O barco aportou no meio da manhã em Lábrea, em frente à
ponte metálica e flutuante da rua movimentada que ligava ao centro da cidade.
Logo juntou gente para assistir ao desembarque, receber parentes e amigos, pegar
encomendas e cargas, peruar tipos e rostos. O dono deu as orientações durante a
estadia na cidade. Se referiu aos horários, à economia de água durante a
parada, aos comportamentos gerais. Todos ouviam como se o dono do mundo os ensinasse
a viver.
Dei uma volta livre pela feia cidade de Lábrea,
agitadíssima pelo comércio nas ruas centrais. O insistente picadinho de carne
de oitava categoria servido durante o almoço na mesa de refeições foi de matar.
Me arrependi de não ter tentado nada pela cidade. E deveria arriscar algo mais
aceitável para o jantar.
Pela proximidade a diversas terras indígenas, por contar
com centro de saúde e assistência social, ambos exclusivos para povos
originais, Lábrea atraía muitas etnias da região. Notei vários grupos deles
perambulando pela cidade, alguns conversando em línguas próprias.
A praça central de Lábrea, de razoáveis dimensões para o
porte da cidade, guardava dezenas de árvores plantadas. Então, beleza e sombra
abundantes? Muito pelo contrário! Todas as árvores eram criminosamente
mutiladas e reduzidas a formatos geométricos de péssimo gosto, diminuindo drasticamente
as copas e eliminando a chance de sombras. A sofrida população tinha que se
espremer na busca desesperada de um mínimo pedaço da preciosa fresca. Estupidez
oficial das administrações municipais que se propagou feito epidemia pelos
interiores quentes do Brasil.
Na volta ao barco, peguei o livro. Difícil ler, ainda mais
parado, sem ventilação natural. No camarote, fornalha. Nos banquinhos fora, depois
de cavar uma sombra rala, ou eram crianças, grudando, empurrando, pulando, ou
era a barulheira dos caminhões e carregadores em frente, na rua, e ao lado, nas
balsas carregadas, ou eram adultos que puxavam assunto durante aquele marasmo
da espera da partida. Um dos passageiros comentou que certa vez lera um livro
muito impressionante, sobre uma mulher que passara dias no céu e depois dias no
inferno. Ainda hoje se lembrava dele e me recomendou insistentemente.
Larguei o livro no camarote e saí para caminhar mais pela
cidade. Revi ruas e bairros esquecidos de minha visita dez anos antes. O hotel
em que me hospedara ainda funcionava, mas completamente sujo, podre,
abandonado. O restaurante ao lado, de melhor aspecto, recebia fregueses
isolados nas mesas, todos de frente a imenso televisor de tela plana.
Antes de sair para jantar fora, paguei para ver as opções
do jantar no próprio barco. E valeu a pena. Foi servido jaraqui assado, caldo
de peixe, arroz branco. Mandei ver três pratos com bastante caldo, engrossando
tudo com farinha de mandioca.
A praça central de Lábrea encheu à noite, e não só dos
grupos indígenas em trânsito pela cidade. Os moradores vieram em peso para
passear, beliscar os comes e bebes das barraquinhas improvisadas, fugir do
calor, e também assistir, na quadra do meio da praça, à partida de futebol de
salão feminino. As torcidas empolgavam, empurravam as equipes, debochavam de
algumas jogadoras. Nada mal para uma noite de começo de semana em cidade na
margem do rio Purus.
O piso de lazer do barco praticamente não teria mais
lazer. Durante a parada, cargas e mais cargas que não couberam no porão do piso
principal passaram a ocupar aquele convés, sobretudo a parte descoberta. O dono
aproveitou a ausência da fiscalização para ajeitar as coisas em área proibida
para cargas.
Com o barco parado, sem o vento providencial, o calor
tornou-se infernal. Tanto nas áreas externas como, principalmente, dentro do
camarote. Adormeci mesmo assim. Ao acordar, antes do amanhecer, já deixáramos
Lábrea e navegávamos Purus acima.
Amanheceu sob o belo efeito da névoa, no horizonte, na
linha abaixo das copas das árvores, dando um ar de mistério àquele trecho do Purus.
Os pássaros cantavam, como os pares de araras, entre tantos outros das mais
variadas cores e espécies. Botos tucuxis faziam a festa, aparecendo acima da
linha da água e mergulhando. O boto rosa, vez ou outra dava as caras, subindo à
superfície, bufando, soltando jatos de ar molhado.
À montante de Lábrea, e da foz do rio Ituxi, o Purus
estreitou significativamente. Ao contrário dos trechos à jusante, que ainda
enchiam, a partir dali o rio vazava lentamente, com o afloramento das primeiras
nesgas de praia. Vez ou outra, dávamos de frente a cambões e estirões, sem
vestígios de praias ou margens mais rasas.
O almoço nos presenteou com a repetição do estrogonofe
emborrachado acompanhado dos três de sempre. Indefinível o tipo da carne de
gado usada para a preparação da gororoba. Mole, é verdade, mas árduo de
engolir. Nem bem esvaziei o prato, subi ao camarote para complementar o bucho.
O sol ardia do lado de fora após o almoço. Li páginas do oportuno
romance Maíra, de Darcy Ribeiro. Deliciosa
e apropriada releitura. O livro e a viagem se temperavam e se alimentavam
mutuamente, valorizando um ao outro. O sono me pegou em seguida e caí em sonhos
profundos, tão profundos que acordei dentro do sonho pensando que acordara de
verdade. Mas ainda dormia. Mudara apenas de camada de sonho. Sonhei que
acordara e continuei dormindo.
Dois técnicos em antenas parabólicas haviam embarcado em
Lábrea. E, por tabela, dezenas de aparelhos eletrônicos com eles. Consertaram a
antena do barco e o som do bar, liberando o uso de CD´s e DVD´s barulhentos,
para deleite dos passageiros mais etilizados.
Depois de tantos ataques de piuns, minhas pernas ficaram
uma beleza com a infinidade de marcas de picadas. Bastava diminuir o vento para
as doçuras atacarem. Não havia proteção contra eles que não fossem as roupas
compridas, tais quais as usadas pelos moradores ribeirinhos que avistávamos.
Depois de mais uma tarde quente e belíssima, de muito sol
e poucas nuvens, o oposto das manhãs mais instáveis, o céu escureceu antes do
anoitecer, nos fazendo pegar uma ponta de grande temporal, cujo centro nervoso
passou a quilômetros dali.
Evitei me banhar antes do jantar, pois ao sair do banheiro
já estaria pingando de suor. Mais tarde, mesmo com tempo feio, chovendo sem
parar, desci para tomar banho depois de esvaziar a fila dos banheiros.
Refrescou um pouco depois do banho frio, ainda mais porque vestira o calção
enxaguado debaixo do chuveiro.
Agora com a antena parabólica tinindo de regulada, meia
dúzia de mulheres se acumulava em frente ao televisor para ver novelas e depois
se desinformarem com algum telejornal. E a chuva não queria parar.
Bem que tentei me segurar fora do camarote depois do
jantar e do banho. Era bem cedo quando entrei definitivamente para me deitar.
Nada para fazer do lado de fora com chuviscos. A umidade reduziu ligeiramente a
temperatura. Ventava um vento fresco. Não demorei a pegar no sono.
Mas no meio da madrugada eu suava e ensopava o lençol de
baixo. Abri a porta do camarote para trocar o ar interno e refrescar. Funcionou
e voltei a dormir melhor.
Levantei ainda sob um céu estrelado e com o pedaço de lua
no topo. Desci para a ducha fria e comecei o dia.
Alguma ginástica na proa do piso de lazer, de frente para
a brisa, com as primeiras imagens do rio e das margens. Aproveitei aquele
momento sublime, das luzes tênues, silencioso, sem ruídos humanos. Respirei
profundamente, de felicidade, diante das águas do Purus, da flora e da fauna
das margens, já despertas. Minutos inefáveis.
O Purus revelava mais e maiores praias, barrancos expostos
nas partes altas, exibindo raízes das árvores rentes às águas. Botos, gaivotas,
socós brancos, araras, periquitos, papagaios, mutuns, entre dezenas de aves das
quais nem descobri os nomes, davam o ar da graça.
E haja curvas no Purus, provocando sucessivos giros do sol
ao nosso redor.
Não se viam mais as construções flutuantes, tão presentes
a jusante de Lábrea. As palafitas, outra genial solução arquitetônica dos
ribeirinhos, predominavam sobre a terra arenosa das praias expostas ao sol.
Mulheres na beira da água lavavam roupas, limpavam peixes, invariavelmente
cobertas da cabeça aos pés, evitando os ataques fulminantes dos piuns. Ao redor
das canoas, borboletas pequenas e amarelas voavam em círculos, sem cessar.
A maioria dos passageiros, rumo a Pauini, fazia e refazia
contas de quando faltava para chegar. A ansiedade aumentava à medida que
subíamos o rio. Tudo porque o trecho entre Lábrea e Pauini era o mais extenso e
demorado da viagem.
E dá-lhe picadinho de carne de gado novamente. E preparado
de uma parte indefinida do gado, tal a dificuldade de mastigar e engolir. Eu só
empurrava, usando de todas as minhas forças para dominar o asco.
Cada vez que um passageiro tomava água, e eram incontáveis
vezes todos os dias, ele ou ela pegava um copo descartável no porta-copos,
enchia no reservatório, bebia e depois atirava no rio ou no próprio piso.
Raramente alguém se lembrava dos latões de lixo. Comportamento inadmissível e
comumente aceito devido à indiferença do dono do barco. A eliminação do uso de
copos descartáveis, aliada a uma simples orientação antes da partida, sugerindo
que cada um trouxesse o vasilhame para ingerir líquidos, já seria um começo. Eu
e somente mais meia dúzia de passageiros utilizavam garrafinhas permanentes
durante toda a viagem.
As gaivotas faziam festa nas praias recém-expostas pela
vazante com os peixes obtidos nos mergulhos pendurados nos bicos.
Mais um entardecer estupendo, com belíssima gradação de
cores. De brinde, o arco-íris completo acima da linha das copas das árvores.
A sopa do jantar multiplicou o calor, que já era tórrido,
por mil. Deixei o banho noturno para bem mais tarde. Como os dois banheiros
femininos continuavam entupidos e interditados, mais fila nos dois únicos
banheiros masculinos do piso superior.
À noite, o céu impossivelmente estrelado, sem nuvens, sem
lua. Apreciei o chão de estrelas, quase batendo na gente de tão próximo e
brilhante. Dava até para notar poeiras de estrelas minúsculas.
Na hora das novelas noturnas, dez ou vinte pessoas se
amontoavam em frente ao televisor. Aquele espaço reduzidíssimo era o único
livre das cargas indevidamente espalhadas sobre o convés chamado ironicamente
de piso de lazer. Milhares de mosquitos pousaram na tela do televisor,
pontilhando e bloqueando a imagem, compondo cena no mínimo engraçada. Mas
ninguém parecia se incomodar, permanecendo com os olhares bovinos na direção do
vidro iluminado e coalhado de mosquitos.
Na manhã seguinte, após a ducha fria, fiz ginástica e
alongamento básico na proa do piso de lazer, respirando o ar fresco e puro do
Purus.
Ainda completamente escuro, o comandante do turno da
embarcação, vez ou outra, acendia o holofote da proa para varrer de luz a
frente e as laterais, na busca de possíveis obstáculos nas águas.
Esperei o amanhecer e o minguado café da manhã reduzido à
bolacha e macaxeira, já que o pão desaparecera nos primeiros dias. Nem para
adquiri-lo na longa parada em Lábrea o tal dono e senhor de tudo prestou.
Amanheceu em território do município de Pauini. E o
assanhamento foi geral na maioria dos passageiros que desembarcaria na cidade.
Muitos deles já desatavam as redes e começavam a guardar as tralhas. Vestiam as
melhores roupas, ajeitavam os cabelos, se perfumavam todos, a fim de
desembarcar do modo mais alinhado possível. A cada minuto passado, a cada curva
do rio, se tentava adivinhar se faltava muito ou pouco.
Mais estreito, o Purus exibia extensas praias de um lado,
barrancos desmoronados de outro, arrastando galhos, troncos, árvores inteiras,
para dentro das águas. Pescadores, em canoas a remo ou com motor rabeta, circulavam
e paravam para pescar com malhadeira ou tarrafa. As escolas dos vilarejos e
comunidades, diferentemente das azuladas de Lábrea, eram avermelhadas em
Pauini.
Em meio às expectativas à flor da pele pela chegada, alguém
ali da proa contou que a voadeira que trouxera a mulher do comandante a bordo,
saída de comunidade ribeirinha pela madrugada, fora puxada por enorme sucuri,
apavorando os da embarcação. Não se sabia como nem porque, mas reproduziam a
estória de boca em boca, passageiro a passageiro.
Doei O Ateneu,
de Raul Pompeia, à passageira embarcada em Lábrea e que mostrara interesse
pelas leituras. Torcia para que ela tivesse paciência e encontrasse a sintonia
conveniente com o estilo do autor. Antes conversáramos bastante sobre assuntos
variados, entre os quais as constantes dores de cabeça que ela sofria, sendo
obrigada a intervenções cirúrgicas delicadas. Ainda não se livrara inteiramente
dos sintomas, falhava a visão vez ou outra pelos excessos, mas acreditava que o
pior passara. Iria se encontrar com o namorado em Pauini e, assim como os
demais, ansiava pela chegada.
O barco encostou ao meio do dia na cidade de Pauini, em
pleno lamaçal. Um pouco ressecado pelo sol dos últimos dias, mas lamaçal.
Passageiros e cargas teriam que superar aquele trecho de uma cidade fluvial
despreparada para receber embarcações.
Noventa e nove por cento do barco desembarcou. Os que
sobraram, eu no meio, aguardavam as orientações do prosseguimento da viagem. O
dono e senhor de tudo tinha sumido, sem dar quaisquer satisfações aos
passageiros que seguiriam até Boca do Acre.
Eu e outro passageiro a trabalho desembarcamos. Comemos
comida caseira na frente de uma casa situada na rua que desembocava no rio. Aproveitamos
para encomendar ali mesmo caldeirada de tambaqui para o jantar. Depois subimos
a ladeira asfaltada rumo à cidade alta. Ele foi trabalhar. Eu circulei sob o
sol de rachar mamona. A Pauini de baixo, mais interessante, com casas velhas de
madeira, se ligava à de cima via rampas asfaltadas ou pela escadaria de cento e
trinta e cinco degraus. Na parte alta, casas e comércio sem graça, mas em
crescimento e expansão. A pista de pouso se localizava no meio, entre as casas.
Os moradores cruzavam a pista a pé, em bicicleta ou de moto. Semanas antes, um
avião pousando decepou a cabeça de um motoqueiro que atravessava o local indevidamente.
Dei pequenas e preguiçosas voltas pelas partes alta e
baixa, tomei toneladas de líquidos e retornei ao barco aguardando orientações. Leituras
e enrolação no piso de lazer do barco, agora esvaziado de passageiros. E nada
do dono se manifestar.
continua...
Estou rindo sozinha, do picadinho de carne de gado, preparado de uma parte indefinida do gado.Acredito, que por um certo tempo não vai nem querer provar picadinho de carne bovina...mas, virão outras viagens...a fome chegará e, desejo que o dito picadinho seja apetitoso.
ResponderExcluirEm todos os lugares encontramos pessoas que ainda não estão cientes da necessidade de preservarmos nosso meio ambiente, como descreveu, os copos descartáveis jogados no leito do rio. Presenciamos todo dia em nossas cidades os lixos acumulados ou soltos nos riachos, nas praia, nas ruas... os desmatamentos indevidos, etc. Depois as consequências, enxurradas, desmoronamentos, erosão e por ai vai...e a solução inicia dentro de nossa casa: - Educação! Conscientizar nossa família que é SOS preservar nosso meio ambiente. Abraços. Continuo Purus acima.
Oi Ivete!!!
ResponderExcluirConcordo com o picadinho, antes e depois rssss.
E também com as consequências danosas se não interagirmos harmonicamente com a natureza. Afinal, fazemos parte de um mesmo sistema. Ninguém domina ninguém. Um lado precisa do outro.
Creio que se não mudarmos a relação predatória, de exploração, entre os seres humanos, jamais mudaremos a relação predatória entre os seres humanos e a natureza.
Educação ambiental sempre!
Abraços!