Desembarquei em Manaus no final do entardecer.
Escabeche de tambaqui, precedido de caipirinha e sucedido
por suco de goiaba, compôs o meu jantar.
Dei voltas sem pretensões pelo largo de São Sebastião.
Nada a fazer, muito menos encarar no teatro Amazonas uma das apresentações
pertencente ao décimo sétimo festival de ópera, em cartaz em Manaus durante
dois meses.
Na manhã seguinte caminhei até a Escadaria, na margem do
rio Negro. Avistei o barco do Purus, atracado no fundo da mesma balsa do barco
com o funesto nome fundamentalista rumo a Carauari.
Passei direto pelo segundo e me aproximei devagarinho do
primeiro, em acelerado ritmo de descarga e carga. A próxima partida rumo a Boca
do Acre seria daí uma semana.
Fui ao barco cujo nome evangélico me dava calafrios, o do
rio Juruá. O comandante me comunicou que a partida, prevista para o dia
seguinte, atrasaria pelo menos dois dias. O motivo era que a carga, maior fonte
de lucros do barco, ainda não enchera o porão. Era a oportunidade que eu
esperava. Demonstrei contrariedade e cancelei a reserva para Carauari.
Voltei ao barco do Purus e avisei que viajaria nele.
Ou seja, em poucos minutos eu cancelava o confirmado e
confirmava o cancelado. Viajar pelos rios Purus, Juruá, Japurá, não era a mesma
coisa que pelos rios Solimões, Amazonas, Madeira. Podiam se confirmar datas que
posteriormente seriam alteradas. Daí a necessária elasticidade de datas de quem
deseja os percursos fluviais menos previsíveis.
Fazia calor em Manaus, calor de verdade. Porém, nem sombra
do calor pegajoso, sufocante, asfixiante, daquele setembro de três anos antes. À
noite, mesmo em movimento, caminhando, conseguia ficar sem transpirar em abril.
Tracei um tacacá caro no quiosque do largo de São
Sebastião.
Na manhã seguinte, aliviado pelas novidades promissoras,
tomei ônibus urbano até a Ponta Negra, bairro nobre de Manaus, com praia no rio
Negro e, outrora, botecos e quiosques mal frequentados, conforme relatei aqui em
minhas outras passagens pela capital amazonense.
Removeram os bares e barracas precárias à esquerda e à
direita do anfiteatro. Aterraram com areia o trecho que costumava sumir durante
as cheias naturais do rio, garantindo, pelas promessas dos construtores, praias
permanentes, o ano todo. Reurbanizaram o nível da avenida e o da beira da água.
E um extenso trecho ainda esperava pela segunda fase da revitalização.
Mesmo numa manhã vazia de dia de semana, para o local não
perder a forma de tempos atrás, uma baranga esbagaçada pela vida passou por mim
e perguntou “está sozinho?”, “fique com a gente”. Após leve piscada de olhos,
apontou o pedaço da praia artificial onde a colega dela, não menos pavorosa, se
aninhava na areia.
Estão esperando até agora.
Durante o longo trajeto de ônibus, na ida e na volta, um
perfil assustador de Manaus, escancarando o urbanismo estúpido, anti-amazônico
e anti-indígena, um festival de concreto, asfalto, feiura, sujeira, ausência de
árvores, praças e serviços públicos, entre outras mazelas típicas de metrópoles
de países dependentes ou neocolonizados.
Me dirigi ao porto da Escadaria, agora sob o sol escaldante
da tarde manauara. Mesmo assim, era infinitamente melhor que a praia artificial
da Ponta Negra.
O tão desejado barco que subiria o rio Purus embarcava
cargas e mais cargas, dos mais variados tipos, volumes e pesos. Reservei o
camarote situado no piso de lazer. Segundo o conferente, a viagem até Boca do
Acre poderia demorar onze dias, dez dias, doze dias. Dependeria da duração das
paradas para carga e principalmente descarga.
Retornei ao hotel feliz da vida pela maravilhosa
reviravolta da viagem.
A chuva começou no fim da tarde e não parou mais.
Eu ocupava minhas horas de preguiça no quarto do hotel
entre leituras e palavras cruzadas. Jamais me preocupei em escolher livros
compatíveis com o destino viajado. Uma coisa nada tinha a ver com a outra. Separei
O Ateneu, de Raul Pompeia, como o
primeiro a ser lido, no caso relido depois de décadas. Pelo menos a densidade
do texto e o estilo rebuscado do autor me impediriam de detoná-lo em curtíssimo
tempo.
À noite, pude ver o começo da cerimônia de casamento na igreja
de São Sebastião. A noiva entrou ao som de trombetas executando a manjada
marcha nupcial. Enquanto isso, no estacionamento ao redor do teatro Amazonas,
não cabia nem alfinete em razão de mais uma apresentação do décimo sétimo
festival de ópera de Manaus. O amazonense prestigiava o evento, por tradição,
por saudosismo do fatídico auge da borracha, ou, quem sabe, por gosto autêntico
pelo gênero.
Aos domingos ocorria a feira de artesanato na avenida
Eduardo Ribeiro. Seria mais uma daquelas “feirinhas” que pouco ou nada oferecem
de artesanato, comuns pelo Brasil e pelo mundo afora, voltadas quase
exclusivamente a turistas consumistas e desavisados. Mas aquela feira reservava
um diferencial positivo. Além das bugigangas inúteis de todos os comércios do
gênero, dezenas de barracas de alimentação serviam o elogiado café da manhã
regional. Os famintos ocupavam a infinidade de mesas e cadeiras. Entre as
opções disputadas, farofa de charque, queijos, tucumã, tapiocas, pães, sucos,
açaí, cuscuz, café, leite. E comiam e comiam muito. Parabéns aos manauaras e
demais amazonenses que degustavam produtos regionais, à moda regional.
De minha parte, já com o café bem tomado no hotel, me
restringi aos deliciosos bombons de chocolate, recheados de cupuaçu, açaí,
pupunha, buriti.
O tempo nublado com chuviscos se manteve durante todo o dia
seguinte, raramente dando tréguas.
Fui ao porto para verificar a partida do desejado barco do
Purus. Estava lá, no mesmo lugar, carregando sem parar. E ao lado dele, também
no mesmo lugar, o barco de nome fundamentalista e arrepiante, que iria para
Carauari e deveria ter partido vários dias antes.
As mulheres, pelo menos as notadas por onde passei, nessa
viagem e nas anteriores, quando queriam ser sensuais, atraentes, charmosas,
vestiam saias, vestidos, bermudas, calças, blusas, de cores berrantes, de
cortes, dimensões e formatos que exibiam até a alma das coitadas. Cabelos
indecentemente alisados pela ditadura dos padrões. Pinturas exageradas e
impróprias para o clima, tipos e cores de pele. E não se sentiam naturais ou à
vontade. Invariavelmente ajeitavam isso e aquilo, puxando e repuxando os
cabelos, esticando vestidos e saias para baixo, fazendo trejeitos artificiais.
Os casais regionais
andavam sempre de mãos dadas, em quaisquer situações. Jamais se descolavam. A
posse ostensiva evidenciava quem mandava e quem era mandado na relação. Ao se
sentarem, em bares, restaurantes e afins, jamais ficavam um de frente para o
outro, mas sempre lado a lado, com o homem enlaçando a mulher firmemente para
desencorajar possíveis concorrentes.
Deixei o hotel pela manhã. De mochila nas costas, cruzei a
avenida Getúlio Vargas, desci toda a rua Joaquim Nabuco, até o começo, no posto
na beira do rio Negro e ao lado dos mercados.
Subi no barco rumo ao Purus. Depois de pegar a chave com o
conferente, assumi o camarote no piso de lazer. O piso principal se entupia de
cargas que mal deu para passar com a mochila. O piso principal lotava de redes
atadas.
Fazia muito calor nas dependências do barco. Não ventava e
o ar abafava. Permaneci sob a sombra do piso de lazer, em frente ao bar
fechado. Li artigos da revista Caros
Amigos. Um pós-adolescente subia ali de cinco em cinco minutos e sempre
reclamava do atraso da partida, embora faltasse muito tempo para o horário programado.
Um técnico em vedações aproveitava para impermeabilizar cantinhos vulneráveis
do piso e tetos. Entre uma pincelada e outra, falava bastante, se gabando de
muitos serviços ali no porto e de ser bastante requisitado pelos proprietários
de barcos. E se metia na conversa entre quatro mulheres ao lado que debatiam a
infidelidade nas relações, ficando de olho na que afirmava que já fora muito
safada e que agora resolvera entrar na linha. Pelo olhar e interesse dele, a
tal regenerada contava somente lorotas.
Pequena canoa encostou à esquerda do barco carregando uma
montanha de gelo protegido com lona. Com uma pá, os canoeiros enchiam latões
que seriam utilizados para refrigerar a comida e a água do reservatório
coletivo de água potável.
Após a partida do barco, no começo da tarde, ainda houve
redução dos motores para a fiscalização da Capitania dos Portos. Naquele mesmo
momento a Capitania fiscalizava o famigerado Clívia, barco que eu tivera o desprazer de experimentar sete anos
antes, com destino a Belém, disparado a pior embarcação que peguei em tantos
anos de viagens fluviais pela Amazônia. Pois aquele mesmo barco estava
navegando com a popa excessivamente rebaixada e pensa para o lado esquerdo. A
Capitania não liberou e obrigou o Clívia
a retornar ao porto. Muito bem feito!
O barco passou pelos mesmos furos, do Negro ao Solimões,
que as duas lanchas entre Codajás e Manaus, aproveitando a cheia dos rios. Mas
desta vez em menor velocidade, permitindo apreciar as comunidades das zonas
alagadas, construções suspensas, hortas, a pouca criação de animais.
Ao lado do camarote onde eu me instalara havia o banheiro
desativado, ocupado por tralhas mil, inclusive os produtos químicos abandonados
pelo técnico em vedações, gerando odores fortíssimos. O dono do barco me
sugeriu que eu mudasse para o camarote ao lado, mais distante dos maus cheiros.
Só que esse camarote estava lotado de carga até a tampa.
Tive que tirar minhas coisas já espalhadas e largá-las
mais adiante no piso externo de passagem entre os camarotes. O dono e mais dois
tripulantes iniciaram a transferência dos objetos entre os camarotes. A
operação demorou. Eram muitos itens para mudar. Eu só assistia e cuidava para
minhas coisas não despencarem nas águas. Depois de liberado, recoloquei todas
as minhas coisas sobre o colchão superior e me considerei mudado.
Exceto nos setores sem teto ou cobertura do barco, me era
impossível caminhar ou permanecer de pé sem ter que me curvar para não bater ou
encostar a cabeça. Tudo era muito baixo, áreas comuns, banheiros, corredores,
cobertura da área de lazer, copa, camarote, tudo. Era um alívio quando eu me
dirigia à parte descoberta do piso de lazer. Me alongava e me esticava todo,
mantinha a coluna ereta, olhava para frente com a cabeça erguida, ficava feliz
da vida.
Em um dos dois únicos banheiros masculinos do piso
superior, os canos que traziam a água para a descarga se soltavam
frequentemente pela forte pressão, ensopando o piso e não removendo a sujeira
do vaso sanitário. Tentei rejuntá-los manualmente, mas a pressão da água os
deslocava mais uma vez. Independente de alguém ter alertado os responsáveis, tratei
de botar a boca no trombone. A ducha do banho, porém, enxaguava com bastante
água, puxada do próprio rio quando o barco estava com o motor ligado.
Servido na mesa de refeições na popa do piso superior, o
jantar veio de curimatã frito, baião-de-dois e farinha. As enormes tigelas
colocadas sobre a mesa matariam a fome de qualquer cidadão. O limite de pessoas
sentadas formava levas de passageiros, uma atrás da outra.
Após a refeição, uns poucos despejaram os olhares bovinos
na direção do televisor do piso de lazer, a fim de receber mais uma dose diária
de embrutecimento, enquanto a maioria se alojou nas redes ou nos camarotes.
A principal diferença entre barcos que sobem o rio e os
que baixam é que os primeiros evitam o canal, economizando combustível e força
do motor, obtendo maior rendimento. Já os segundos procuram justamente esse
canal, buscando a mesma economia e o mesmo desempenho.
Os barcos que sobem demoram mais tempo, às vezes muito
mais tempo, que os que baixam o mesmo percurso. Navegar contra a corrente,
obviamente, é um dos motivos. Além disso, no caso do estado do Amazonas, a
maioria dos barcos carrega muita carga na subida dos rios, ou seja, de Manaus
para os interiores dependentes em quase tudo, pois pouco ou nada produzem. Daí
barcos mais pesados e, portanto, mais lentos. E, sendo mais carregados, se
demoram mais durante as descargas.
E o nosso barco subia as águas do Solimões encostado na
marquem esquerda. E, de tão próximo dela, dava para ver os interiores das
esparsas casas dos ribeirinhos.
Dormi mal, transpirando demais dentro do camarote. O
ventilador, deslocando o ar quente de lugar, nada refrescou. Nem amanhecera
quando desci e tomei banho, frio obviamente, para tirar o suor empapado.
Aguardei o café da manhã na base de pão já recheado de
margarina, bolacha, café e leite separados e previamente adoçados em imensas
garrafas térmicas.
Amanheceu ainda sobre as águas do rio Solimões. Pequenas
comunidades despontavam pela proximidade da margem esquerda. Em todas elas, o
templo fundamentalista evangélico.
Atingimos a boca do Purus ainda pela manhã. Bastou
entrarmos naquelas águas também barrentas para começarem a aparecer moradias e
comércios flutuantes, construções típicas desse trecho do rio, conforme eu já
relatara na baixada de dez anos antes.
Na opção flutuante ou em palafitas, ambas derivadas da
sabedoria secular ou milenar dos ribeirinhos e indígenas, as moradias contavam
com a casa de farinha ligeiramente afastada. Mulheres e homens descascavam,
limpavam, moíam, torravam a mandioca para a fabricação artesanal da farinha, em
grãos grossos como era apreciada no norte do Brasil.
Semelhante à juta e crescida na zona alagável do rio, a
malva era cortada, desfiada, pendurada ao sol para secar. Depois, vendida como
matéria prima para cordas e sacos.
Passamos sem parar ao lado da cidade de Beruri.
E desci, mesmo sem fome, ao almoço. As grandes tigelas
traziam salada mista picada, arroz, feijão, macarrão, frango cozido no molho,
os vasilhames de farinha de mandioca, o caldo de pimenta. Na garrafa térmica,
suco artificial de caju. De talheres, independente do tipo de comida, somente
colher.
A maioria dos passageiros, contudo, não comia na mesa
esperando a vez, mas pegava a comida em vasilhas diretamente na cozinha do piso
principal, escada abaixo.
continua...
Oi Augusto,
ResponderExcluirObrigada pela visita ao meu bloguito :-)
Meu marido e eu adoramos nossa visita a Islandia, e ficou gostinho de quero mais - devido a uma tempestade de neve, nao conseguimos seguir o roteiro que havíamos planejado e tivemos que improvisar no meio do caminho. Mas é um país lindo, cheio de paisagens únicas, e tenho certeza que você vai adorar :-)
Grande abraco,
Angie, do Joaninha Bacana
Maravilha, Joaninha, lerei com carinho o dia a dia da viagem.
ResponderExcluirE vocês fiquem à vontade de pesquisar e comentar os relatos de minhas viagens pelos interiores do Brasil e de outros países.
Estes, de minha última incursão ao rio Purus, estão dando o que falar...
Abraços!
Oi!
ResponderExcluirFico aqui, lendo e imaginando a grande aventura de viajar pelos rios da Amazônia.Deves ter visto tanta coisa bonita, como também vivido o que é a vida dos ribeirinhos. Imagina eu reclamando dos buracos do asfalto das ruas de Santa Maria, agora é só comparar a minha facilidade de transporte, a acessibilidade a tudo, com a vida dos pequenos vilarejos, incrustados na floresta, chega ser desumana. Desculpe, mas sou pobre em comentários. mas continuo viajando...abraços.
Você não é pobre em comentários, não, Ivete. Pelo contrário. Assim como expus nesses relatos meu olhar diante do que vi e senti, você os avalia de acordo com suas vivências e experiências de vida.
ResponderExcluirNossas subjetividades enriquecem demais tudo ao nosso redor.
Comente sempre!
Abraços!
Boa tarde Viajante! Meu nome é Miguel, sou do Rio de Janeiro e pretendo fazer uma viagem da cidade de Lábrea, AM, até Manaus, AM, através do Rio Purus, ou seja, de barco. Lendo sua trajetória pelo Rio Purus, verifiquei que temos que ter uma gordura de tempo pra viajar pelo Rio Purus, pois acontecimentos diversos podem alterar as programações de viagem. Gostaria muito de sua ajuda, quanto a obtenção dos dias de saídas dos barcos, saíndo de Lábrea para Manaus. Só preciso saber dos dias de saída mesmo, pois o tempo que pode levar a viagem não conta muito. Precisamos nos programar com a compra de passagens aéreas de Manaus/Rio. Caso eu não saiba os dias de saída dos barcos de Lábrea, não saberei quando chegarei em Manaus e com isso não saberei pra quando comprar a passagem de volta.
ResponderExcluirCoaduno com a frase abaixo: "É melhor se arrepender de ter feito do que de não ter feito"
Desde já, agradeço a oportunidade de falar com vc por aqui.
Abs
Miguel (e-mail: miguel.c2007@gmail.com)
Oi Miguel, obrigado pela visita e pelo comentário!
ResponderExcluirPois é, aí é que está o problema. Saber a duração da viagem é mais fácil do que a data da saída de ambas as pontas.
Como você vai baixar de Lábrea e não de Boca do Acre, terá mais chances de viajar (quase) o ano inteiro, mesmo quando as águas do Purus baixam muito na estação seca, e por mais de um barco para escolher. Passarei via correio eletrônico os telefones de uma das empresas que conta com dois barcos. Assim saberá com eles quais as datas (mais ou menos) exatas das saídas.
Um grande abraço e comente sempre.