Considerando a variação do nível das águas do Purus
durante o ano, minhas chances se comprimiam entre os meses de dezembro e abril.
Pelo menos de percorrê-lo da foz no rio Solimões até a cidade de Boca do Acre,
final das linhas de barcos de passageiros que partiam de Manaus. Optei por
abril.
No dia da partida, saltei da cama ainda no escuro. Empurrei
dois pães com manteiga na padaria, ajudados pelo copo de iogurte batido com
leite.
Metrô até a estação Tatuapé, de onde peguei ônibus comum
ao aeroporto de Cumbica, em Guarulhos.
O avião partiu quase lotado naquele início de abril, me deixando em Manaus sob o sol tipicamente manauara.
Após encher o bucho perto do hotel, encarei a caminhada
até a Escadaria, o vibrante porto de Manaus na beira do rio Negro, cujas águas
batiam na murada da rua do mercado.
Não avistei o barco que me levaria pelo rio Purus.
Pergunta daqui, fuça dali, fiquei sabendo que o dito cujo estava parado e
esperando socorro mecânico na distante cidade de Pauini.
Subi e me informei por curiosidade no barco batizado com um
nome ameaçador, fundamentalista e evangélico, que sairia em sete dias com
destino a Carauari, no rio Juruá.
À noite, dei volta curta pelo entorno do teatro Amazonas,
a praça de São Sebastião, tudo arrumado, limpo, iluminação charmosa, calçamento
antigo, música ao vivo nos bares da praça, especialmente no lendário e sempre
cheio bar do Armando.
Pela manhã, comprei passagem para a cidade de Codajás, em
lancha que partiria bem cedo no dia seguinte. Tudo para enrolar o tempo e
pensar melhor. E isso bem longe de Manaus, a cinzenta e tórrida Manaus.
Como a opção Purus parecia inviável, por via das dúvidas,
reservei lugar no barco com o tétrico nome fundamentalista, rumo a Carauari. Acabei
fechando a ida e a volta ao saber que eu poderia permanecer no camarote, com
cama de casal, banheiro privativo e ar condicionado, durante os dias previstos
de parada no porto de Carauari.
A cidade de Manaus, a despeito da esquizofrenia dos
preparativos para a Copa do Mundo do ano seguinte, com construção e reforma de
estádio e aeroporto, entre outras obras desnecessárias, continuava a mesma para
a maioria da população. Feia, suja, tórrida, entupida de lixo, concreto e
asfalto, com quase nenhuma árvore nas ruas ou áreas verdes, em plena floresta amazônica.
Na verdade, a floresta era devastada e empurrada cada vez para mais longe dos
moradores.
Acordei muito cedo para pegar a lancha para Codajás na
beira do rio Negro.
Despachei a bagagem na plataforma atendida por
funcionários uniformizados, atenciosos e prestativos.
A confortável lancha partiu às 7h, comportando duzentos e
cinquenta passageiros ou mais, amplo corredor central separando as fileiras de
três assentos numerados de cada lado. Nem bem a lancha partiu, iniciou a
exibição de filmes, um após o outro, nas dezenas de televisores de tela plana
distribuídos em ambos os lados das fileiras.
Enquanto o piloto, impecavelmente uniformizado de branco, cortava
caminho pelos furos na floresta graças às cheias dos rios Negro e Solimões,
começou a tortura de um filme estadunidense, chamado Argo, pura propaganda imperialista. A maioria dos passageiros
ignorava solenemente o lixo comercial nos televisores, dormindo ou conversando,
sentada ou em pé.
Já nas águas do Solimões, do qual mal se viam as margens,
de terra firme ou de ilhas, a fome resolveu aparecer. Aguentei firme, certo do
almoço incluído no valor da passagem a ser servido antes da parada em Codajás,
conforme informação na bilheteria quando da compra da passagem.
Sem intervalos, após o fim do lixo terrorista, os
televisores exibiram um musical baseado no romance Os Miseráveis. Pavoroso como qualquer musical.
Antes do meio-dia foi servido o almoço sobre a mesinha
dobrável à frente do assento, similar aos tempos em que serviam comida nos aviões.
Veio bife no molho de tomate, arroz, farofa, batata com maionese, bombom de
sobremesa, regado a refrigerante regional de guaraná.
Vez ou outra eu circulava pelos interiores da lancha. A
discreta proa abrigava o piloto e mais um assento alongado onde sentavam tripulantes
ou passageiros ávidos por contar e ouvir as novidades. Na popa, separada por
uma porta de vidro, ficavam quatro banheiros, a cozinha, a copa, o barzinho
vendendo comes e bebes. Na extremidade traseira da embarcação, uma área
ventilada para fumantes e apreensivos em geral. Tudo muito limpo e em perfeita
ordem.
A paisagem alagada prosseguia em ambos os lados do rio.
Por duas vezes a lancha parou os motores, ou reduziu acentuadamente a
velocidade, para facilitar o embarque de quem vinha de uma das distantes
margens do Solimões.
Desembarquei em Codajás no meio do dia. A lancha imediatamente
desatracou, seguindo para as cidades de Coari e Tefé.
Já na rua da cidadezinha, caminhei até o hotel, de frente
para as águas do Solimões.
A primeira impressão de Codajás foi de uma cidade pequena,
pacata, feia, abandonada pelas administrações públicas, inacabada, com obras
parcial ou totalmente paralisadas, mato crescido na praça, construções de
madeira em ruínas na beira do Solimões. Por outro lado, me pareceu acolhedora,
com povo simpático que procurava me cumprimentar.
Saí para jantar no começo da noite. O único restaurante
que notei nas imediações do hotel não tinha mais comida. Improvisei sanduíche regado
a suco substancioso de cupuaçu.
As ruas centrais se alegravam com muita gente, como
normalmente ocorre à noite em cidadezinhas quentes. Poucos automóveis e
bicicletas, muitas motos para cima e para baixo, com uma, duas, três, quatro ou
mesmo cinco pessoas em cima, e sem qualquer tipo de proteção, para a cabeça ou
resto do corpo.
Meninas vestidas para matar, usando maquiagem carregada e
saltos altíssimos, perambulavam em duplas, com os respectivos, em grupos.
Praticamente todas, assim como os e as acompanhantes, muito jovens. Tipos
físicos indígenas, com cabelos lisos e pretos, olhos amendoados, evidenciavam
que Codajás fora construída em cima dos territórios dos povos originários da
Amazônia.
Os raros carros vomitavam som em volume desumano. Os
estacionados ao lado das calçadas, rodeados de turminhas, deixavam rastro de
latinhas e garrafas de cerveja, pelas ruas, calçadas. E pelas demais ruas da
cidade, mais lixo, largado pela população e não recolhido.
Os poucos quiosques erguidos na calçada da orla, servindo
comes e bebes, principalmente bebes, exibiam apresentações musicais pelos
televisores aos gatos pingados ocupando as mesas de plástico dispostas num
resto de praça da rua principal.
Mas o que realmente massacraria durante a noite e a madrugada
era a casa noturna sobre o flutuante em frente ao hotel. O volume ensurdecedor,
os graves vibrando pelas paredes e pisos do quarto, certamente poriam em risco
um sono minimamente recuperador.
Barcos de passageiros e balsas de carga subiam e desciam a
“avenida” Solimões. Apitavam na chegada e na partida. Desembarcavam e embarcavam
passageiros, encomendas, cargas das mais variadas. Era um espetáculo de vida
pulsante, digno de ver. O animador da danceteria perto do hotel saudava ao
microfone os barcos e os passageiros, à medida que passavam em frente à casa
noturna. E gritava “vamos desejar boa viagem ao Rei Davi”, “vamos dar viva ao Silva
Neto III”, “vamos saudar o Maresias
VII”, e assim por diante.
Pela manhã, andei a esmo, a oeste e norte da cidade. Não
encontrei nada além de descaso com a população. Ruas esburacadas ou enlameadas com
esgoto a céu aberto, casas e casebres precários, lixo acumulado, urubus
pairando e pousando, absolutos. Aspecto geral de abandono e sensação de
inexistência de qualquer tipo de serviço público.
Será que Codajás também fora sorteada com a prática
costumeira por aqueles interiores nos quais o prefeito sequer reside na cidade,
torrando o dinheiro da arrecadação municipal e dos repasses estadual e federal
em paraísos distantes?
Ao lado disso, e talvez aliado a isso, o comércio
evangélico ia às mil maravilhas em Codajás, com filias por todos os cantos da
cidade, alienando mentes e posses dos clientes. Se não dentro das empresas do
fundamentalismo, era pelas ruas, onde grupos de homens e mulheres, vestidos
medievalmente, usavam e abusavam da coação, de casa em casa, para sequestrar
mente e dinheiro, engordando ainda mais os cofres dessas corporações
evangélicas.
Daí a passividade e a resignação da maioria, ambas com
matizes religiosos, diante do descalabro social e político no município. A
minoria que lucrava com essa triste situação estava rindo à toa.
Reencontrei dois topógrafos, também hóspedes no hotel,
também sem fazer nada, somente aguardando a liberação do início de obra civil nas
imediações. Já almoçados, levantamos as opções de atividades para a parte da
tarde.
Me lembrei da enorme caixa de isopor no flutuante do porto
fluvial, lotada do creme de açaí para ser vendido aos passageiros das dezenas
de embarcações que atracavam por ali. Chamei os dois colegas. Três pessoas
avaliariam melhor a qualidade da mercadoria. Comprei um litro de açaí dentro
dos tradicionais sacos plásticos transparentes, mais um quilo de açúcar no
mercadinho em frente.
Já no quarto do hotel, detonei em cinco minutos a iguaria adoçada.
Delícia das delícias! Completamente diferente e muito mais saborosa que a
maçaroca congelada e adoçada com xarope vendida nas cidades brasileiras.
A barulheira da danceteria, funcionando catastroficamente
entre o hotel e as águas do Solimões, prometia repetir a dose naquela noite.
Choveu bastante antes de amanhecer. Clareou com o céu
totalmente nublado. As ruas, esburacadas e já sem a maior parte da frágil
película asfáltica, se tornaram enlameadas e intransponíveis em certos trechos.
Pobres codajaenses.
Circulei a pé sem rumo pelos setores mais a leste do
centro. Algumas escolas de bom aspecto externo. Muitos urubus voando e pousando
nos telhados, calçadas e ruas. Lixo acumulado, lama fétida dos esgotos a céu
aberto. Casebres de madeira, alguns erguidos suspensos do solo, alguns pintados
de cores vivas, alguns dando a impressão de moradias simples e dignas.
Finalmente uma noite durante a semana, noite silenciosa na
cidade. Maravilha para relaxar, ler, dormir. Devia ser sempre assim.
Na manhã seguinte, depois do café da manhã, adquiri um
litro de açaí em outro fornecedor. Três rapazes na garagem aberta de uma casa tinham
acabado de centrifugar a fruta colhida pela madrugada. Chegando ao hotel, adocei
e mandei ver. Em minutos não sobrava mais nada, além de um prazer
incomensurável pela degustação daquela delícia amazônica.
Me despedi dos colegas. Embarquei no meio do dia em lancha
bem menor e menos confortável que a da ida. Lembrava as lanchas antigas a jato
que eu viajara anos antes na rota entre Parintins, Juruti, Óbidos e Santarém.
Na lancha, os televisores exibiam o final do filme do Van
Damme, festival de pancadaria como sempre, seguido de Diário de uma louca, propaganda evangélica disfarçada de
tragicomédia. Depois, o filme catástrofe Batalha
Naval, ridículo até não poder mais. Claro, todos os três filmes
provenientes daquele regime terrorista ao norte do México.
A paisagem externa mantinha o Solimões bem cheio, com zonas
alagadas, terrenos reduzidos pelo avanço das águas, casebres suspensos, inúmeras
canoas para se deslocar entre eles.
Acima da cidade de Manacapuru, notei um barco de
passageiros também descendo o Solimões. Logo foi alcançado e ultrapassado pela
maior velocidade da lancha. E não é que era o tão sonhado barco no qual eu
pretendia subir o rio Purus? O tão esperado barco que quebrara nas imediações
de Pauini. Esfreguei os olhos. Reli o nome escrito no casco de madeira. Era ele
mesmo.
Mas eu veria aquele barco novamente no porto de Manaus antes
da minha partida para Carauari daí a dois dias.
continua...
Otimo relato! Senti-me inserida.
ResponderExcluirOlá, obrigado pelo comentários.
ResponderExcluirFique à vontade para comentar esta e outras publicações de minhas viagens pelos interiores do Brasil e de outros países da América, Europa, Ásia.
Conto com sua visão crítica.
Abraços!
Caramba, viajei e senti os problemas da viagem junto contigo..você aqui, de certa forma, fez uma narrativa denúncia de como anda o Brasil por lá..feio hein...coragem não lhe faltou para continuar, qualidade parapoucos mediante as dificuldades e indiferenças... muuito bom..
ResponderExcluirObrigadão, Erotildes.
ResponderExcluirEu adoro viver e viajar pelo Brasil, mais que qualquer outro lugar no planeta.
Eu me sinto no dever, como cidadão deste país, de divulgar as belezas físicas, culturais, humanas, mas também as mazelas decorrentes de uma sistema injusto e opressor.
Ainda bem que também enxergou assim. Valeu pelo incentivo.
Abraços!
Ví por esse lado, que é o que sempre observo com maior destaque, adoro aventuras assim, amo fazer isso.. na impossibilidade, fico feliz quea alguém faça e eu possa ainda vivenciar, é como se eu estivesse ali junto..Obrigada
ResponderExcluirEu que agradeço seu carinho em ler e comentar.
ResponderExcluirAinda esta semana publicarei a segunda parte. Aguarde!
Viajantes,
ResponderExcluirvou ler atentamente este relato, estou planejando uma expedição fotográfica para novembro, abs, NIlson soares
Oi Nilson, obrigado pela visita e pelo comentário.
ResponderExcluirFique à vontade, leia, pesquise, compartilhe, comente.
Além dessa viagem, publiquei diversos outros relatos pelos vários rios da Amazônia.
Depois me diga o que achou e se eu o auxiliei no seu planejamento.
Abraços!
Aqui em Manaus, o açaí proveniente por Codajás é tido como melhor do estado. Certamente é. O problema é que todo mundo agora vende o açaí dizendo: "Açaí de Codajás" hahaha
ResponderExcluirAinda bem que é difícil estragar o suco do fruto, exceto quando eles põem nas máquinas para serem vendidos em academias e "xópis".
Oi Jafé,
ResponderExcluirÉ o mesmo que acontece por aqui com o "legítimo" queijo de Minas, o morango de Atibaia, a laranja-pera do Rio, ostra de Cananeia, e por aí vai...
Pelo menos o saboroso açaí de Codajás compensava o abandono da cidade e dos moradores por tantas e corruptas administrações municipais.
Comente sempre....abraços!
Oiii bom dia eu quero muito viajar de barco de Manaus para o Acre vc poderia me dar mais informações de onde eu posso pegar essa embarcação? Em Manaus, mas em qual porto? Obrigada💖
ResponderExcluirOlá!
ExcluirObrigado pela visita.
Em Manaus procure o porto da Manaus moderna, ou como é mais conhecido, o porto da Escadaria.
Você vai encontrar várias balsas onde atracam as embarcações.
Pergunte de qual balsa partem os barcos do rio Purus, mais especificamente rumo à cidade de Boca do Acre.
Fique atenta porque a maioria dos barcos pelo Purus encerram a linha antes de Boca do Acre.
De Boca do Acre pegue ônibus até Rio Branco.
Nessa viagem acima eu descrevi em detalhes a rota de Manaus a Rio Branco.
Qualquer coisa me pergunte.
Abraços!