quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Uruguai e Argentina (parte 5/5)

...continuação
Na manhã seguinte, ao entrarmos no salão do café da manhã, encontramos o mesmo paulistano de vinte e poucos anos com quem trocáramos frases na manhã anterior. O indivíduo batia boca com a copeira que costumeiramente passava de mesa em mesa a fim de anotar o número do quarto dos hóspedes. Eis que o turista berrava histérico, nem em castelhano, nem em português, nem em inglês, que não daria o número do quarto porque isso geraria custos para a empresa onde ele alegava trabalhar. Por mais que a coitada da copeira insistisse que não, o desequilibrado repetia a ladainha em língua nenhuma. Inconformado por não convencê-la do raciocínio ilógico, se virou para um senhor sentado sozinho e apostou “Eu sei de onde você é. Deve ser do Mato Grosso”. E o senhor, de cabeça baixa, apenas sussurrou “Não, da Bolívia”. Em seguida se virou para mim e disparou “Você deve ser mineiro”. À minha resposta negativa, perguntou “Então, de onde você é?”. Secamente emendei “Você me fez a mesma pergunta ontem e já respondi”. Deu um sorriso amarelo e, desajeitadamente, se retirou do salão sem saber onde botar a cara.
A copeira, o boliviano e eu nos entreolhamos, fazendo sinal que o dito cujo não batia bem da cabeça. E ouvimos outras boas sobre o abestalhado nas dependências do hotel.
Em minhas experiências passadas em outros países, aconteceu sempre o contrário. Os brasileiros, bem vistos e admirados, contrastavam com a arrogância, prepotência, ignorância, preconceito, racismo, de muitos turistas do chamado mundo ocidental.
Pegamos metrô até a praça Itália de onde tomamos ônibus intermunicipal. Desembarcamos na beira da rodovia, em frente ao zoológico de Lujan, destino famoso e oferecido em excursões, no balcão dos hotéis e aos berros pelos agentes nos calçadões das ruas Lavalle e Florida do centro de Buenos Aires.
Estávamos prestes a entrar na maior ROUBADA daquela viagem.
Pagamos de entrada o equivalente a sessenta reais por pessoa, sem direito a nada, somente ao impacto de nos depararmos com um deplorável espetáculo envolvendo seres humanos e animais. Estes, teoricamente selvagens, eram dopados e forçados a se exibirem com objetos de decoração e acessórios para fotos aos milhares de turistas que despencavam ali. Não sei o que era pior, a humilhação e maus tratos aos animais obrigados a se exporem ao ridículo durante horas, ou o escândalo mesmo de seres humanos se prestando a tal papel.
Em área reduzida e mal cuidada, o tal zoológico de Lujan abrigava diversos tipos de animais, alguns soltos entre os visitantes, como patos, gansos, lhamas e afins. Outros, cercados e dopados para se sujeitarem aos “carinhos” da horda de turistas em buscas de “emoções” sem nenhuma emoção.
Diante de cada uma das jaulas, dos tigres de bengala, dos tigres brancos, dos leões adultos, dos leões filhotes, dos ursos pardos, dos lobos marinhos, se formavam longas filas de turistas aguardando para entrarem, geralmente aos casais, e se fotografarem alisando os animais postados sobre uma mesa. Toda a cena era vigiada de dentro da jaula por funcionários do zoológico e por cachorros treinados a distrair os felinos na remota hipótese de algo sair errado. Em outras palavras, os cachorros seriam sacrificados para salvar os turistas.
E, turista a turista, casal a casal, entrava na jaula por alguns minutos, pousava a mãos sobre os felinos, e dá-lhe fotos, de frente, de lado, de cima, de baixo, assim, assado. Os pobres dos funcionários, entre um bocejo e outro, se ofereciam para fotografar o bravo casal, agora abraçadinhos e sorrindo com as mãos sobre o animal dopado. E ainda forçavam para cima a cabeça do animal para sair melhor na foto.
Nas jaulas contíguas, havia outros animais da mesma espécie, sonolentos, abobados, deprimidos, esperando a vez de serem convocados ao palco dos horrores.
Os animais acariciados e fotografados milhares de vezes mal abriam os olhos tamanho o esgotamento físico e mental. De vez em quando, num lampejo de lucidez, um deles se recusava a permanecer naquela imbecilidade e ameaçava pular da mesa de exibição. Os funcionários imediatamente enfiavam pedaços de carne na boca deles na expectativa de que, com o suborno, aceitassem mais alguns minutos de humilhação. Eventualmente o animal dava um basta definitivo e descia da mesa sem negociação. Não tinha jeito. Os funcionários então levavam este de volta à jaula contígua e carregavam o próximo animal do rodízio para cima da mesa de exibições, sempre com os pedaços de carne enfiados na boca, para mais carícias e fotos dos ávidos turistas.
No caso específico das jaulas dos ursos pardos e dos lobos marinhos, aos turistas era permitido somente entregar-lhes comida através de um galho comprido de madeira, sem direito a carícias e afagos. E o festival de fotos de todos os ângulos, é claro, vinha a granel.
O passeio sobre o lombo do dromedário, em círculo e por menos de dois minutos, conduzido por funcionários mortos-vivos, era mais deprimente que um velório.
E assim foi, por horas e horas, animal por animal, de fila em fila, fotos e mais fotos, poses e mais poses, ridículo em cima de ridículo. E os animais já não aguentavam mais. Nem com os subornos de carne enfiados goela abaixo. Mas os turistas em bando esperavam nas longas filas, entravam, acariciavam, sorriam, faziam poses e eram fotografados.
E viva a indústria do turismo predatório!
Fugimos dali no meio da tarde, horrorizados com o tal zoológico de Lujan. Atravessamos a rodovia e subimos em ônibus rumo à cidade de Lujan, menos de dez quilômetros à frente.
A despeito de destino de romarias religiosas e sede da gigantesca basílica voltada aos desesperados na busca de benzeduras, milagres e curas, Lujan era uma típica cidade do interior argentino, pacata, arborizada, silenciosa, pelo menos nos dias não santos. Mas a hierarquia religiosa e a indústria da fé agradeciam. O comércio religioso ia muito bem, obrigado.
Pegamos ônibus de volta para Buenos Aires.
Jantamos novamente no bom e legítimo restaurante espremido na zona turística do Micro Centro, porém mantendo, na comida, no aspecto, na frequência, no atendimento, certo purismo nostálgico da velha boemia de Buenos Aires.
Na manhã seguinte, cruzamos novamente a deliciosa e refrescante praça San Martin, desta vez ao final da rua Esmeralda, a caminho dos templos da elite portenha, os bairros do Retiro e da Recoleta, se assemelhando de leve aos bairros paulistanos de Higienópolis e dos Jardins.
 Logo de cara, no entanto, notamos que esses bairros argentinos superavam com folga, em quantidade e qualidade, os citados bairros paulistanos, como também todos os equivalentes nas demais cidades grandes brasileiras. Buenos Aires humilhava no quesito áreas verdes, parques, gramados e praças, arborização de ruas, espaços públicos para lazer gratuito. E esse humanismo não se restringia ao Retiro e à Recoleta, mas em grande parte dos bairros visitados das cidades da Argentina e do Uruguai.
Que situação triste e revoltante para o Brasil e os brasileiros, anestesiados a admirar concreto e asfalto, viadutos e xópins, o lazer pago e discriminado! A maioria da população brasileira não dispõe de significativas áreas verdes, de espaços públicos e democráticos, em quantidade e qualidade suficientes. É empurrada então a torrar dinheiro ou a babar diante de vitrines reluzentes e entupidas de necessidades desnecessárias, despertando o consumismo de supérfluos nos xópins.
Os países do cone sul, Argentina, Chile e Uruguai, não vivem mais o passado de glórias e farturas desfrutadas até os anos de 1960 e 1970. As cidades se degradaram. As ditaduras do capital os mergulharam em crises sociais profundas, baseadas em modelos políticos e econômicos injustos, os mesmos que sempre vigoraram no Brasil. Esses países, porém, aproveitaram a época de prosperidade para, entre tantos itens sociais, construírem cidades humanas e públicas.
De qualquer maneira, os bairros de Retiro, Bairro Norte, Recoleta, ainda eram ilhas de paz e tranquilidade, sobretudo se comparado ao sufocante centro de Buenos Aires, barulhento, poluído, massacrado por buzinas de carros, ônibus e caminhões.
Percorremos a avenida Alvear, as transversais, o cemitério da Recoleta, intensamente visitado por turistas e cuja suntuosidade dos túmulos e mausoléus lembra o cemitério da Consolação de São Paulo. A escultura metálica Floralis Generica se destacava na praça das Nações Unidas, realçada pela resplandecência do metal diante do sol em manhã ensolarada e brilhante. Nas imediações, extensos gramados para relaxar, tomar sol, ler, não fazer nada, como testemunhamos os portenhos praticando.
Entramos na avenida General Las Heras e dobramos na rua Montevidéu, repleta de bares e restaurantes interessantes, alguns oferecendo culinárias menos difundidas. Dezenas de quarteirões depois alcançamos a praça do Congresso, mais um espaço de proporções desmedidas, bem cuidado, destacando o palácio do Congresso Nacional.
Em frente ao congresso, manifestantes acampados erguiam faixas e cartazes contra a Monsanto, a famigerada transnacional química estadunidense rejeitada pela maioria dos povos do mundo por envenenar solos com agrotóxicos, por impor e monopolizar sementes transgênicas, por desrespeitar e agredir ecossistemas e comunidades tradicionais pelo planeta, inclusive e principalmente no Brasil.
Dali, voltamos, sempre a pé, para a zona turística do Micro Centro. De volta aos obstáculos de cambistas, agentes de turismo, inclusive vendendo pacotes para o repugnante zoológico de Lujan, agentes de lojas, agentes de restaurantes, agentes de casas noturnas, todos berrando ao mesmo tempo, alguns até em português sem sotaque, na voz de brasileiros legítimos que se transferiram para Buenos Aires.
Almoçamos no charmoso e honesto restaurante de sempre, sem ninguém nos assediando pelo calçadão.
No meio da tarde, mais que merecidamente, retornamos ao quarto do hotel para não fazer absolutamente nada. A boa e velha preguiça, alternada pelas leituras às informações e às reflexões invariavelmente precisas de Eduardo Galeano no livro Espelhos.
Nos entregamos ao ócio criativo do corpo e da alma.
Enrolei na manhã seguinte indo e vindo de San Telmo, cuja feira dos domingos se estendia pela rua Defensa, da praça Dorrego, centro cultural do bairro, até a avenida de Mayo, nas imediações da Casa Rosada. Centenas de barracas e barraquinhas vendiam de tudo um pouco, velharias, antiguidades, artesanatos, lixos feitos em série voltados a quem nunca teve apreço pelo gosto, obras artísticas e não artísticas, além de inúmeros charlatanismos, como os dançarinos de tango numa das extremidades da praça Dorrego. Velhos, caquéticos, vestindo roupas puídas, esbagaçados fisicamente, portando expressões tristes que lembraram os felinos do zoológico de Lujan, ele e ela mal se mexiam ou acompanhavam a melodia da música reproduzida num tocador de CD.
Turistas do mundo todo perambulavam naquela manhã quente de primavera. A maioria nem olhava os itens em exposição. Estavam mais interessados, como eu, em contemplar o movimento humano, eventuais fachadas arquitetônicas ou casas comerciais antigas e vistosas.
Embora nada espetacular, o mercado de San Telmo empolgou mais que a feira propriamente dita. Dentro de construção autêntica e não desfigurada, em ambiente discreto, as vias estreitas, oferecendo desde alimentos frescos e bebidas a itens similares aos da feira externa, não se entupiam de turistas e garantiam momentos de tranquilidade.
Ônibus de turismo se amontoavam na praça de Mayo vomitando turistas para fotografar rapidamente a Casa Rosada, a Catedral e caminhar pela rua Defensa entre as quinquilharias das barracas.
Dei meia volta depois de arriscar algumas transversais da região.
Os teatros e cinemas da avenida Corrientes enchiam de portenhos, mesmo naquele começo de tarde ensolarada. Filas se formavam pelas calçadas e lotavam as plateias.
A noite abafada de Buenos Aires trouxe vento e chuva pela madrugada. E dezenas de pernilongos. O ar condicionado sem poder regular a temperatura mal amenizava o calor pegajoso ou espantava os mosquitos sedentos de sangue novo. Mas de uma forma ou de outra adormecemos.
Amanheceu chovendo fino naquela manhã de feriado na capital portenha.
Rachamos táxi com outro casal paulistano ao Aeroparque, o aeroporto menor e mais próximo ao centro da cidade. O trajeto percorreu os parques e gramados do bairro de Palermo até a beira do rio da Prata, justamente em frente ao aeroporto.
Desembarcamos em São Paulo na tarde daquele final de novembro, no aeroporto de Cumbica. Caía chuva intermitente similar à daquela manhã em Buenos Aires, cidade à qual, depois de quatro visitas, não pretendia voltar tão cedo, ao contrário das acolhedoras cidades uruguaias.
Como de praxe numa cidade desumana e voltada ao transporte individual, nós demoramos uma eternidade para ultrapassar os congestionamentos sem fim das Marginais de São Paulo, entupidas de automóveis.
Mas cheguei em casa são, salvo e gratificado pela viagem.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Uruguai e Argentina (parte 4/5)

...continuação
Despretensiosamente saímos pelas ruas do Micro Centro, sem rumo ou objetivos específicos. Desejávamos apenas flanar.
Alcançamos a avenida 9 de Julho, do Obelisco, a Corrientes, dos teatros e cinemas, as construções neoclássicas imponentes, ente elas o grandioso Teatro Colón, o Tribunal, a Casa Naval. Construções históricas que Buenos Aires e Montevidéu mantinham de pé e em bom estado, ao contrário da maioria das grandes cidades brasileiras, que cometeram e cometem o crime de apagar a memória urbana. Enquanto isso, ironicamente, a capital uruguaia e a argentina recebiam milhares de turistas brasileiros maravilhados com a arquitetura.
Acabamos caindo, como a maioria, no calçadão da rua Florida, repleta de lojas e lojinhas, cambistas, agentes de viagem, agentes culturais, vendedores. Todos gritando ao mesmo tempo no meio do calçadão, no melhor estilo do centro degradado de São Paulo. No meio das lojas, para portenhos e principalmente para turistas, cruzamos com um goiano de Goiânia que vendia produtos de couro de fabricação própria. Apesar da lábia e da certeza de nos engambelar, somente roupas caríssimas e sem novidades estilísticas. Vazamos rápido.
O mais agradável na desagradável rua Florida estava numa das extremidades do calçadão, mais precisamente na aconchegante praça San Martin, porta de entrada do bairro de Retiro. Colorida pelas flores lilases cobrindo as árvores altas, o local irrompia como um oásis depois da tortura sofrida ao longo do corredor polonês do calçadão comercial. Ampla, limpa, bem cuidada, sombreada, a praça nos convidava à preguiça, ao relaxamento, à observação da natureza e do leve vaivém de argentinos e turistas.
Antes da praça, porém, gente, muita gente, disputando espaço com os veículos em trânsito ou estacionados. Era impossível negar o tremendo impacto negativo dessa minha quarta passagem por Buenos Aires após vivenciarmos o pacato Uruguai, mesmo Montevidéu da movimentada e barulhenta avenida 18 de Julho.
Acordei antes do amanhecer e não consegui adormecer novamente. Já havia os ruídos vindos rua, seguidos pela vibração do começo do tráfego pesado de veículos dos dias úteis.
Descemos ao café da manhã, servido no subsolo, em salão feio e claustrofóbico. Fora os cereais e os iogurtes, dos quais eu me empanturrei, os demais itens eram pouco variados, invariavelmente ressecados e passados.
Botamos os pés nas ruas para enfrentar a trepidação, o barulho e a poluição do centro de Buenos Aires. Escolhemos uma rua a esmo, a Reconquista, no sentido da Praça de Mayo, espaço que contém a Catedral, o Banco de la Nación Argentina e, é claro, a Casa Rosada, sede do governo federal argentino.
Ao redor da praça, e dentro dela, faixas e cartazes de protesto, a maioria se referindo à soberania argentina e aos mortos durante a invasão da Inglaterra às ilhas Malvinas. E muitos, muitos mesmo, bloqueios metálicos montados pela polícia federal, ao redor de toda a Casa Rosada, fechando ruas, calçadas, parte da própria praça de Mayo.
A presidenta Cristina Kirchner discursaria para o público ao entardecer, depois de se licenciar por motivos de saúde por quarenta e cinco dias. O evento prometia. Os portenhos, lenta e firmemente, se dirigiam, isoladamente, em grupos, passeatas, para a praça. À medida que entardecia, crescia a agitação, as passeatas, os rojões, os tradicionais bumbos argentinos, a trepidação da cidade, a ansiedade de todos, inclusive a nossa.
Andamos demais do Micro Centro para o Centro, do Centro para San Telmo, de San Telmo para Puerto Madero, de volta ao Micro Centro, de volta a Puerto Madero, entre perambuladas, observações arquitetônicas, detalhes de portas, janelas, restaurantes, bares, cafés, as portenhas e os portenhos, todos apressados, aquelas produzidas e sobre saltos quilométricos, aqueles empertigados e vestindo ternos justos. E barulho, muito barulho, das obras, do trânsito, de tudo. E gente, muita gente.
Almoçamos em restaurante de Puerto Madero. Optamos pelo menu executivo, incluindo salada, pães e molhos variados, o suculento Bife de Chourizo, e uma generosa porção de salada de frutas. Comemos bem e bastante, regados ao vinho argentino, pagando preço aceitável. Apesar de local não turístico, mais frequentado por engravatados, o garçom arranhava a língua portuguesa e torcia fanaticamente para o Quilmes, time de futebol de cidade suburbana de mesmo nome. Ao pedirmos a conta, ele realçou “já trago la doloroza”.
E andamos, andamos, até os pés incharem. Entramos no hotel quase rastejando de cansaço. Tiramos as roupas e desabamos na cama para recompor as forças. O sol viera com tudo e fazia um calor suave. Abrimos o janelão de vidro. As preparações para as passeatas rumo à praça de Mayo, as vozes reivindicadoras, retumbantes aos microfones, incrementadas pelos bumbos e pelo espocar dos rojões, explodiam dentro do quarto do oitavo andar, talvez amplificadas pela acústica das ruas do Micro Centro.
Não saímos mais. Assistimos aos discursos da volta da presidenta Cristina Kirchner pela televisão. Tomamos o cuidado para escolher um canal público e não os privados ainda dominados pelos monopólios de sempre. Recentemente uma lei de democratização dos meios de comunicação fora aprovada pelo Congresso argentino e referendada pelo Judiciário. A famosa Ley de Medios combateria os monopólios da mídia argentina e abriria acesso para diversos setores da sociedade, públicos e comunitários, expressarem a voz pelo rádio e televisão, o que irritava profundamente o império privado dos meios de comunicação, avesso às vozes do povo.
Na Argentina, assim como no Brasil, nunca houve liberdade de Imprensa e sim liberdade de Empresa privada manipular a opinião pública.
Após o café da manhã mixuruca, caminhamos até a estação ferroviária de Retiro.
Quase em frente à estação, diante do painel dos Caídos na Guerra das Malvinas, soldados trajados de gala hastearam a bandeira argentina e tocaram o clarim em comemoração ao dia da Soberania.
Depois de nos situarmos dentro da enorme estação ferroviária, e encontrar a bilheteria correta, compramos passagens no trem de subúrbio. Uma usuária de crack furou a fila e implorou à bilheteira para lhe trocar uma nota de cinco pesos. Tão logo obteve o que queria, desapareceu pelos arredores da estação, recheada de moedas.
Embarcamos no trem metropolitano quase cheio em horário do contra fluxo. Os vagões estavam velhos e mal cuidados. A paisagem ao longo do trajeto de mais de uma hora alternou zona de fábricas e galpões, favelas de concreto, prédios de apartamentos, quadras de tênis, muitas quadras de tênis, campos de futebol, concentrações comerciais, subúrbios de alto padrão.
Apesar de casarões e mansões entre ruas arborizadas dos trechos mais sofisticados, nada de muros altos, nada das colônias penais tão na moda nos arredores de São Paulo, nada daquelas monstruosidades fortificadas batizadas de “condomínios fechados”, os sonhos de consumo das novas e velhas castas antissociais.
Na zona a nordeste de Buenos Aires, mais especificamente nas imediações de San Isidro, sobrados dos meados do século XX, alguns mais recentes, entre muito verde, ruas divinamente arborizadas, praças, parques, gramados. Nem sinal de muros altos ou guaritas de segurança. Afinal tratava-se de zona residencial e não de presídio.
Ambulantes e pedintes circulavam pelos vagões, alardeando as ofertas, proferindo o tradicional discurso, tão familiar nos trens da grande São Paulo: ”desculpe incomodar a viagem de vocês, mas...”, ou entregando bilhetes e fichas contendo a situação trágica em que se encontravam, para depois recolherem as magras esmolas.
Descemos na estação Tigre, na margem do rio de mesmo nome e ponto de partida de passeios turísticos pelo Delta, ao longo de rios e canais que desembocam no rio da Prata, além de partida das linhas regulares de barcos de passageiros às vilas acessadas somente pelas vias fluviais.
Não nos animamos a realizar os passeios fluviais turísticos, cujas rotas padronizadas não incluíam paradas para explorar os vilarejos e as trilhas entre eles. E nada conseguimos das linhas regulares. O péssimo atendimento nas bilheterias e a ausência de orientações claras nos painéis eletrônicos quanto aos horários de ida e de volta e às paradas previstas, provavelmente em acordo tácito com as operadoras turísticas, nos deixaram na mão.
Desistimos do que já não nos empolgava.
Nos contentamos em andar despreocupados pelas calçadas arborizadas das margens dos cursos d’água que cruzam a cidadezinha, entre casas, museus, bares, restaurantes, clubes de remo invariavelmente levando nomes em inglês. Tudo muito bem cuidado, limpo, vistoso, aconchegante. Não dava vontade de levantar do banco sob o caramanchão florido, assistindo os barcos irem para lá e para cá, vislumbrando os casarões da margem oposta.
Haja verde, nas árvores, gramados, calçadas, ilhas centrais da avenida da orla sinuosa. Não faltavam flagrantes do passado esnobe da Argentina, imitando em tudo a Inglaterra monárquica, a mesma que invadiu as ilhas Malvinas em 1982 e que, de maneira humilhante ao povo argentino, as ocupam até hoje. Evidências britânicas abundavam na arquitetura das casas, fachadas, nomes de estabelecimentos, na obsessão em decorar jardins impecáveis. Em redutos isolados, a Argentina parecia ainda viver os áureos tempos, anteriores às ditaduras e aos desmontes capitalistas dos anos 1970, 1980 e 1990.
Passamos rapidamente pelo Porto de Frutas, que de porto e de frutas não tinha mais nada. Tratava-se, na verdade, de um amontoado de lojas vendendo quinquilharias inúteis a preços exorbitantes e voltadas a turistas otários.
Trocamos novamente de margem e escolhemos uma mesa na calçada de restaurante que servia porções generosas a preços acessíveis. Sem titubear optamos pelo saborosíssimo Vacio, a nossa suculenta Fraldinha, uma das partes nobres do boi e que nos deliciamos em mais de uma oportunidade no Uruguai. Ainda reforcei o pedido para que viesse um pedaço magro, com o mínimo de gordura. Mas, porém, contudo, todavia, ao contrário do Uruguai, o que o garçom trouxe, para nossa profunda decepção, foi um pedaço de Costela, mais precisamente a famigerada Ponta de Agulha, uma parte  cinzenta, gelatinosa e gordurosa da costela bovina. Absolutamente nada a ver com o Vacio uruguaio ou com a Fraldinha brasileira. Garimpamos aquela gororoba o máximo que pudemos, mas nem chegamos à metade do que nos foi servido. A farta salada, as batatas fritas e a porção de pães nos salvaram parcialmente.
Ainda conversei com o garçom se aquilo era realmente o Vacio, no que ele prontamente confirmou, explicando os diferentes nomes usados no país para cada parte do boi. Os argentinos traduziam a palavra Vacio como sendo Fraldinha, e não Costela. Mas ali era a Ponta da Agulha da costela e não Fraldinha. E o Uruguai ali tão perto!
Vivendo e aprendendo! Vacio só no Uruguai, Fraldinha só no Brasil.
Andamos até a outra estação de trem da cidade, a Delta, a fim de tomar o Trem da Costa, dez vezes mais caro que o da ida e ligeiramente mais confortável. O diferencial ficou por conta do trajeto, diferente do anterior, passando ao largo de subúrbios charmosíssimos, San Isidro, Barrancas, entre tantos, alguns na margem do rio da Prata, repletos de verde, ruas arborizadas, quadras de esportes, gramados e parques sem fim, plataformas e barcos na beira das águas, nos convidando ao ócio criativo, como, aliás, muitos portenhos se deixavam levar por ali.
Até as pequenas e convidativas estações de trem da linha da costa eram aproveitadas para beber, conversar sem pressa, contemplar os únicos dois vagões do trem turístico, em mesas espaçadas dos cafés pitorescos.
Descemos na estação Maipu, a inicial da linha da costa. Atravessamos uma extensa galeria ladeada de dezenas de lojas de antiguidades e velharias, exalando o esnobismo anacrônico de uma Argentina que não existe mais. Ninguém parava, para olhar e muito menos para comprar.
No final da galeria, a estação Mitre, final de outra linha de trens de subúrbios, onde embarcamos rumo à estação de Retiro, de volta ao nosso ponto de partida pela manhã.
Um maluco, aparentemente inofensivo, vez ou outra, atravessava o trem inteiro, vagão por vagão, ruminando palavras indecifráveis. Ao se sentar, aproveitou para pichar frases na parede interna do vagão com caneta. Na praça das proximidades da estação, o indivíduo ainda caminhava aos supetões e escrevia frases ininteligíveis em placas públicas.
Insatisfeitos diante da Fraldinha que virou Ponta de Agulha gordurosa no almoço, saímos para jantar em Buenos Aires. Não pretendíamos ir longe, explorar opções gastronômicas em outros bairros. Arriscaríamos mesmo no Micro Centro.
Percorremos a rua Lavalle inúmeras vezes até nos decidirmos por café e restaurante de esquina, animado, possuindo boas opções a preços aceitáveis, conforme o cardápio afixado do lado de fora. O garçom nos assediou. Topamos, entramos e nos sentamos. Ele nos trouxe o cardápio na mesa e partimos para as escolhas. Mas, eis que senão quando, notamos que os preços daquele cardápio entregue na mesa diferiam dos do cardápio afixado do lado externo. Ainda verificamos e averiguamos duas ou três vezes. Os bandidos usavam preços baixos do lado de fora para cobrar altos preços do lado de dentro. Confirmada a tentativa de golpe dos empresários, levantamos e demos o fora imediatamente.
Embora cientes de estarmos em zona turística, nos enojava o assédio pegajoso dos agentes de bares, restaurantes, casas de espetáculos, lojas, passeios turísticos, isso e aquilo. Pareciam moscas e não paravam de gritar, todos ao mesmo tempo, pelas calçadas e calçadões.
Notamos um restaurante com jeito antigo, preços razoáveis e, principalmente, sem o assédio de garçons ou pentelhos em geral. Entramos. Os preços de dentro batiam com os de fora. Era estabelecimento do tipo tradicional, com garçons velhos e gastos, vestindo calça preta, camisa branca, gravata borboleta preta, guardanapo envolvendo o braço direito.
Pedimos massa e vinho argentino. E não nos arrependemos. Ambos vieram saborosos e bem servidos.
Mais relaxados e saciados, notamos que a frequência, à parte dos raros turistas que não caíram nas arapucas de sempre, era de portenhos, seres da noite, amigos, casais antiquados, saudosistas do centro de Buenos Aires.
Cama e sono pesado coroaram o dia gratificante.
continua...

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Uruguai e Argentina (parte 3/5)

...continuação
Indecisos no que fazer pela manhã, uma vez que os horários dos transportes a Cabo Polônio não batiam, optamos por outro vilarejo. Corremos para o terminal rodoviário e embarcamos em tempo.
O ônibus entrou em La Pedrera, vilarejo na beira do mar. Mais adiante, passou na entrada do Parque Nacional de Cabo Polônio. Vários ônibus de turismo, mais uma dezena de automóveis, estavam estacionados ao lado. Longa fila de visitantes aguardava para embarcar nos veículos tracionados rumo ao miolo do Cabo Polônio. Algo me dizia que não iríamos adorar apreciar a natureza, física, vegetal e animal com os lobos marinhos, em meio àquela caravana de turistas.
Meia hora depois desembarcávamos em La Valizas. Saímos a pé pelas ruas de areia do vilarejo, pequeno, pacato, singelo, tranquilo, dotado de construções precárias e charmosas. Algumas completamente abandonadas, cercadas de mato e em estágio avançado de apodrecimento das madeiras das paredes, portas, janelas.
Atingimos a praia extensa e aplainada, cujas dunas invadiam as casas e bares de madeira erguidos irregularmente. A natureza, substituindo a negligência de construtores e autoridades, tratava de punir os infratores ambientais, forçando-os a abandonar as propriedades por bem ou por mal. Casas simples e inventivas, de cores berrantes, começavam a ser engolidas pelas dunas, em constante movimento devido ao vento intenso que não cessava um segundo sequer.
Na praia, frequência esparsa e desencanada.  Cada um na sua, despreocupados se os demais agiam assim ou assado. Bichos-grilos, autênticos e falsos, vestindo roupas puídas e encardidas, se espalhavam em raros e pequenos grupos ou casais pela imensidão da praia. A maioria procurava se encostar ao pé das dunas para se proteger, ainda que parcialmente, das rajadas de vento. É isso aí, bicho!
Na extremidade da praia, a barra do rio Valizas, que deu nome à cidadezinha, atravessado somente por barcos a motor mediante pagamento aos barqueiros. Do outro lado do rio, as dunas mais altas, mais praias e, no final do horizonte, pontões e ilhas rochosas, talvez nas proximidades do Cabo Polônio.
As águas calmas do rio lutavam contra a correnteza do mar, num vaivém constante de avanços e recuos, ora de um, ora de outro. Na margem esquerda, mais casas, casebres, cabanas, barracas, abandonadas pelo avanço das dunas, pela baixa temporada, pela falta de condições ou de interesse em mantê-las.
No geral, o conjunto natureza bruta em contato com as construções isoladas formava um desenho belo e atraente, delicioso para se deixar contemplar por horas.
Voltamos ao caminho de areia principal da vila na procura de algo substancioso para comer. Na primeira tentativa, em estabelecimento completamente vazio, o proprietário nos comunicou, em tom de quem não queria nada com nada, mas sorrindo ironicamente, que só tinha para oferecer peixe e camarão, já se desculpando, já se despedindo, e prontamente nos sugerindo outro restaurante ali perto.
Entramos no que parecia a única opção em refeições naquele dia em La Valizas. Comemos Chivitos, regados ao espumante uruguaio, o Medyo y Medyo, bem gelado e refrescante, em garrafa retirada do fundo do refrigerador depois de lenta procura pelo dono gordo e vagaroso. Nos empanturramos e saímos saciadíssimos do estabelecimento bem decorado, mas desmazelado pelo tempo e pelo descuido do dono que se arrastava pelo chão acompanhado da gata e da cadela.
O retorno de ônibus foi rápido na tarde ensolarada, iluminando pastos, alagados, baixios, criações de gado, ovelhas, cavalos, os bosques de pinheiros, as casas, as isoladas sedes de fazendas. Pouco depois desembarcávamos em La Paloma. O vento frio vencia com folga o sol brilhante e descendente.
Descemos ao procurado restaurante do hotel para o jantar. Fui de Cazuela de mariscos, ela de peixe grelhado com salada. Escolhemos vinho uruguaio e nos demos por saciados. Nem tentamos a sobremesa. O restaurante lotou naquela noite. Os interessados tiveram que esperar bastante no bar anexo ou desistir.
Arriscamos dar uma volta pelas ruas da cidadezinha, mas o frio penetrante, surpreendentemente sem vento, frio de verdade, nos obrigou a voltar e nos enfurnar no quarto do hotel. A lua cheia brilhava absoluta no céu desprovido de nuvens.
Acordamos cedo, para o começo do café da manhã. Lá estavam três gringos, um estadunidense com sotaque marcante de terrorista, um indiano ou paquistanês, um oriental, todos conversando amenidades com um uruguaio. A língua falada era a inglesa. Eu poderia jurar que ninguém estava a passeio pelo Uruguai, por La Paloma. E boa coisa para o povo uruguaio eles não vieram fazer na América do Sul.
Embarcamos em ônibus velho de dois andares. Na rodoviária de Montevidéu subimos em ônibus cheio que lotou ainda mais durante o percurso, obrigando dezenas de passageiros a viajarem de pé, esmagados no corredor.
Nada de novo na paisagem de campos aplainados, exceto na periferia oeste de Montevidéu. Além da refinaria da ANAP e de pequenas fábricas e galpões, extensa zona residencial bastante precária, favelas de concreto, cubículos imundos e entulhados de gente e tralhas. Depois, campos de gado, trigo, milho, pastos vazios, vegetação ciliar.
Descemos em Colônia Sacramento e nos hospedamos em hotel a poucos passos do terminal rodoviário e do terminal flúvio-marítimo.
Assistimos a partidas e chegadas das embarcações, da linha entre Colônia Sacramento e Buenos Aires, do parque ao redor da desativada estação ferroviária da cidade que alcançava a beira do rio da Prata. O Uruguai, assim como o Brasil, também se ajoelhou e caiu no conto do vigário do transporte rodoviário. As linhas de trem do país se encontravam totalmente abandonadas, cobertas pelo mato ou pelo asfalto. Ônibus, caminhões e automóveis compunham a rede de transportes uruguaios. O país vivia sob a ditadura do transporte rodoviário, encabeçada por corporações transnacionais, as mesmas que corromperam os governos a sucatearem a extensa malha ferroviária do Brasil.
Ainda deu tempo para contemplarmos o belíssimo por do sol na beira do rio da Prata, seguido magistralmente pelo nascimento de mais uma lua cheia e brilhante no lado oposto.
Opções gastronômicas se dispunham ao longo da avenida General Flores. Comemos a fraldinha grelhada ao ponto, acompanhada de saladas, pães e o bom vinho uruguaio. Sentamos em mesa na calçada naquela noite fresca e agradável.
Durante o jantar, passou pela avenida um bloco de Candombe, ritmo típico do carnaval do Uruguai. A despeito da origem africana, naquele bloco não havia nenhum mulato ou negro, apenas branquelos batucando, balançando as mãos e os quadris. O resultado se assemelhava bastante ao candomblé brasileiro, não só no nome, mas no ritmo das batidas da percussão e na coreografia dos passos de dança, particularmente em relação às festas de louvor aos orixás tão presentes nos terreiros e roças do Brasil.
A noite avançava e o frio sorrateiramente começava a nos envolver. Batemos no rumo ao quarto apertado do hotel.
Comemos o café da manhã, reguladíssimo, mas saboroso e suficiente. A senhora da cozinha nos esperava sentar para começar a servir item a item. Internamente, o hotel agradava pela disposição entre os quartos, pátios, corredores, pequenas escadas, entradas e saídas das áreas comuns. O enorme casarão foi bem aproveitado e decorado com discreto bom gosto.
E fomos caminhando pela arborizada rua Manoel Lobo, em homenagem ao fundador da cidade, rumo à Cidade Velha, à qual entramos pelo portão da antiga cidadela fortificada, através de espesso muro de pedras. O brasão português lá estava acima da fortificação, assim como os canhões voltados para as águas do rio da Prata. Dentro da cidadela, calçamento em pé-de-moleque, becos, azulejos, lustres, construções barrocas e neoclássicas, a catedral, o alicerce do palácio e residência de Manoel Lobo, saqueado e destruído pelos invasores portenhos, a Plaza Mayor, a Plaza Menor, o farol, a rambla costeira, pequenas enseadas, muitos restaurantes e pousadas, lojinhas de utilidades e inutilidades, carros antigos estrategicamente estacionados para realçar a atmosfera histórica e, surpreendentemente, poucos turistas e muita tranquilidade naquele começo de manhã.
Almoçamos menu turístico, bem servido na quantidade e na qualidade, em restaurante instalado despretensiosamente dentro de casarão da avenida principal, a General Flores. Até os banheiros eram originais, amplos, com pia, vaso sanitário, bidê, banheira. Tudo sob um pé direito alto e placas de motos e automóveis decorando as paredes internas dos salões.
Os uruguaios, e provavelmente os argentinos visitantes, não largavam a garrafa térmica debaixo do braço, a cuia e a bomba do chimarrão na mesma mão, durante quase vinte e quatro horas por dia, nas ruas, praças, parques, ônibus, carros, pontões de pedra, onde pescavam tranquilamente na beira do rio. Homens e mulheres, velhos e moços, vestidos assim ou assado, agiam como manetas, tendo apenas um braço e mão disponíveis para o resto das atividades.
Por ser pequena, bonita, famosa e em posição estratégica na ligação fluvial entre dois países, Colônia exibia turistas de todos os cantos do mundo, inclusive os mochileiros modernos, que em comum com os mochileiros exploradores de outrora só mesmo a própria mochila, como pude notar e anotar nas viagens anteriores pelo Brasil e por outros países do planeta.
Houve tempo de sobra na parte da tarde para revermos os nossos pontos favoritos da cidade. As pequenas distâncias e as sombras nas calçadas das ruas ricamente arborizadas de plátanos possibilitavam repetirmos esse e aquele roteiro a pé.
Sentamos em banco na beira do rio da Prata a fim de contemplar o encerramento do dia.
Para jantar, optamos por restaurante pequeno e charmoso numa praça da Cidade Velha, quase em frente à Catedral. Escolhemos mesa estrategicamente situada na calçada, sob a noite fresca. Vinho uruguaio, massa e a atmosfera bucólica da praça compuseram nosso jantar de despedida do Uruguai.
Praticamente não dormimos.
Bem depois da meia noite o casal do quarto ao lado discutia do lado de fora, muito próximo à nossa porta. O clima estava pesado e ela, principalmente, lhe lançava palavras fortes, enquanto ele desembestava a falar sem parar. Tudo em castelhano. Foi preciso eu reclamar na janela para eles entrarem e brigarem mais baixo.
Outros turistas se hospedaram tarde e conversavam em voz alta pelas saletas, escadas de metal e corredores. Um gaúcho adulto e todo esbaforido iria dividir o quarto com a mãe. Subia e descia as escadas tagarelando. Não sossegava de jeito nenhum.
A simpática disposição interna entre os quartos do hotel revelava os defeitos. A acústica era péssima. A proximidade de portas e janelas, ambas internas, concentrava e propagava todo e qualquer som. A escada de metal vibrava e amplificava o ruído dos passos.
Acordamos cedo e chegamos horas antes ao terminal flúvio-marítimo de Colônia. Despachamos as bagagens, passamos pela imigração uruguaia, exatamente ao lado da imigração argentina. Saímos de um país e entramos noutro em apenas trinta centímetros de balcão.
Embarcamos no barco com capacidade para duzentos e trinta passageiros. Escolhemos assentos a esmo. A viagem curta foi agitada pelas águas bravias do rio da Prata, provocando fortes oscilações na embarcação. O tempo nublara. Chuviscou e ventou bastante. Nada para ver dentro ou fora, exceto muita água e animações curtas nas televisões internas, intercaladas de propaganda comercial e repetitiva, uma delas da prefeitura de Manaus, convidando às atrações turísticas da capital amazonense.
 Desembarcamos no dique de Puerto Madero, em Buenos Aires.
Com as bagagens, saímos a pé e batemos de frente com o trânsito infernal do centro de Buenos Aires. Buzinas, muitas buzinas, histéricas. Obras nas calçadas e em algumas ruas. Gente, muita gente, indo, vindo. Cenas de megalópole em transe.
Estávamos adiantados para o horário de entrada nos quartos do hotel. Deixamos o peso das bagagens atrás da recepção e saímos para almoçar.
E haja entupimento de carros pelas ruas e avenidas, gente pelas calçadas, em meio a incrível poluição sonora. Bem menos paciência e gentileza, de motoristas e pedestres, que na acolhedora Montevidéu.
Entramos em restaurante comercial, frequentado por trabalhadores do centro, na verdade o Micro Centro de Buenos Aires. Comida comível em ambiente frenético, apertado e barulhento. Chamou atenção a longa fila formada de clientes para comprar comida para levar, naquele e em outros estabelecimentos. Muitos restaurantes por quilo nem mesas tinham. As pessoas entravam, enchiam as quentinhas, pesavam, pagavam e as levavam sei lá para onde. Comeriam sobre as mesas dos escritórios? Comeriam sentadas nas calçadas, em meio à insana poluição sonora e do ar, como vimos duas funcionárias de escritório em rua estreita e movimentada?
Espalhamos a bagagem no amplo espaço do quarto e da saleta do hotel. Relaxamos na cama grande de casal enquanto a enlouquecida Buenos Aires trepidava lá embaixo.
continua...

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Uruguai e Argentina (parte 2/5)

...continuação
Não importava se dia útil, quando os montevideanos se vestiam para o trabalho, muitos de terno e gravata e demais roupas formais. Ninguém abandonava a onipresente cuia de chimarrão numa mão e a garrafa térmica metálica debaixo do mesmo braço. Se comportavam como manetas, contando apenas com um braço e uma mão para os demais afazeres. Jamais abandonavam o mate. Jamais desocupavam um dos braços e a respectiva mão. Impressionante! Longe de criticá-la, porém, a população uruguaia era invariavelmente educada, prestativa, discreta, simpática.
Pagamos o hotel com cartão de crédito, mas em dólares estadunidenses, numa prática antipática de muitos hotéis uruguaios e argentinos. Poderíamos até realizar a operação em pesos uruguaios, depois de a recepção calcular o valor correspondente a partir da taxa de câmbio do dia. Acabamos aceitando a operação bizarra e questionável para países soberanos e membros do Mercosul.
Após o café da manhã, pegamos ônibus urbano para o terminal rodoviário. Embarcamos em ônibus confortável, mas frio pelo desnecessário ar condicionado, similar aos ônibus brasileiros de longo percurso.
Pequenas paradas para embarque e desembarque nas cidades de Pán de Azúcar, San Carlos e Rocha, esta maior e onde embarcaram dezenas de novos passageiros, sobretudo estudantes em saída escolar. O ônibus então lotou, inclusive no corredor, entupindo de pessoas em pé.
A paisagem durante o trajeto exibiu terrenos aplainados entre leves ondulações e serrotes baixos e pedregosos. Casas esparsas, fazendas de gado e ovelhas, alguns parreirais, riachos, lagos, pastos verdejantes.
Embora se notasse pobreza em moradores das margens da estrada e em passageiros do ônibus, nada de miséria ostensiva. As casas avistadas eram grandes, bem construídas e dotadas de chaminés para as lareiras. Ruas de areia cortavam a rodovia com residências em ambos os lados.
Desembarcamos em La Paloma e fomos a pé até o hotel, completamente vazio fora da temporada, assim como os demais da cidade. E também vazias e fechadas grande parte das casas de veraneio, lojas, sorveterias, restaurantes, bares, lanchonetes. Perfeito! Era exatamente o que queríamos.
Demos volta pelas praias, arredores do farol de Santa Maria, por ruas desertas de gente, antes de voltar à avenida central a fim de forrarmos o bucho em um dos dois únicos restaurantes abertos. Fomos bem atendidos pela simplicidade. Comemos carne regada ao saboroso e refrescante refrigerante de fruta local.
Dormimos muito, bem e profundamente sob o silêncio absoluto da noite da cidadezinha de pouco mais de três mil habitantes.
Sob o esplêndido sol e o céu azul límpido, saímos para caminhar pelas praias de La Paloma. O vento fresco e constante às vezes esfriava o corpo, mas nada para precisar se cobrir.
Praticamente ninguém nas casas ou praias. Uma ou outra pessoa andando com cães, apesar da placa visível proibindo a entrada de animais nas areias. Quatro garotas se esticavam sobre esteiras e cadeiras de praia na esperança de se bronzearem sob o sol da primavera fria.
Nenhum comércio na beira da praia. Somente casas espaçadas, sem muros ou grades, todas batizadas com um nome qualquer afixado em placa de madeira, da mesma maneira que se nomeiam chácaras, sítios e fazendas nos interiores. Todas elas dotadas de lareira e janelas amplas de vidro, às vezes de vidro duplo, contra o frio que deve cair por lá no meio do ano. E praticamente todas vazias, cujos frequentadores esperavam dias mais quentes ou as férias de final de ano. Algumas com mato alto nos jardins frontais ou laterais indicavam ausência de moradores havia mais de um ano.
Enorme variedade de pássaros, nos tamanhos, tipos, cores, cantos, penas, enfeitavam e alegravam os caminhos pelas praias ou pelas ruas desertas. As areias grossas e trechos com cascalhos de cascas de mariscos e conchas feriam as solas dos pés. Tínhamos que desviar ou vestir os chinelos nos trechos mais pontiagudos.
Escolhemos massa e vinho tinto no segundo dos únicos dois estabelecimentos abertos. Sentamos em mesa interna devido ao vento cortante. Acabou se tornando mais interessante que o ensolarado lado de fora.
Iria começar a transmissão ao vivo pela televisão do jogo entre Jordânia e Uruguai pela repescagem para a Copa do Mundo de Futebol de 2014. Um grupo de crianças, professora e cuidadoras, outros clientes, as garçonetes, o dono gorducho, eventualmente até a cozinheira, prestavam atenção à telona, torcendo pela seleção nacional. Bandeiras uruguaias foram hasteadas na parte de dentro e de fora, daquele e em outros pontos comerciais e residenciais. Uma delas bem acima de nossas cabeças, afixada no vidro.
A cada gol uruguaio, gritos e abraços. O homem do casal ao lado, acompanhado da esposa e dois filhos menores, entornou dois litros de cerveja, passando a olhar revirado para tudo e todos. Vez ou outra saía para fumar, não deixando de acompanhar a partida pelo vidro transparente do restaurante. Gritava gol bem alto, seguido de “Uruguay, No Más!”. Ainda bem que a goleada folgada os manteve alegres.
Desci sozinho para jantar no bom e prestigiado restaurante do hotel disposto em ambiente sóbrio e bem decorado. Tracei peixe com gengibre e mel e duas taças de vinho.
Amanheceu um céu limpíssimo, cristalino, sem nuvens, o sol brilhando sem obstáculos. Porém, considerando os dias anteriores, nos vestimos completos, com camiseta, calça, meias, botas, agasalhos na mochila, prontos para o que desse e viesse naquele passeio de um dia.
Pegamos ônibus matinal e descemos em San Carlos. O segundo ônibus passou pela cidade de Maldonado antes de nos deixar na famosa e badalada península uruguaia de Punta del Este, sob um sol implacável que prometia ainda mais calor.
Em ambos os ônibus, passageiros simples, alguns vestindo roupas velhas, rasgadas, manchadas, puídas. Pobreza, dinheiro contado, sim, mas nada de miséria.
Iniciamos nossa exploração pela parte oeste da península, o calçadão da Playa Mansa, bem próximo a hotel e cassino, locação presente em programas televisivos patéticos nos quais certo apresentador brasileiro sai à caça de celebridades, normalmente figurinhas em acelerado processo de decadência. De um lado, ausência de praias, costões de pedra, o mar entupido de barcos e iates exageradamente exagerados das marinas. Do outro, a avenida e prédios de apartamentos espalhafatosos, ostentando piscinas privativas, entre restaurantes de preços salgados, mas que os garçons atravessavam as pistas para nos aliciar. E turistas, claro, para lá e para cá, admirando e fotografando tudo.
Avançando ao sul da península, e ultrapassando a barreira fechada dos prédios, bares e cassinos, chegamos ao setor mais residencial, de apenas casas, na verdade mansões estratosféricas, ocupadas provavelmente por classes sociais que pouco se importam com a fome e a miséria que assola a maioria da população do planeta. Pelo contrário, não só se lixam como faturam e vivem dessa mesma miséria. As moradias impactavam mais pelo exagero, sempre o exagero, do que pela beleza, bom gosto ou qualquer tipo de apuro estético.
Contornamos a ponta de Punta del Este, onde um conjunto de esculturas femininas, desmazeladas, caindo aos pedaços, se erguia sobre os rochedos além da murada.
A partir dali, na borda leste da península, caminhamos pela Playa Brava, de mar mais agitado, cujas enseadas se cobriam de rochas e cascalhos de cascas de mariscos. Após o trecho de mansões faraônicas, novamente a barreira fechada de prédios de apartamentos, suntuosos, alguns nem tanto e até mal cuidados. Já no final do lado leste da ponta, uma extensa porção de praia de areia branca e fina e a escultura acinzentada com os dedos de uma mão aflorando acima da linha da areia.
Do outro lado da praia, o terminal rodoviário de Punta del Este e um restaurante de preços acessíveis. E foi nesse que entramos, suados, fervendo, cansados, sedentos, devido ao sol abrasador e ao adiantado da hora. Comemos bem comida trivial uruguaia, compensada pelos preços nada assustadores em cidade que o chique é pagar caro, nem que seja para adquirir o lixo do lixo.
Pouco antes de pedirmos a conta, um cantor desajeitado, cuja filhota de poucos aninhos perambulava perdida pelos meandros do restaurante, começou a apresentação para os gatos pingados ocupando mesas esparsas, a maioria de brasileiros. Ao saber a predominância da frequência, ele atacou com um sucesso comercial da dupla Vitor e Leo, ali vertido para o castelhano. Depois, outra versão em castelhano de um sucesso comercial de Michel Teló, aquela mesma que rendeu versões em sei lá quantas línguas. O nobre cantante então empurrou o microfone para os integrantes animados de uma mesa para que estes pagassem o mico de interpretar a letra no original, em português, enquanto ele cantarolava em castelhano. A cena tocante me encheu os olhos de lágrimas, tamanha a comoção.
Sob o sol implacável do meio da tarde, atravessamos a avenida, vestidos com roupas e botas de quem esperava o frio. Ônibus e mais ônibus se enfileiravam na avenida despejando turistas para se fotografarem ao lado e na frente da escultura dos dedos da mão sobre a areia da praia.
Caminhamos pela avenida central da península, do lado da sombra evidentemente, entupida de lojas, oferecendo produtos caros e supérfluos.
Era hora de dar adeus à badaladíssima, famosíssima, chiquérrima Punta del Este, e completamente desprovida de graça para viajantes com o mínimo de massa cinzenta. Valeu ter ido para comprovar o óbvio. E valeu pelo dia claro, pelas cores, pela cristalinidade das paisagens valorizada pela luz do sol.
Partimos de ônibus rumo à cidade de Rocha, onde esperamos o segundo ônibus que nos levaria para La Paloma. E em tempo de assistir ao estupendo por do sol nas planícies uruguaias.
Saímos para jantar no mesmo restaurante do almoço do jogo de futebol, aquele com o grupo das crianças em viagem pela escola. E lá estavam elas novamente, jantando disciplinadamente.
Que maravilha voltar à mansidão, ao silêncio, à atmosfera simples de La Paloma, longe, bem longe da badalação otária de Punta del Este. A noite estava fresca, sem o frio intenso das anteriores. Relaxamos no bucolismo da cidadezinha com raríssimos turistas.
Retornamos ao hotel, gratificados pelo dia ricamente aproveitado, e ricamente questionado, como não poderia deixar de ser.
O vento uivou durante a noite toda, embora até a meia noite a lua quase cheia ainda brilhasse no céu límpido. No entanto, amanheceu nublado, com brisa fria e chuviscos ocasionais.
Entre olhadelas às pancadas de chuva, permanecemos no quarto. Aproveitei para ler mais páginas deliciosas de Espelhos, do Eduardo Galeano. Se em dia de sol, calor e céu azul, as reflexões e relatos desse pensador uruguaio caíam bem, imaginem com o vento e chuva do lado de fora. Páginas com textos curtos e sucintos sobre a história da humanidade, pelo menos os fatos que efetivamente importam à maior parte da humanidade, sob o olhar apurado do escritor, enriquecem e enriquecerão sempre.
Perambulamos pelo centro, bairros e praias de La Paloma debaixo de céu ameaçador, momentaneamente sem chuva.
Numa das travessas das imediações do farol de Santa Maria, avistamos um pastor alemão, raça muito apreciada por ali, sobretudo nos quintais das casas vazias dos moradores de temporada. Era dos grandes e se movimentava atrás da cerca de ripas de madeira. E latia para um cachorro menor que passeava com os donos pela rua de areia. Sabíamos que latiria para nós também, ainda mais que teríamos que passar rente à cerca a fim de desviar das poças d’água criadas pela chuva. Só não sabíamos que o filho-da-puta do dono ou do cuidador tinha deixado o portão da cerca apenas encostado, sem o ferrolho, e o danado do cão fosse abrir o portão com a pata e nos atacar em plena rua. Mas foi exatamente o que aconteceu. O amorzinho veio em nossa direção enquanto passávamos na frente da casa, quase colados à cerca. Desencostou o portão e, latindo e rosnando feito um doido, saiu pela rua. Logo me alcançou e mandou ver uma série de dentadas na parte traseira da coxa. Se manteve assim, rosnando e me mordendo, por uns segundos enquanto mantínhamos nosso ritmo, sem parar, sem correr, sem olhar para trás. Bastou ultrapassarmos a distância mínima de segurança da casa para o cão interromper o ataque e voltar para o interior do quintal, atrás da cerca. Durante o episódio nem o encarei. Apenas notei o vulto e os rosnados atrás de mim. E as dentadas obviamente. Só fomos parar quando nos sentimos numa distância segura. A pele ardia, embora não apresentasse sangramento ou ferimentos mais profundos. A cabeça foi a mil. Meu desejo era matar o pastor alemão e o irresponsável que deixou o portão da cerca destrancado. Fora a raiva, nada a fazer senão desinfetar o local das dentadas. E torcer para que o cachorro estivesse em dia com as vacinas.
Ao sairmos para almoçar, nova pancada de chuva, com muito vento, mais forte que do começo da manhã. Comemos no restaurante do hotel mesmo, muito e bem. Vinho uruguaio regou o lauto almoço, enquanto o mundo desabava do lado de fora, em imagem que contemplávamos pelo vidro do restaurante.
E nos retiramos ao quarto do hotel, mergulhando sob o cobertor extra. Que preguiça para lá de bem-vinda! Li Eduardo Galeano, tiramos uma soneca, li mais, não fiz nada, depois mais nada ainda, até que o tempo abriu quase totalmente.
O hotel lotou, de uruguaios e principalmente de argentinos, entre famílias e casais. A quantidade de carros estacionados em frente e a agitação durante as refeições apontava a chegada do fim de semana portenho.
continua...

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Uruguai e Argentina (parte 1/5)

Fazia tempos que eu tinha curiosidade de visitar o Uruguai, país pouco falado pelos viajantes. Além do Suriname, era o único país da América do Sul no qual eu jamais botara os pés.
Teríamos bastante tempo para o Uruguai e para um pulo na Argentina, pelo menos em Buenos Aires e arredores. E fora da temporada, evitando as hordas de visitantes que certamente entupiriam as cidades e encareceriam os preços.
Então lá fomos pela via aérea, aproveitando as milhas dos programas de fidelidade, para Montevidéu no começo de novembro. Optei pelo metrô até a estação Tatuapé, onde tomei ônibus comum ao aeroporto de Cumbica.
Partimos imediatamente para o embarque a fim de flanar pelas lojas, na verdade uma só, do dutyfree. Nada de nada, fora os cheiros enjoativos dos perfumes importados e caríssimos que nos ofereciam para testar e que depois não nos largavam mesmo lavando bem com sabonete. Era um odor adocicado, nauseante, pegajoso.
Comemos somente um sanduíche pequeno servido pela empresa aérea no voo até a capital uruguaia, que nos recebeu sob as nuvens e com temperatura fresca.
O veículo que nos conduziu ao centro da cidade acompanhou todo o litoral de Montevidéu. O bairro de Carrasco guardava mansões e apartamentos de alto padrão, de no máximo quatro andares, entre ruas arborizadas e muita tranquilidade. À medida que nos aproximávamos do centro, os edifícios subiam de altura e caíam de qualidade, sem jamais se mostrarem decrépitos ou inabitáveis.
Depois de hospedados no centro da cidade, saímos para reconhecimento da vizinhança e encontrar local para encher a pança. Encaramos uma mistura de bar, lanchonete e restaurante. De decoração despretensiosa, o estabelecimento mal tinha entrado no horário de jantar. Comemos bife a milanesa, coberto por dois ovos fritos cada um, batatas frias e pão. A jarra de vinho da casa ajudou a hidratar as vias.
Me senti em casa perambulando pelas ruas de Montevidéu, tal a semelhança de rostos, tipos, jeitos, arquitetura do começo do século XX, guardadores de carro, alguns mendigos.
De diferente, aliás, bem diferente, a gigantesca quantidade de pessoas, de todos os estilos, sentadas ou andando pelas calçadas, com a cuia e a bomba de chimarrão na mão, a garrafa térmica metálica debaixo do mesmo braço. O costume era infinitamente mais numeroso e intenso que no Rio Grande do Sul ou na Argentina. E dá-lhe chupadas na bomba, reabastecimento de água quente da garrafa térmica, rearranjos do mate na cuia. Mulheres, homens, jovens, idosos, vestindo roupas formais, como terno e gravata, ou à vontade, de bermudas, tipos conservadores, moderninhos, descolados, sozinhos ou em grupos, praticamente todos. Em todas as direções, dezenas, centenas, milhares de usuários de chimarrão, ali chamado de mate.
A névoa baixa só se dissipou no final da manhã seguinte, mas não impedia, da janela do quarto, de avistar o horizonte, o rio, as construções mais distantes.
Passamos pela praça Independência, tendo ao centro a imponente estátua de José Artigas, herói nacional do Uruguai, sob o cavalo. Ao lado, a moderna sede da presidência da república, ocupada, na época, pelo progressista José “Pepe” Mujica. Na esquina com a avenida 18 de Julho, altíssimo prédio do início do século XX, em formato irregular e rebuscado, bastante interessante, cujo topo, em domo, se projetava rumo ao céu, acima de tudo e de todos.
Cruzamos o portal de pedra, resquício da antiga cidade fortificada, ao fundo da praça, e mergulhamos no miolo da Cidade Velha de Montevidéu. Perambulamos entre prédios antigos, da virada dos séculos XIX para o XX, outros nem tanto. Uns conservados, imponentes, charmosos, como o Banco da República, outros decrépitos, interditados para futuras reformas, ou simplesmente abandonados. Barracas de artesanatos, antiguidades, velharias, pipocavam, principalmente nas imediações da praça da Constituição, que abrigava também a Catedral metropolitana.
À medida que avançávamos rumo à ponta da cidade, ao limite das águas do rio da Prata, a cidade se estreitava e se deteriorava. As águas à esquerda e à direita se aproximavam. Moradores de rua, dependentes químicos, pedintes, poucos e nada ameaçadores àquela hora da manhã.
O reduzido movimento comercial e administrativo do sábado suavizou a caminhada por ruas, avenidas, becos.
E, finalmente, caímos na zona portuária, mais especificamente nas imediações do Mercado do Porto, principal atração turística de Montevidéu e sem atrativo externo, exceto duas seculares fontes metálicas de água potável na calçada em frente. Nos interiores, lojinhas de quinquilharias, mas especialmente diversos restaurantes típicos servindo carnes e mais carnes, de todos os tipos e sabores, grelhadas nas vistosas e exibidas grelhas, bem abastecidas de carvão em meio às chamas altas e avermelhadas.
A grande concentração de restaurantes, aliada à circulação de centenas de turistas, obrigava os garçons a sair à cata dos clientes. Nada ostensivo, sufocante, perturbador, mas presente e incisivo.
Escolhemos o restaurante cujo caçador de clientes foi mais simpático, conversador, puxando papos ensaiados sobre futebol assim que descobriu nossa cidade de origem. Até provocou que ele e os demais deveriam se preocupar com os bolsos se fôssemos corintianos. De qualquer maneira, o local tinha bom aspecto e os preços nos atraíram.
Matamos uma garrafa de vinho branco frisante, o popular Medyo y Medyo. Abrimos a refeição com um suculento chouriço, e caímos de cabeça em generosos pedaços de carne de boi acompanhada de salada mista e batata frita. A onipresente cesta de pães não poderia faltar na mesa uruguaia. Não deixamos farelo sobre farelo.
Já de volta, visitamos os exteriores do imponente teatro Solis, ao qual o afluxo de idosos para uma apresentação vespertina nos chamou a atenção. Eram todos bem velhinhos, alguns amparados por bengalas, muletas, cadeiras de rodas, cuidadores. Todos invariavelmente bem vestidos e orgulhosos para o evento.
Descemos a rua lateral ao teatro até a orla e margeamos a rambla, avenida e calçadão costeiro ao rio e ao mar, cuja extensão ultrapassava os vinte quilômetros, livre e sem interrupções ou qualquer tipo de comércio, quase vazia naquela tarde de sol tímido.
Para o bem dos uruguaios e felicidade geral da nação, não identificamos aquele comportamento esquizofrênico, tão comum pelo Brasil e outros países afora, em que as ovelhinhas de rebanho cutucam histericamente os celulares, geralmente conectando ações sem qualquer importância pessoal ou social. É claro, um ou outro se comunicava em ligações telefônicas móveis, mas a maioria não desfilava com esse objeto quase sempre supérfluo, preferindo mantê-lo em casa, nas bolsas ou nos bolsos.
À noite, nos estufamos de comida no café e restaurante da avenida 18 de Julho. Precisávamos nos movimentar. O vento frio e cortante, no entanto, nos impediu de relaxar em andanças digestivas e exploratórias pela cidade. Nas esquinas e na beira do rio e do mar, o clima exigia o casaco fechado. Longe do vento, difícil de suportar mesmo durante o dia, a temperatura era bem agradável.
Na outra manhã, saímos a pé pela avenida 18 de Julho, sentido leste. Alguns quarteirões padronizados de cinquenta metros de comprimento depois, atingimos a rua Tristán Narvaja, ao longo da qual, e em mais algumas transversais, acontecia a feira dominical.
Pela extensa área se vendia de tudo, comidas frescas e preparadas, roupas, quinquilharias, antiguidades, velharias, artigos eletrônicos, artesanatos, utilidades e inutilidades, dispostas em bancadas cobertas como nas feiras livres brasileiras. Nas calçadas e nos comércios fixos, mais antiguidades, cafés, bares velhos e tradicionais, nem sempre bem conservados, mas sempre prestigiados, além de dezenas de sebos repletos de livros variados, para fazer inveja a um Brasil de não leitores. Na calçada da avenida 18 de Julho, mudas de plantas, cobras, ratos, lagartos, tartarugas, todos vivos.
Na calçada oposta da avenida, a Universidade da República, expondo faixas e cartazes, pendurados ou colados, por mais investimentos na educação, contra a retirada de estudantes das moradias estudantis, entre outras reivindicações.
Dali, prosseguimos até o cruzamento com o Boulevard Artigas, larga e extensa avenida norte-sul, onde se erguia o obelisco dos constituintes de 1830 que escreveram a primeira constituição do Uruguai após a independência dos invasores espanhóis, mas negando direitos elementares à maioria do povo. Assim denunciou o escritor uruguaio Eduardo Galeano em excelentes livros, inclusive no clássico Veias Abertas da América Latina e em Espelhos, este um de meus livros favoritos e estrategicamente presente na bagagem daquela viagem.
Do obelisco, alcançamos o terminal rodoviário de Tres Cruces. Sobre o terminal, o xópin de mesmo nome e, como todos os xópins da face da terra, pasteurizado e repugnante, voltado exclusivamente ao consumismo doentio. Mas, como em todos os xópins do mundo, valeu pelos banheiros, somente pelos banheiros.
Retornamos ao centro da cidade de ônibus urbano. Comemos ravióli ao sugo com frango, precedido pela insípida Grappamiel, mescla industrial de aguardente de uva e mel, e regado ao Clericó, uma mistura refrescante de vinho branco, licor, pedaços de frutas variadas e pedras de gelo. Encontramos mesa na janela para a avenida, com direito a contemplação do movimento das calçadas, especialmente do Chafariz dos Cadeados, em cujo entorno os casais afixavam cadeados com os respectivos nomes, garantindo assim, pelo menos conforme a lenda, a eternidade do amor. Os turistas paravam e se fotografavam ao lado dos cadeados, de frente, de lado, um de cada vez, os dois juntinhos.
Esticamos às quilométricas ramblas que costeiam as águas do rio e do mar, sob o sol forte da tarde. Alcançamos as praias de areias brancas, após passar ao lado de discretas plataformas de pesca, largos para namorar e relaxar, pistas de patins, muito espaço disponível para olhar as águas, ler, ouvir música, conversar, passar o tempo sem pressa. Os montevideanos botaram fé no sol vespertino daquele domingo e baixaram em peso à orla da capital. Havia espaço para toda a população da cidade, para os turistas e mais um pouco. Nada lotava em Montevidéu, cidade repleta de espaços públicos e democráticos, bem diferente da privatizada e desumana São Paulo, cidade em que, na ausência dos mesmos espaços livres, a população se vê obrigada a “passear” e consumir supérfluos caros nos xópins da cidade.
Na capital uruguaia, como não poderia deixar de ser, mesmo em tarde quente e ensolarada, a população vinha acompanhada do onipresente chimarrão. A cuia e a bomba numa mão, a garrafa térmica metálica sob o mesmo braço. Caminhavam assim, se sentavam assim, se movimentavam assim, conversavam assim, paravam assim, entre sugadas de mate, todos os dias.
Retornamos ao quarto do hotel, esgotados de tanto andar para cima e para baixo. Abrimos a janelona voltada para o poente e o sol entrou em cheio. Preguiça merecida em tarde sem sensação de frio.
E refletimos sobre a inveja positiva que os uruguaios despertam nos brasileiros, em especial nos moradores da maioria das cidades grandes. Os uruguaios prestigiavam os locais públicos e democráticos, praças, parques, calçadões das ramblas, em família, casais, sós, jovens e idosos, pobres e ricos. Sem falar nas ruas arborizadas de plátanos, em ambas as calçadas, cujas copas se encostavam acima, formando alamedas sombreadas e esverdeadas. Também a diversidade nos logradouros públicos, bares, restaurantes, cinemas, teatros, áreas de lazer em geral, de idosos ao lado de jovens, casais próximos a turminhas, grupos em contato com pessoas sós, idades e tipos díspares convivendo no corpo a corpo.
O sol ainda brilhava depois das 19h quando saímos para experimentar o Chivito, o famoso sanduiche uruguaio. Contando com várias receitas, o Chivito trazia uma infinidade de ingredientes, vegetais e de carne, crus e cozidos, entre as metades do pão. Detonei o lanche regado à jarra de vinho.
A noite surpreendentemente quente, e sem o vento, atraiu montevideanos e turistas para as ruas, calçadas e praças do centro. A lua quarto-crescente no topo do céu limpo de nuvens coroou a cálida noite.
Segunda-feira útil em Montevidéu. Andamos a esmo pela Cidade Velha, observando pela segunda vez as construções neoclássicas, pesadas e atraentes.
Pegamos o ônibus municipal turístico e percorremos as principais atrações de Montevidéu, as já exploradas e as ainda não contempladas. Entre as últimas, o parque Batlle, o bairro e parque do Prado, repleto de verde e bucolismo, o estádio de futebol Centenário, a orla com as praias do bairro de Pocitos e Punta Carretas.
Esperávamos dia claro e ensolarado como o anterior, mas nublou e esfriou. Quase congelamos na parte superior e aberta do ônibus. Mesmo tremendo de frio diante do vento cortante, aguentamos firme todo o trajeto.
Assim que o circuito terminou, corremos para o Mercado do Porto, nos esquentando com uma dose de aguardente de uva, a Grappa uruguaia. Pedimos uma garrafa de vinho uruguaio e caímos de cabeça na fraldinha grelhada, ao ponto, enriquecida com molho levemente picante.
continua...