sob o belo efeito da névoa, no horizonte, na linha abaixo das copas das árvores, dando um ar de mistério àquele trecho do Purus. Os pássaros cantavam, como os pares de araras, entre tantos outros das mais variadas cores e espécies. Botos tucuxis faziam a festa, aparecendo acima da linha da água e mergulhando. O boto rosa, vez ou outra dava as caras, subindo à superfície, bufando, soltando jatos de ar molhado.
À montante de Lábrea, e da foz do rio Ituxi, o Purus estreitou significativamente. Ao contrário dos trechos à jusante, que ainda enchiam, a partir dali o rio vazava lentamente, com o afloramento das primeiras nesgas de praia. Vez ou outra, dávamos de frente a cambões e estirões, sem vestígios de praias ou margens mais rasas.
O almoço nos presenteou com a repetição do estrogonofe emborrachado acompanhado dos três de sempre. Indefinível o tipo da carne de gado usada para a preparação da gororoba. Mole, é verdade, mas árduo de engolir. Nem bem esvaziei o prato, subi ao camarote para complementar o bucho.
O sol ardia do lado de fora após o almoço. Li páginas do oportuno romance Maíra, de Darcy Ribeiro. Deliciosa e apropriada releitura. O livro e a viagem se temperavam e se alimentavam mutuamente, valorizando um ao outro. O sono me pegou em seguida e caí em sonhos profundos, tão profundos que acordei dentro do sonho pensando que acordara de verdade. Mas ainda dormia. Mudara apenas de camada de sonho. Sonhei que acordara e continuei dormindo.
Dois técnicos em antenas parabólicas haviam embarcado em Lábrea. E, por tabela, dezenas de aparelhos eletrônicos com eles. Consertaram a antena do barco e o som do bar, liberando o uso de CD´s e DVD´s barulhentos, para deleite dos passageiros mais etilizados.
Depois de tantos ataques de piuns, minhas pernas ficaram uma beleza com a infinidade de marcas de picadas. Bastava diminuir o vento para as doçuras atacarem. Não havia proteção contra eles que não fossem as roupas compridas, tais quais as usadas pelos moradores ribeirinhos que avistávamos.
Depois de mais uma tarde quente e belíssima, de muito sol e poucas nuvens, o oposto das manhãs mais instáveis, o céu escureceu antes do anoitecer, nos fazendo pegar uma ponta de grande temporal, cujo centro nervoso passou a quilômetros dali. 
Evitei me banhar antes do jantar, pois ao sair do banheiro já estaria pingando de suor. Mais tarde, mesmo com tempo feio, chovendo sem parar, desci para tomar banho depois de esvaziar a fila dos banheiros. Refrescou um pouco depois do banho frio, ainda mais porque vestira o calção enxaguado debaixo do chuveiro.
Agora com a antena parabólica tinindo de regulada, meia dúzia de mulheres se acumulava em frente ao televisor para ver novelas e depois se desinformarem com algum telejornal. E a chuva não queria parar.
Bem que tentei me segurar fora do camarote depois do jantar e do banho. Era bem cedo quando entrei definitivamente para me deitar. Nada para fazer do lado de fora com chuviscos. A umidade reduziu ligeiramente a temperatura. Ventava um vento fresco. Não demorei a pegar no sono.
Mas no meio da madrugada eu suava e ensopava o lençol de baixo. Abri a porta do camarote para trocar o ar interno e refrescar. Funcionou e voltei a dormir melhor.
Levantei ainda sob um céu estrelado e com o pedaço de lua no topo. Desci para a ducha fria e comecei o dia.
Alguma ginástica na proa do piso de lazer, de frente para a brisa, com as primeiras imagens do rio e das margens. Aproveitei aquele momento sublime, das luzes tênues, silencioso, sem ruídos humanos. Respirei profundamente, de felicidade, diante das águas do Purus, da flora e da fauna das margens, já despertas. Minutos inefáveis.
O Purus revelava mais e maiores praias, barrancos expostos nas partes altas, exibindo raízes das árvores rentes às águas. Botos, gaivotas, socós brancos, araras, periquitos, papagaios, mutuns, entre dezenas de aves das quais nem descobri os nomes, davam o ar da graça.
E haja curvas no Purus, provocando sucessivos giros do sol ao nosso redor.
Não se viam mais as construções flutuantes, tão presentes a jusante de Lábrea. As palafitas, outra genial solução arquitetônica dos ribeirinhos, predominavam sobre a terra arenosa das praias expostas ao sol. Mulheres na beira da água lavavam roupas, limpavam peixes, invariavelmente cobertas da cabeça aos pés, evitando os ataques fulminantes dos piuns. Ao redor das canoas, borboletas pequenas e amarelas voavam em círculos, sem cessar.
A maioria dos passageiros, rumo a Pauini, fazia e refazia contas de quando faltava para chegar. A ansiedade aumentava à medida que subíamos o rio. Tudo porque o trecho entre Lábrea e Pauini era o mais extenso e demorado da viagem.
E dá-lhe picadinho de carne de gado novamente. E preparado de uma parte indefinida do gado, tal a dificuldade de mastigar e engolir. Eu só empurrava, usando de todas as minhas forças para dominar o asco.
Cada vez que um passageiro tomava água, e eram incontáveis vezes todos os dias, ele ou ela pegava um copo descartável no porta-copos, enchia no reservatório, bebia e depois atirava no rio ou no próprio piso. Raramente alguém se lembrava dos latões de lixo. Comportamento inadmissível e comumente aceito devido à indiferença do dono do barco. A eliminação do uso de copos descartáveis, aliada a uma simples orientação antes da partida, sugerindo que cada um trouxesse o vasilhame para ingerir líquidos, já seria um começo. Eu e somente mais meia dúzia de passageiros utilizavam garrafinhas permanentes durante toda a viagem.
As gaivotas faziam festa nas praias recém-expostas pela vazante com os peixes obtidos nos mergulhos pendurados nos bicos.
Mais um entardecer estupendo, com belíssima gradação de cores. De brinde, o arco-íris completo acima da linha das copas das árvores.
A sopa do jantar multiplicou o calor, que já era tórrido, por mil. Deixei o banho noturno para bem mais tarde. Como os dois banheiros femininos continuavam entupidos e interditados, mais fila nos dois únicos banheiros masculinos do piso superior.
À noite, o céu impossivelmente estrelado, sem nuvens, sem lua. Apreciei o chão de estrelas, quase batendo na gente de tão próximo e brilhante. Dava até para notar poeiras de estrelas minúsculas.
Na hora das novelas noturnas, dez ou vinte pessoas se amontoavam em frente ao televisor. Aquele espaço reduzidíssimo era o único livre das cargas indevidamente espalhadas sobre o convés chamado ironicamente de piso de lazer. Milhares de mosquitos pousaram na tela do televisor, pontilhando e bloqueando a imagem, compondo cena no mínimo engraçada. Mas ninguém parecia se incomodar, permanecendo com os olhares bovinos na direção do vidro iluminado e coalhado de mosquitos.
Na manhã seguinte, após a ducha fria, fiz ginástica e alongamento básico na proa do piso de lazer, respirando o ar fresco e puro do Purus.
Ainda completamente escuro, o comandante do turno da embarcação, vez ou outra, acendia o holofote da proa para varrer de luz a frente e as laterais, na busca de possíveis obstáculos nas águas.
Esperei o amanhecer e o minguado café da manhã reduzido à bolacha e macaxeira, já que o pão desaparecera nos primeiros dias. Nem para adquiri-lo na longa parada em Lábrea o tal dono e senhor de tudo prestou.
Amanheceu em território do município de Pauini. E o assanhamento foi geral na maioria dos passageiros que desembarcaria na cidade. Muitos deles já desatavam as redes e começavam a guardar as tralhas. Vestiam as melhores roupas, ajeitavam os cabelos, se perfumavam todos, a fim de desembarcar do modo mais alinhado possível. A cada minuto passado, a cada curva do rio, se tentava adivinhar se faltava muito ou pouco.
Mais estreito, o Purus exibia extensas praias de um lado, barrancos desmoronados de outro, arrastando galhos, troncos, árvores inteiras, para dentro das águas. Pescadores, em canoas a remo ou com motor rabeta, circulavam e paravam para pescar com malhadeira ou tarrafa. As escolas dos vilarejos e comunidades, diferentemente das azuladas de Lábrea, eram avermelhadas em Pauini.
Em meio às expectativas à flor da pele pela chegada, alguém ali da proa contou que a voadeira que trouxera a mulher do comandante a bordo, saída de comunidade ribeirinha pela madrugada, fora puxada por enorme sucuri, apavorando os da embarcação. Não se sabia como nem porque, mas reproduziam a estória de boca em boca, passageiro a passageiro.
Doei O Ateneu, de Raul Pompeia, à passageira embarcada em Lábrea e que mostrara interesse pelas leituras. Torcia para que ela tivesse paciência e encontrasse a sintonia conveniente com o estilo do autor. Antes conversáramos bastante sobre assuntos variados, entre os quais as constantes dores de cabeça que ela sofria, sendo obrigada a intervenções cirúrgicas delicadas. Ainda não se livrara inteiramente dos sintomas, falhava a visão vez ou outra pelos excessos, mas acreditava que o pior passara. Iria se encontrar com o namorado em Pauini e, assim como os demais, ansiava pela chegada.
O barco encostou ao meio do dia na cidade de Pauini, em pleno lamaçal. Um pouco ressecado pelo sol dos últimos dias, mas lamaçal. Passageiros e cargas teriam que superar aquele trecho de uma cidade fluvial despreparada para receber embarcações.
Noventa e nove por cento do barco desembarcou. Os que sobraram, eu no meio, aguardavam as orientações do prosseguimento da viagem. O dono e senhor de tudo tinha sumido, sem dar quaisquer satisfações aos passageiros que seguiriam até Boca do Acre.
Eu e outro passageiro a trabalho desembarcamos. Comemos comida caseira na frente de uma casa situada na rua que desembocava no rio. Aproveitamos para encomendar ali mesmo caldeirada de tambaqui para o jantar. Depois subimos a ladeira asfaltada rumo à cidade alta. Ele foi trabalhar. Eu circulei sob o sol de rachar mamona. A Pauini de baixo, mais interessante, com casas velhas de madeira, se ligava à de cima via rampas asfaltadas ou pela escadaria de cento e trinta e cinco degraus. Na parte alta, casas e comércio sem graça, mas em crescimento e expansão. A pista de pouso se localizava no meio, entre as casas. Os moradores cruzavam a pista a pé, em bicicleta ou de moto. Semanas antes, um avião pousando decepou a cabeça de um motoqueiro que atravessava o local indevidamente.
Dei pequenas e preguiçosas voltas pelas partes alta e baixa, tomei toneladas de líquidos e retornei ao barco aguardando orientações. Leituras e enrolação no piso de lazer do barco, agora esvaziado de passageiros. E nada do dono se manifestar.
continua...

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O Rio Purus (de Manaus a Rio Branco) (parte 3/6)

...continuação
Acima de Beruri, o Purus perdeu aquela largura toda da foz e ganhou dimensões de afluente do Solimões, ainda que de porte. Ambas as margens guardavam infindáveis igapós, inundando barrancos e praias que aflorariam na vazante.
O grosso dos passageiros, quando não lançava tudo que é coisa descartada nas águas do rio, deixava um rastro de lixo orgânico ou inorgânico por onde passava. Raros os que se utilizavam dos isolados latões de lixo.
Via antena parabólica, a sintonia da televisão requeria ajustes constantes, uma vez que o barco executava uma trajetória repleta de curvas e sinuosidades. A manivela no teto tinha que ser girada com frequência a fim de recuperar a imagem. Normalmente alguém da tripulação era eleito o senhor antena. Se sentava no banquinho mais alto mantendo as mãos atentas na manivela.
O jantar se compôs de sopa com legumes e pedaços de carne com osso. Para acompanhar, farinha de mandioca e molho de pimenta. Como de praxe, após cada uma das três refeições servidas no barco e incluídas no preço da passagem, eu entrava no camarote para complementar a pança com as opções adquiridas em Manaus, entre castanhas com frutas secas, barra de cereais e queijinhos.
Após o jantar, um rapazinho muito jovem, mas com o filho no colo, me acompanhou na contemplação da noite na popa do nível de lazer. Nascido na comunidade do Jaburu e morador de Pauini, o colega descreveu as belezas e fartura dos lagos atrás das margens e ao longo dos quais passávamos naquele momento via um furo providencial. Discorria sobre a riqueza da fauna e da flora, a abundância de alimentos, peixes, quelônios, caças, frutas, mandiocas. Durante a vazante, quando as praias apareciam, nela se cultivavam feijão, batata, milho, melancia, abóbora. Ressaltou a prevenção e a repressão sobre os pescadores e caçadores predatórios, fazendo ganhar a natureza e os ribeirinhos sustentáveis. Quase lhe vinham lágrimas ao comentar o que sentia pela calha do rio, a tranquilidade, a vida em contato íntimo e harmonioso com a natureza, que tudo lhe forneceria se tratada de forma equilibrada, respeitando os limites naturais, de épocas e estações.
Depois da noite bem dormida, do café da manhã na base de pão com margarina, macaxeira cozida, café e leite, boas e longas conversas na proa do piso de lazer entre passageiros variados.
Botos, dos rosas e dos tucuxis, diversas variedades de peixes, saltavam e mergulhavam nas águas. Araras, periquitos, papagaios, socós, entre outros tantos pássaros, revoavam e cantavam, compondo sinfonias distintas. Macaquinhos faziam uma festa danada pelos galhos das árvores enquanto se deliciavam com os ingás.
As pequenas comunidades ribeirinhas se espaçavam mais, sem perder o charme das casinhas, comércio, escola, igrejas desgraçadamente fundamentalistas, tudo de madeira e flutuantes, recém-pintadas, de boa aparência externa. Estávamos na cheia e a comunicação entre os casebres, mesmo que próximos, exigia canoas, a remo ou motorizadas.
Almocei na segunda leva da mesa arroz, feijão, macarrão que nunca pego, carne com osso em placas no molho. Na mesa, somente quatro passageiros, entre elas a copeira resmungona e desejosa de mostrar uma autoridade inexistente. A coitada talvez recebesse o equivalente do dono do barco, um homem longe de tratar carinhosamente os passageiros e funcionários.
No meio da tarde atingimos a Reserva Biológica do Abufari, extensa área abrangendo ambas as margens do Purus. Nesse trecho, durante a estação seca, dez anos antes eu observara imensas praias nas quais, sob a supervisão de agentes ambientais dos órgãos públicos competentes, os quelônios botavam ovos a serem desovados tempos depois.
A maioria dos passageiros do barco tomava dois a três banhos diariamente, vestindo em seguida roupas limpas.
Caiu um belo entardecer e o por do sol veio tingido por chamas de fogo entre nuvens alongadas que evoluíam de alaranjadas, avermelhadas, ao violeta. Lindo demais!
O senhor de olhos vermelhos, que se tornaria minha constante companhia na proa do piso de lazer durante a viagem, sobretudo nas manhãs, enriqueceu o anoitecer com estórias de onças, sucuris, assassinatos por vingança durante a segunda campanha da borracha no alto rio Envira, acima da cidade de Feijó, estado do Acre. Os ouvintes nem piscavam os olhos tamanha a emoção pelos detalhes descritos.
Jantamos arroz, feijão, macarrão que eu recuso, picadinho de carne com um resto de legumes.
No início da madrugada o barco atracou no porto da cidade de Tapauá. Pouca movimentação de cargas e passageiros. No topo da escada sobre o barranco, meia dúzia de moradores recepcionava a chegada, talvez carregadores ou moto-taxistas. As águas espelhadas do Purus refletiam o luar de brilho intenso da lua cheia.
 Acordei bem antes do amanhecer para a chuveirada fria que me tiraria o grude do suor noturno.
O Purus se estreitava gradativamente rio acima. Praias submersas nas concavidades, terra firme alagada nas convexidades, onde cresciam árvores de maior porte, mais fascinantes, como os mais de quarenta metros de altura da imponente Samaúma. Curvas e mais curvas faziam o sol brilhar à esquerda, à direita, em frente, atrás, dando uma volta completa em poucas horas.
Pássaros brancos, pretos, sobrevoavam e pousavam nas canaranas. Araras, periquitos, pássaros maiores, se aquietavam nas árvores de maiores porte. Mergulhões paravam em tocos e galhos flutuantes, nas plantas aquáticas do meio do rio, na espera de peixes para se alimentarem.
Manhã das mulheres em plena atividade no piso de lazer. Umas lavavam roupas e as estendiam para secar em varais improvisados, outras se auxiliavam a tingir os cabelos, fazer a unha dos pés e das mãos. E falavam mal dos homens, comparavam comportamento de crianças, fofocavam sobre a cidadezinha onde moravam, eventualmente fatos mais picantes. Os poucos homens por perto se mantinham sentados ou deitados, fazendo ou ajudando em absolutamente nada.
No meio da manhã, o comandante nos chamou para tomar açaí fresquinho, colhido na tarde anterior numa das saídas da lancha amarrada ao barco, e recém-centrifugado pela manhã. Mandei ver dois copos adoçados com açúcar e encorpados com farinha de mandioca.
Arroz, feijão, macarrão, estrogonofe de carne de oitava, talvez do dedão da pata do boi, compuseram o almoço, regado a suco aguado de cupuaçu. Enquanto comíamos, tentando engolir a gororoba, o barco parou, deu voltas, foi para frente, para traz, navegando em velocidade bem abaixo do normal. Os tripulantes corrigiram não sei o quê antes de o motor retomar o ritmo normal.
Emparelhamento com o segundo barco do mesmo dono no meio da tarde. Gritos de um para o outro, entre homens e mulheres. Do piso de lazer do outro, que iria somente até Lábrea, vinha o volume ensurdecedor de algum lixo comercial de ocasião. Quatro homens de lá, de bermudas, sem camisa, balançavam o esqueleto, cada um com uma garrafa de cerveja na mão, exibindo embriagues explícita junto a alegrias tristes e artificialmente aditivadas. Alegria real e natural era a minha de não estar lá.
Estourando nas caixas do barco emparelhado, o refrão da banda soltava pérolas do tipo “homem não trai, homem se distrai. Se fizer direito, nunca a casa cai”. Ou então “vou festejar no posto. A bebida é uísque, as garotas tira-gosto”.
Embora ainda sob o sol por onde navegávamos, o céu escureceu mais à frente, depois das árvores da margem oposta, pintando um cenário de brilhos contrastantes. Mais chuva se aproximava.
Encerrei a releitura de O Ateneu, de Raul Pompeia, livro denso e rebuscado, repleto de detalhes e ironias. Referência na literatura brasileira do final do século XIX, o autor se suicidaria com apenas trinta e dois anos. Retirei do fundo da mochila o próximo da lista, mais uma releitura, o romance Maíra, de Darcy Ribeiro, antropólogo imprescindível para quem quer entender o Brasil de coração aberto.
No jantar veio frango ensopado acompanhado do trio de sempre. Depois subi ao camarote e reforcei com castanhas e frutas secas, barra de cereais, queijinhos.
Acordei ainda no escuro. A pouca claridade revelava o Purus espelhado, calmo, em curvas longas e suaves. O barco deslizava silencioso rio acima. Flutuantes esparsos guardavam casinhas de madeira, bem acabadas, pintadas de cores vivas, conservadas carinhosamente pelos moradores ribeirinhos.
Em meio às conversas matinais, pares de araras, de vários tipos e cores, cruzavam de uma margem à outra. Botos tucuxis mergulhavam se exibindo à frente e ao lado do barco.
O casal jovem e menor de idade, casados havia dois anos, se preparava para desembarcar na próxima escala. Ele fazia bicos de carregador no porto da cidadezinha. Moravam em casebre na beira do rio, sujeito a enchentes constantes.
Parada em Canutama por uma hora no começo da tarde. Um tripulante usou a voadeira do barco para ir à cidade repor o estoque de gelo do barco. O sol brilhava escandalosamente, queimando tal fornalha. O calor, sem o vento do barco em movimento, foi às alturas. E os piuns, pelo mesmo motivo, me recepcionaram agressivamente. As águas do rio batiam centímetros abaixo das ruas da cidade, anunciando transbordamentos para logo mais.
A mudança de posição do sol, devido às curvas do Purus, deslocava os passageiros do lado esquerdo do convés para o direito, para, logo em seguida, empurrá-los, eu no meio, do lado direito para o esquerdo. A primeira tarde de céu praticamente limpo de nuvens permitia ao sol torrar qualquer cidadão.
Ao sair do banho frio do banheiro do piso superior, antes mesmo de subir a escada para o piso de lazer, eu já estava suando. E o jantar veio de sopa. Sopa encorpada e saborosa, mas sopa, esquentando ainda mais tudo e todos.
Embarcaram dezesseis passageiros em Canutama, contra o desembarque somente do casal jovem. O setor de redes do piso superior, que já estava lotado, entupiu a ponto de surgirem reclamações. As redes atadas se dispunham uma sobre as outras, comprometendo a circulação de ar, a movimentação das pessoas, a privacidade, o conforto. E muitas, mas muitas mesmo, crianças de colo, bebês, no meio do emaranhado, compondo um caos desumano.
À noite, os mosquitos fizeram festa em torno das lâmpadas acesas, mesmo com a brisa do barco em movimento. O céu se mostrava absurdamente estrelado. Relâmpagos respeitáveis e seguidos explodiam no horizonte, anunciando chuvas para dali a não sei quanto tempo.
Acordei durante a madrugada em meio a oscilações e ruídos estranhos no casco do barco. Cruzávamos um furo, o quarto da viagem. Não um furo normal e amplo, mas estreito, de maneira que as árvores quase tocavam a embarcação, os galhos partidos esbarravam e entravam nas laterais dos pisos. Parecia que a floresta abraçava o barco.
Levantei bem cedo. Desci e tomei a chuveirada para acordar definitivamente e tirar o suor acumulado. Sim, pois o camarote ferveu durante a noite. Precisei de muita concentração e persistência para conseguir adormecer empapado de suor sobre o lençol umedecido.
O barco seguia o curso normal do Purus, já fora do furo estreito da madrugada. Logo o horizonte leste anunciou o nascer do sol num evoluir de cores púrpuras, vermelhas, laranjas, amarelas, desenhando efeitos belíssimos nas nuvens e reflexos nas águas espelhadas do rio.
Na espera do ralo café da manhã, passageiros descreveram histórias antigas de autoritarismos, prepotências, crueldades, vindas de diversos proprietários de barcos, o daquele inclusive. Em viagens passadas, negavam comida, esbravejavam com passageiros, se comportando mais como senhor de escravos do que prestadores de serviços de transporte e alimentação. Mas contavam essas perversidades de maneira resignada, como se os tais donos de barcos pudessem tudo, até humilhar, maltratar, espezinhar seres humanos. Cenas que escancaravam o clientelismo, o coronelismo, os donos de gente, a opressão e a exploração mais desavergonhadas. A cidadania plena passava longe daqueles confins. E o comércio evangélico acentuava e lucrava bastante com a situação.
O dono do barco, o conferente, a copeira rabugenta, entre outros da tripulação, vestiram roupas urbanas, calças, camisas, uniformes, limpos, recém-tirados da bagagem. A copeira varria os cantos. Os tripulantes ajeitavam isso e aquilo nos pisos. A aparência parecia contar muito. Afinal, nos aproximávamos de Lábrea, a mais importante cidade da calha do rio Purus, e terra natal do clã do dono do barco.
continua...

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

O Rio Purus (de Manaus a Rio Branco) (parte 2/6)

...continuação
Desembarquei em Manaus no final do entardecer.
Escabeche de tambaqui, precedido de caipirinha e sucedido por suco de goiaba, compôs o meu jantar.
Dei voltas sem pretensões pelo largo de São Sebastião. Nada a fazer, muito menos encarar no teatro Amazonas uma das apresentações pertencente ao décimo sétimo festival de ópera, em cartaz em Manaus durante dois meses.
Na manhã seguinte caminhei até a Escadaria, na margem do rio Negro. Avistei o barco do Purus, atracado no fundo da mesma balsa do barco com o funesto nome fundamentalista rumo a Carauari.
Passei direto pelo segundo e me aproximei devagarinho do primeiro, em acelerado ritmo de descarga e carga. A próxima partida rumo a Boca do Acre seria daí uma semana.
Fui ao barco cujo nome evangélico me dava calafrios, o do rio Juruá. O comandante me comunicou que a partida, prevista para o dia seguinte, atrasaria pelo menos dois dias. O motivo era que a carga, maior fonte de lucros do barco, ainda não enchera o porão. Era a oportunidade que eu esperava. Demonstrei contrariedade e cancelei a reserva para Carauari.
Voltei ao barco do Purus e avisei que viajaria nele.
Ou seja, em poucos minutos eu cancelava o confirmado e confirmava o cancelado. Viajar pelos rios Purus, Juruá, Japurá, não era a mesma coisa que pelos rios Solimões, Amazonas, Madeira. Podiam se confirmar datas que posteriormente seriam alteradas. Daí a necessária elasticidade de datas de quem deseja os percursos fluviais menos previsíveis.
Fazia calor em Manaus, calor de verdade. Porém, nem sombra do calor pegajoso, sufocante, asfixiante, daquele setembro de três anos antes. À noite, mesmo em movimento, caminhando, conseguia ficar sem transpirar em abril.
Tracei um tacacá caro no quiosque do largo de São Sebastião.
Na manhã seguinte, aliviado pelas novidades promissoras, tomei ônibus urbano até a Ponta Negra, bairro nobre de Manaus, com praia no rio Negro e, outrora, botecos e quiosques mal frequentados, conforme relatei aqui em minhas outras passagens pela capital amazonense.
Removeram os bares e barracas precárias à esquerda e à direita do anfiteatro. Aterraram com areia o trecho que costumava sumir durante as cheias naturais do rio, garantindo, pelas promessas dos construtores, praias permanentes, o ano todo. Reurbanizaram o nível da avenida e o da beira da água. E um extenso trecho ainda esperava pela segunda fase da revitalização.
Mesmo numa manhã vazia de dia de semana, para o local não perder a forma de tempos atrás, uma baranga esbagaçada pela vida passou por mim e perguntou “está sozinho?”, “fique com a gente”. Após leve piscada de olhos, apontou o pedaço da praia artificial onde a colega dela, não menos pavorosa, se aninhava na areia.
Estão esperando até agora.
Durante o longo trajeto de ônibus, na ida e na volta, um perfil assustador de Manaus, escancarando o urbanismo estúpido, anti-amazônico e anti-indígena, um festival de concreto, asfalto, feiura, sujeira, ausência de árvores, praças e serviços públicos, entre outras mazelas típicas de metrópoles de países dependentes ou neocolonizados.
Me dirigi ao porto da Escadaria, agora sob o sol escaldante da tarde manauara. Mesmo assim, era infinitamente melhor que a praia artificial da Ponta Negra.
O tão desejado barco que subiria o rio Purus embarcava cargas e mais cargas, dos mais variados tipos, volumes e pesos. Reservei o camarote situado no piso de lazer. Segundo o conferente, a viagem até Boca do Acre poderia demorar onze dias, dez dias, doze dias. Dependeria da duração das paradas para carga e principalmente descarga.
Retornei ao hotel feliz da vida pela maravilhosa reviravolta da viagem.
A chuva começou no fim da tarde e não parou mais.
Eu ocupava minhas horas de preguiça no quarto do hotel entre leituras e palavras cruzadas. Jamais me preocupei em escolher livros compatíveis com o destino viajado. Uma coisa nada tinha a ver com a outra. Separei O Ateneu, de Raul Pompeia, como o primeiro a ser lido, no caso relido depois de décadas. Pelo menos a densidade do texto e o estilo rebuscado do autor me impediriam de detoná-lo em curtíssimo tempo.
À noite, pude ver o começo da cerimônia de casamento na igreja de São Sebastião. A noiva entrou ao som de trombetas executando a manjada marcha nupcial. Enquanto isso, no estacionamento ao redor do teatro Amazonas, não cabia nem alfinete em razão de mais uma apresentação do décimo sétimo festival de ópera de Manaus. O amazonense prestigiava o evento, por tradição, por saudosismo do fatídico auge da borracha, ou, quem sabe, por gosto autêntico pelo gênero.
Aos domingos ocorria a feira de artesanato na avenida Eduardo Ribeiro. Seria mais uma daquelas “feirinhas” que pouco ou nada oferecem de artesanato, comuns pelo Brasil e pelo mundo afora, voltadas quase exclusivamente a turistas consumistas e desavisados. Mas aquela feira reservava um diferencial positivo. Além das bugigangas inúteis de todos os comércios do gênero, dezenas de barracas de alimentação serviam o elogiado café da manhã regional. Os famintos ocupavam a infinidade de mesas e cadeiras. Entre as opções disputadas, farofa de charque, queijos, tucumã, tapiocas, pães, sucos, açaí, cuscuz, café, leite. E comiam e comiam muito. Parabéns aos manauaras e demais amazonenses que degustavam produtos regionais, à moda regional.
De minha parte, já com o café bem tomado no hotel, me restringi aos deliciosos bombons de chocolate, recheados de cupuaçu, açaí, pupunha, buriti.
O tempo nublado com chuviscos se manteve durante todo o dia seguinte, raramente dando tréguas.
Fui ao porto para verificar a partida do desejado barco do Purus. Estava lá, no mesmo lugar, carregando sem parar. E ao lado dele, também no mesmo lugar, o barco de nome fundamentalista e arrepiante, que iria para Carauari e deveria ter partido vários dias antes.
As mulheres, pelo menos as notadas por onde passei, nessa viagem e nas anteriores, quando queriam ser sensuais, atraentes, charmosas, vestiam saias, vestidos, bermudas, calças, blusas, de cores berrantes, de cortes, dimensões e formatos que exibiam até a alma das coitadas. Cabelos indecentemente alisados pela ditadura dos padrões. Pinturas exageradas e impróprias para o clima, tipos e cores de pele. E não se sentiam naturais ou à vontade. Invariavelmente ajeitavam isso e aquilo, puxando e repuxando os cabelos, esticando vestidos e saias para baixo, fazendo trejeitos artificiais.
 Os casais regionais andavam sempre de mãos dadas, em quaisquer situações. Jamais se descolavam. A posse ostensiva evidenciava quem mandava e quem era mandado na relação. Ao se sentarem, em bares, restaurantes e afins, jamais ficavam um de frente para o outro, mas sempre lado a lado, com o homem enlaçando a mulher firmemente para desencorajar possíveis concorrentes.
Deixei o hotel pela manhã. De mochila nas costas, cruzei a avenida Getúlio Vargas, desci toda a rua Joaquim Nabuco, até o começo, no posto na beira do rio Negro e ao lado dos mercados.
Subi no barco rumo ao Purus. Depois de pegar a chave com o conferente, assumi o camarote no piso de lazer. O piso principal se entupia de cargas que mal deu para passar com a mochila. O piso principal lotava de redes atadas.
Fazia muito calor nas dependências do barco. Não ventava e o ar abafava. Permaneci sob a sombra do piso de lazer, em frente ao bar fechado. Li artigos da revista Caros Amigos. Um pós-adolescente subia ali de cinco em cinco minutos e sempre reclamava do atraso da partida, embora faltasse muito tempo para o horário programado. Um técnico em vedações aproveitava para impermeabilizar cantinhos vulneráveis do piso e tetos. Entre uma pincelada e outra, falava bastante, se gabando de muitos serviços ali no porto e de ser bastante requisitado pelos proprietários de barcos. E se metia na conversa entre quatro mulheres ao lado que debatiam a infidelidade nas relações, ficando de olho na que afirmava que já fora muito safada e que agora resolvera entrar na linha. Pelo olhar e interesse dele, a tal regenerada contava somente lorotas.
Pequena canoa encostou à esquerda do barco carregando uma montanha de gelo protegido com lona. Com uma pá, os canoeiros enchiam latões que seriam utilizados para refrigerar a comida e a água do reservatório coletivo de água potável.
Após a partida do barco, no começo da tarde, ainda houve redução dos motores para a fiscalização da Capitania dos Portos. Naquele mesmo momento a Capitania fiscalizava o famigerado Clívia, barco que eu tivera o desprazer de experimentar sete anos antes, com destino a Belém, disparado a pior embarcação que peguei em tantos anos de viagens fluviais pela Amazônia. Pois aquele mesmo barco estava navegando com a popa excessivamente rebaixada e pensa para o lado esquerdo. A Capitania não liberou e obrigou o Clívia a retornar ao porto. Muito bem feito!
O barco passou pelos mesmos furos, do Negro ao Solimões, que as duas lanchas entre Codajás e Manaus, aproveitando a cheia dos rios. Mas desta vez em menor velocidade, permitindo apreciar as comunidades das zonas alagadas, construções suspensas, hortas, a pouca criação de animais.
Ao lado do camarote onde eu me instalara havia o banheiro desativado, ocupado por tralhas mil, inclusive os produtos químicos abandonados pelo técnico em vedações, gerando odores fortíssimos. O dono do barco me sugeriu que eu mudasse para o camarote ao lado, mais distante dos maus cheiros. Só que esse camarote estava lotado de carga até a tampa.
Tive que tirar minhas coisas já espalhadas e largá-las mais adiante no piso externo de passagem entre os camarotes. O dono e mais dois tripulantes iniciaram a transferência dos objetos entre os camarotes. A operação demorou. Eram muitos itens para mudar. Eu só assistia e cuidava para minhas coisas não despencarem nas águas. Depois de liberado, recoloquei todas as minhas coisas sobre o colchão superior e me considerei mudado.
Exceto nos setores sem teto ou cobertura do barco, me era impossível caminhar ou permanecer de pé sem ter que me curvar para não bater ou encostar a cabeça. Tudo era muito baixo, áreas comuns, banheiros, corredores, cobertura da área de lazer, copa, camarote, tudo. Era um alívio quando eu me dirigia à parte descoberta do piso de lazer. Me alongava e me esticava todo, mantinha a coluna ereta, olhava para frente com a cabeça erguida, ficava feliz da vida.
Em um dos dois únicos banheiros masculinos do piso superior, os canos que traziam a água para a descarga se soltavam frequentemente pela forte pressão, ensopando o piso e não removendo a sujeira do vaso sanitário. Tentei rejuntá-los manualmente, mas a pressão da água os deslocava mais uma vez. Independente de alguém ter alertado os responsáveis, tratei de botar a boca no trombone. A ducha do banho, porém, enxaguava com bastante água, puxada do próprio rio quando o barco estava com o motor ligado.
Servido na mesa de refeições na popa do piso superior, o jantar veio de curimatã frito, baião-de-dois e farinha. As enormes tigelas colocadas sobre a mesa matariam a fome de qualquer cidadão. O limite de pessoas sentadas formava levas de passageiros, uma atrás da outra.
Após a refeição, uns poucos despejaram os olhares bovinos na direção do televisor do piso de lazer, a fim de receber mais uma dose diária de embrutecimento, enquanto a maioria se alojou nas redes ou nos camarotes.
A principal diferença entre barcos que sobem o rio e os que baixam é que os primeiros evitam o canal, economizando combustível e força do motor, obtendo maior rendimento. Já os segundos procuram justamente esse canal, buscando a mesma economia e o mesmo desempenho.
Os barcos que sobem demoram mais tempo, às vezes muito mais tempo, que os que baixam o mesmo percurso. Navegar contra a corrente, obviamente, é um dos motivos. Além disso, no caso do estado do Amazonas, a maioria dos barcos carrega muita carga na subida dos rios, ou seja, de Manaus para os interiores dependentes em quase tudo, pois pouco ou nada produzem. Daí barcos mais pesados e, portanto, mais lentos. E, sendo mais carregados, se demoram mais durante as descargas.
E o nosso barco subia as águas do Solimões encostado na marquem esquerda. E, de tão próximo dela, dava para ver os interiores das esparsas casas dos ribeirinhos.
Dormi mal, transpirando demais dentro do camarote. O ventilador, deslocando o ar quente de lugar, nada refrescou. Nem amanhecera quando desci e tomei banho, frio obviamente, para tirar o suor empapado.
Aguardei o café da manhã na base de pão já recheado de margarina, bolacha, café e leite separados e previamente adoçados em imensas garrafas térmicas.
Amanheceu ainda sobre as águas do rio Solimões. Pequenas comunidades despontavam pela proximidade da margem esquerda. Em todas elas, o templo fundamentalista evangélico.
Atingimos a boca do Purus ainda pela manhã. Bastou entrarmos naquelas águas também barrentas para começarem a aparecer moradias e comércios flutuantes, construções típicas desse trecho do rio, conforme eu já relatara na baixada de dez anos antes.
Na opção flutuante ou em palafitas, ambas derivadas da sabedoria secular ou milenar dos ribeirinhos e indígenas, as moradias contavam com a casa de farinha ligeiramente afastada. Mulheres e homens descascavam, limpavam, moíam, torravam a mandioca para a fabricação artesanal da farinha, em grãos grossos como era apreciada no norte do Brasil.
Semelhante à juta e crescida na zona alagável do rio, a malva era cortada, desfiada, pendurada ao sol para secar. Depois, vendida como matéria prima para cordas e sacos.
Passamos sem parar ao lado da cidade de Beruri.
E desci, mesmo sem fome, ao almoço. As grandes tigelas traziam salada mista picada, arroz, feijão, macarrão, frango cozido no molho, os vasilhames de farinha de mandioca, o caldo de pimenta. Na garrafa térmica, suco artificial de caju. De talheres, independente do tipo de comida, somente colher.
A maioria dos passageiros, contudo, não comia na mesa esperando a vez, mas pegava a comida em vasilhas diretamente na cozinha do piso principal, escada abaixo.
continua...