Ao lado do barco, o navio do PAI, Pronto Atendimento Itinerante,
do governo do Amazonas, atendendo a população em quase todas as modalidades de
serviços públicos, cartoriais, médicos, odontológicos, sociais, psicológicos,
jurídicos. Filas enormes se formavam ao lado do flutuante de acesso.
No final da tarde, o dono do barco, olhando para o
infinito, comendo as palavras, nem completando as frases, aos trancos e
barrancos, comunicou que talvez, nada certo ainda, seríamos transferidos para
um barco menor, partindo no dia seguinte para Boca do Acre. Alegou que, diante
da vazante acelerada do Purus, o barco correria riscos de encalhe ou acidentes
piores rio acima. E que, embora programado orginalmente para seguir viagem até
Boca do Acre, retornaria a Manaus de Pauini mesmo.
Eu e o colega fomos à caldeirada de tambaqui previamente encomendada
na rua perpendicular ao rio. Traçamos aquela delícia com direito a suor em
cascatas pelos cabelos, braços, rosto, peito, pernas. De vez em quando eu chacoalhava
os braços na esperança de o suor escorrer para o chão e eu poder continuar a
degustar aquela iguaria. Gastava dezenas de folhas de guardanapos para tentar
enxugar o suor empapado na testa, rosto, pescoço, nuca. Mas valeu e muito a
pena. Caldeiradas, e especialmente as de tambaqui, são pratos únicos da
culinária amazonense. O soberbo jantar renderia lembranças por muito tempo.
Retornamos ao barco com o corpo pegando fogo, no escuro, não
enxergando quase nada, nos equilibrando ao longo das tábuas alinhadas sobre a
lama ressecada, tomando todo o cuidado para não despencar de maduro.
Aguardei o suor e a quentura pelo corpo amenizar, ainda
que parcialmente, para tomar um banho frio. Pouco adiantou. A sauna do camarote
me provocou mais ondas de transpiração e fusão pelo corpo todo.
O céu estupidamente estrelado ajudou a disfarçar o horror
visual da lama seca na beira da água em Pauini. A agitação dos passageiros dos
dias anteriores não existia mais. Algum ruído vindo de fora, de terra, de
eventuais barcos que encostavam e nada mais. Entrei no camarote parecendo um
forno de padaria. O ventilador era mesmo que nada.
Durante a noite toda, permaneci banhado de suor dentro da
fornalha do camarote sem ventilação natural. Desci ao banheiro contemplando o
vazio do piso superior, sem o mar de redes. Não havia água, nem na descarga,
nem no chuveiro, nem nas pias.
Nenhum movimento no barco ou nos demais atracados. Nada de
vento, nada de brisa. Conforme eu andava pelo piso superior e piso de lazer do
barco, me enroscava nas teias de aranha formadas da noite para o dia.
Ainda no escuro começou o movimento dos barcos menores,
carregadores, motos. A cidade amazônica de Pauini acordava cedo. O nascer do
sol encantou com a visão da curva do Purus bem defronte à cidade, destacando a
figura da imensa samaúma na margem oposta. E os motores rabetas anunciavam a
chegada de um novo dia.
A fila para o atendimento no navio do PAI se formou bem
cedo e imediatamente se alongou. O navio ainda permaneceria na cidade por mais
dez dias.
No meio da manhã, o dono e senhor de tudo do barco avisou.
Todos que seguiriam até Boca do Acre deveriam se mudar de mala e cuia para o
barco menor, cuja partida estava prevista para o meio do dia.
Este segundo barco possuía
dois pisos para redes, sendo que o debaixo também contava com a cozinha, a mesa
da copa, dois banheiros, camarote do dono e comandante, acesso ao motor e ao porão
de carga. No piso de cima, amplo espaço para as redes, o camarote da
tripulação, a cabine de comando e, na popa, pequena área livre e descoberta,
voltada para lazer, caixa d’água, lavagem e secagem de roupas.
Optei em me instalar no piso superior, mais ventilado,
mais espaçoso, mais distante dos ruídos, odores e calores do motor. Atei a
rede, estrategicamente guardada para emergências como aquela, bem atrás do
camarote da tripulação. De tecido leve e sintético, ela era menor e menos
confortável que as dos outros passageiros, de algodão, avarandadas, grandes e
macias.
Deu tempo de almoçar comida caseira no mesmo restaurante
do dia anterior. Me empanturrei de arroz, feijão, bife acebolado, salada. Tudo
bem preparado, bem temperado, bem saboroso.
No começo da tarde, o segundo e menor barco partiu de
Pauini, rio Purus acima, sob um céu azul e brilhante, com raras nuvens. O calor
abafava, mesmo com o movimento que trazia o vento refrescante.
Entre os passageiros, a maioria ficaria em Boca do Acre.
Os demais seguiriam para Rio Branco. Destes, eu ficaria lá, os outros ainda
pegariam ônibus para Cruzeiro do Sul, oeste do estado do Acre. Vinham de
mudança da cidade de Tabatinga, no alto Solimões, entupidos de bagagens e
esperanças de mudar de vida, para melhor.
O menor tamanho do barco, em comparação com o anterior,
simpatizava e alegrava a viagem. Ficava mais difícil, porém, fugir do sol,
sobretudo diante da infinidade de curvas do Purus, deixando o sol girar
completamente, por várias vezes, forçando os passageiros para lá e para cá, a
todo instante.
O grupo para Cruzeiro do Sul, nem bem o barco partiu,
começou a espalhar as coisas e comer sentado no chão do convés, emporcalhando
tudo. Depois se deitavam sobre o piso ainda com restos de comida, espalhando a
sujeira um pouquinho mais.
Após a longa parada em Pauini, era bom voltar à navegação
nas águas do Purus, se estreitando, vazando, expondo praias e barrancos cada
vez mais extensos e altos.
Tarde ensolarada, muito quente, colorida, luminosa,
realçando as cores da floresta, dos paus-mulatos castanho-avermelhados, das
moradias ribeirinhas acima da linha da vazante do rio.
Passageiros formaram mesa de baralho na parte descoberta
do piso superior e lutavam para se livrar da luz e do calor do sol. Assisti,
dei risadas, me entrosando, ajudando passar o tempo. Ou permanecia no banco da
proa, em frente à cabine de comando, alternando contemplações da paisagem, releituras
de Maíra, do Darcy Ribeiro, anotações
no diário de viagem.
O jantar veio de pratos feitos de arroz com frango
ensopado, em quantidade suficiente e de boa qualidade. Um dos dois únicos
tripulantes o preparou e dispôs os exatos vinte pratos sobre a mesa da copa.
Bastava pegar e comer. Com o prato na mão esquerda e a colher na direita, me
encostei à pilha de sacos de castanhas amazônicas. Bebi água gelada da garrafa
térmica e abasteci minha garrafinha para eventuais sedes durante a noite.
O silêncio logo baixou sobre o barco. Entrei cedo na rede.
Tive que apagar a lâmpada bem acima da minha cabeça. O enxame de mosquitos ao
redor da luz e da minha rede perturbava demais da conta. A paz voltou com o
escuro. Fiquei quietinho e não demorei a adormecer.
Até que dormi bem, considerando a rede pequena e
escorregadia pelo tipo de tecido, sem o lençol providencial para o frescor da
madrugada que todos usavam. Acordei no escuro para a ducha fria e providencial em
banheiro mais limpo, espaçoso e funcional que os do primeiro barco.
Retornei à rede quando começava clarear. O barco parou no
meio do rio aguardando a voadeira que trazia um ribeirinho para palestrar com o
comandante. Ao desligar o motor e o barco parar sobre as águas, nas imediações
da comunidade do Tabocal, aconteceu o ataque. O exército, a marinha e a aeronáutica
de milhares de famintos carapanãs nos sufocaram sem tréguas. A ausência de
brisa ou vento deu-lhes garantias para nos massacrar impiedosamente. Eu me defendia
me escondendo dentro da rede ou agitando-a para tentar, em vão, espantá-los.
Não funcionou. Fugi da rede e me sentei na proa, ao lado do comando do barco. O
massacre dos carapanãs amenizou ligeiramente.
Somente quando os motores retornaram à atividade e o barco
passou a deslizar Purus acima é que nos livramos definitivamente dos carapanãs
sedentos de sangue.
As praias mais extensas e mais largas, os barrancos mais
altos, espremiam as águas espelhadas do Purus. A névoa cobria as copas das
árvores e formava véus sobre a superfície do rio.
O café da manhã disfarçou a fome com café e leite já
misturados na garrafa térmica, bolachas secas e quebradas, margarina. O sol já
brilhava nas árvores, praias, águas do Purus. E estava quente, bem quente
àquela hora do começo da manhã.
Se de uma das margens, barrancos altos e desmoronados
evidenciavam o constante redesenho do curso do rio, na margem oposta, o
afloramento e aumento das praias propiciava condições para os ribeirinhos
cultivarem feijão, abóbora, melancia, melão, colhendo durante o verão
amazônico. Os ribeirinhos deixavam as canoas na beira da água e semeavam as
praias, em atividade harmônica com os ciclos da natureza. Procedimentos
sustentáveis havia séculos, ou milênios no caso dos povos indígenas, muito
tempo antes dos especialistas de gabinete “inventarem” o termo “sustentável”.
Também nas praias, tracajás, tartarugas e demais
quelônios, desovariam para procriar durante a seca. Socós brancos se agrupavam nas
praias e bocas dos igarapés para pescar peixes desavisados. Botos rosados,
enormes, se exibiam de quando em vez.
Uma senhora do grupo de mudança de Tabatinga para Cruzeiro
do Sul, talvez a líder da empreitada, não parava de fumar. Fumava em todos os
lugares do barco, a todo instante, inclusive próximo às redes, mais
especificamente ao lado da minha que era feita de material altamente inflamável.
Me cansei de lhe chamar a atenção. Em vão. Algo não funcionava direito naquela
senhora e no grupo como um todo. Pareciam boas pessoas, mas excessivamente
broncas e embrutecidas pela vida.
A passageira que ficaria em Boca do Acre, acompanhada da
filha pequena, também fumava sem parar, se queixando do calor. Cheinha, com cara
de enfado e os peitões quase de fora, repreendia a filha, impedindo-a de fazer
isso ou aquilo. Mas falava tão sem convicção que a filhota nem ligava ou simplesmente
olhava para a mãe fumante, continuando a fazer o que estava fazendo, sem mudar
nada. A filhotinha se juntava com a outra da mesma idade, do grupo dos
retirantes, arteira como ela. E, aflitas pela monotonia da viagem, se punham a
pentelhar quem passasse pela frente, a pular, agarrar, gritar. E eu fantasiava
lançá-las às sucuris do Purus.
Almoço com o cardápio do jantar anterior e a mesma disposição
dos vinte pratos feitos sobre a mesa da copa. Escolhi a mesma pilha de sacos de
castanhas da Amazônia para me encostar e comer. E reforcei a refeição com o
resto de castanhas, frutas secas e dois queijinhos que sobraram da minha
provisão suplementar.
Logo depois, passamos em frente à boca do igarapé do
Mapiá, margem esquerda do Purus. Subindo de canoa o tal curso d’água, se chegaria
ao Céu do Mapiá, sede da seita do Santo Daime, que pegou fama por conta das
celebridades e endinheirados entre os membros. E, sobretudo, pelo chá
alucinógeno preparado a partir de cipó específico, tomado regularmente pelos
seguidores e simpatizantes. Dez anos antes, ao desembarcar em Boca do Acre,
vindo de ônibus de Rio Branco, muitos me perguntavam nas ruas se eu ia para o
Mapiá, certos de que eu vinha pela seita e pelo chá.
Mais acima, o Purus fez curva de cento e oitenta graus,
invertendo o sol da popa para bater em cheio na proa, justamente onde eu
relaxava no banco em frente da cabine de comando. Tive que sair às pressas para
não entrar em fusão ou combustão espontânea.
Mais curvas fechadas, mais praias, menos volume de água,
menor profundidade do rio. E, mais próximas ambas as margens do Purus, mais
central o rumo do barco, mantendo certa equidistância das praias, ao contrário
de a jusante de Lábrea, quando, com o rio cheio, os trechos de praias alagadas
eram os procurados para navegar, evitando as imediações dos igapós onde a
correnteza era maior, desfavorável para quem sobe o rio.
Numa sequência interminável de curvas em “S”, em “U”, em ferradura, atingimos a traiçoeira praia em curva da
Curitiba, rasa, com bancos de areia e tocos dentro d’água decorrentes de
desmoronamentos e quedas de árvores dos barrancos da concavidade da curva. O
comandante reduziu a força do motor e redobrou a atenção. Ao fim do perigo,
retomou a velocidade costumeira do motor e tocou em frente com vontade,
sinalizando que o pior ficara para trás. Mas as curvas, fechadas e acompanhadas
de praias, continuaram a aparecer rio acima.
Notei maior número de embarcações descendo o rio, lanchas
com um ou dois passageiros inclusive. Seriam ilustres membros, simpatizantes ou
curiosos a caminho das alucinações do Santo Daime no Céu do Mapiá?
Comunidades despontavam nas terras mais altas. E aumentou
a presença de fazendas, casas, embarcações navegando ou atracadas, crescendo as
intervenções danosas à natureza, anunciando a aproximação de cidade. E cidade
com conexão rodoviária, como Boca do Acre, o que era bem pior.
Pequena tensão ao ultrapassar outra curva acentuada em
frente à comunidade de Valparaíso, se deparando com os mesmos problemas
inerentes às curvas anteriores, só que agravada pela infinidade de canoas e
voadeiras de pescadores, mais outro barco de passageiros. Ficou arriscado
ultrapassar trecho tão estreito e congestionado. O comandante reduziu a
velocidade ao mínimo para superar os problemas sem sustos. Meia hora depois,
retomando a velocidade máxima, superávamos ilesos os obstáculos naturais e
humanos.
Anoiteceu em meio à procissão de voadeiras, canoas,
barcos, lanchas, descendo o Purus. Não vi mais nada até o desembarque à noite no
porto flutuante de Boca do Acre, localizado na margem direita do rio Acre e
próximo à foz, a famosa boca, na margem direita do Purus.
continua...
Há tanta coisa bonita...mas a mais importante é a atuação do Navio PAI, na embarcação são oferecidos serviços básicos de cidadania aos moradores destas longínquas regiões tais como, atendimento médico, odontológico, oftalmologia, encaminhamento para aposentadoria, registro de nascimento, entre outros importantes serviços. Creio que realmente seja eficiente, porque no Brasil sempre há a dúvida, alguém sempre tenta levar uma vantagem. Estes projetos sociais são sempre viáveis no papel, quando colocados em práticas, sempre deixam à desejar, torço para que os ribeirinhos tenham realmente atendimento digno de um ser humano.
ResponderExcluirTirando o calor excessivo e o ataque mortal das Forças Armadas dos famintos carapanãs, que por pouco não sugam todo seu sangue...rsrsrs,a caldeirada de tambaqui, valeu por todos os desconfortos ocorridos na viagem.
Oi Ivete!
ResponderExcluirFico imaginando os tempos em que não havia o PAI, mesmo com as limitações e deficiências de hoje em dia.
Barcos de passageiros demoram entre oito e dez dias para atingir a cidade de Pauini, partindo de Manaus. Mas o navio do PAI, maior, mais lento e com mais e demoradas paradas no atendimento às cidades e às comunidades pelo caminho, leva muito mais tempo para chegar e dar o atendimento tão esperado.
De qualquer maneira, é fundamental para nós, brasileiros, saber como essas coisas funcionavam e funcionam.
Abraços!
olá brother blz ? tenho vontade de conhecer o Purus. qual o tempo de barco de boca do acre até mapiá? e de mapiá para manaus ?
ResponderExcluirOlá Raiozim! Obrigado pela atenção e comentários.
ResponderExcluirO melhor acesso ao Céu do Mapíá e por Boca do Acre. De Manaus até Boca do Acre seriam esses 12 dias de barco que eu percorri.
Que eu saiba não há barcos de linha entre Boca do Acre e Céu do Mapiá. Só embarcações fretadas ou lotações de membros da seita.
Qualquer coisa, não hesite em escrever.
Abraços!
Olá!
ResponderExcluirGostaria de ir de Manaus a Rio Branco e vi que vc fez o percurso de barco. Onde posso conseguir informações sobre este percurso? É possível ir de trem? E de ônibus? Existe uma viagem direta de barco? Quanto tempo demora?
Se puder me ajudar, agradeço muito.
Abraço,
Mayra
Oi Mayra, obrigado pelos comentários.
ResponderExcluirNão há linhas de trem ou ônibus entre Manaus e Rio Branco. A única via, exceto a aérea, cara e sem graça, é de barco de Manaus a Boca do Acre e desta cidade algumas horas de ônibus a Rio Branco.
O trecho de barco dura de dez a doze dias e somente no período das cheias do rio Purus, grosseiramente de dezembro a abril.
Apenas uma barco faz essa linha completa durante esse período e apenas uma vez por mês. Mais informações, no porto da Manaus Moderna, em Manaus se desejar subir o rio Purus, ou no porto de Boca do Acre se você pretender descer o rio.
Nessas seis partes desses relatos eu descrevo em detalhes como foi encontrar o barco desejado e o dia a dia dos doze dias de Manaus a Boca do Acre, rio Purus acima.
Qualquer coisa me pergunte...
Comente sempre!
Abraços.
Super obrigada!
ExcluirPor nada, Mayra. Quando precisar, me chame...
ResponderExcluirOlá, gostaria de saber quanto temoo de viagem de Pauini a boca do Acre e vice-versa.Pretendo trabalhar la
ResponderExcluirOi Dayanne!
ResponderExcluirObrigado pela visita.
O tempo de viagem entre as duas cidades vai depender da época do ano, do
nível das águas do rio Purus, e também do tipo de embarcação, da velocidade do motor, se navega durante a noite, etc. Além disso, tenha em conta que não há barcos diários ligando as duas localidades.
De qualquer maneira o trajeto ininterrupto se realiza em menos de 48 horas rio acima, de Pauini a Boca do Acre, e em menos de 24 horas rio abaixo.
Espero ter ajudado você. Qualquer coisa me pergunte.
Abraços!
Olá boa noite qual é o barco que posso pegar e onde em Manaus para o pauni? ???obrigada aguardo retorno
ResponderExcluirOi Josy, tudo bem?
ResponderExcluirO barco que peguei foi o Comandante Maia II. Na época era o único que fazia a linha desde Manaus até Boca do Acre, passando e parando em Pauini.
Espero ter ajudado.
Abraços!