Fazia tempos que eu tinha curiosidade de visitar o Uruguai,
país pouco falado pelos viajantes. Além do Suriname, era o único país da
América do Sul no qual eu jamais botara os pés.
Teríamos bastante tempo para o Uruguai e para um pulo na
Argentina, pelo menos em Buenos Aires e arredores. E fora da temporada,
evitando as hordas de visitantes que certamente entupiriam as cidades e
encareceriam os preços.
Então lá fomos pela via aérea, aproveitando as milhas dos
programas de fidelidade, para Montevidéu no começo de novembro. Optei
pelo metrô até a estação Tatuapé, onde tomei ônibus comum ao aeroporto de
Cumbica.
Partimos imediatamente para o embarque a fim de flanar
pelas lojas, na verdade uma só, do dutyfree.
Nada de nada, fora os cheiros enjoativos dos perfumes importados e caríssimos que
nos ofereciam para testar e que depois não nos largavam mesmo lavando bem com
sabonete. Era um odor adocicado, nauseante, pegajoso.
Comemos somente um sanduíche pequeno servido pela empresa
aérea no voo até a capital uruguaia, que nos recebeu sob as nuvens e com
temperatura fresca.
O veículo que nos conduziu ao centro da cidade acompanhou
todo o litoral de Montevidéu. O bairro de Carrasco guardava mansões e
apartamentos de alto padrão, de no máximo quatro andares, entre ruas
arborizadas e muita tranquilidade. À medida que nos aproximávamos do centro, os
edifícios subiam de altura e caíam de qualidade, sem jamais se mostrarem
decrépitos ou inabitáveis.
Depois de hospedados no centro da cidade, saímos para
reconhecimento da vizinhança e encontrar local para encher a pança. Encaramos
uma mistura de bar, lanchonete e restaurante. De decoração despretensiosa, o
estabelecimento mal tinha entrado no horário de jantar. Comemos bife a
milanesa, coberto por dois ovos fritos cada um, batatas frias e pão. A jarra de
vinho da casa ajudou a hidratar as vias.
Me senti em casa perambulando pelas ruas de Montevidéu,
tal a semelhança de rostos, tipos, jeitos, arquitetura do começo do século XX,
guardadores de carro, alguns mendigos.
De diferente, aliás, bem diferente, a gigantesca
quantidade de pessoas, de todos os estilos, sentadas ou andando pelas calçadas,
com a cuia e a bomba de chimarrão na mão, a garrafa térmica metálica debaixo do
mesmo braço. O costume era infinitamente mais numeroso e intenso que no Rio
Grande do Sul ou na Argentina. E dá-lhe chupadas na bomba, reabastecimento de
água quente da garrafa térmica, rearranjos do mate na cuia. Mulheres, homens,
jovens, idosos, vestindo roupas formais, como terno e gravata, ou à vontade, de
bermudas, tipos conservadores, moderninhos, descolados, sozinhos ou em grupos, praticamente
todos. Em todas as direções, dezenas, centenas, milhares de usuários de
chimarrão, ali chamado de mate.
A névoa baixa só se dissipou no final da manhã seguinte, mas
não impedia, da janela do quarto, de avistar o horizonte, o rio, as construções
mais distantes.
Passamos pela praça Independência, tendo ao centro a
imponente estátua de José Artigas, herói nacional do Uruguai, sob o cavalo. Ao
lado, a moderna sede da presidência da república, ocupada, na época, pelo
progressista José “Pepe” Mujica. Na esquina com a avenida 18 de Julho,
altíssimo prédio do início do século XX, em formato irregular e rebuscado,
bastante interessante, cujo topo, em domo, se projetava rumo ao céu, acima de
tudo e de todos.
Cruzamos o portal de pedra, resquício da antiga cidade
fortificada, ao fundo da praça, e mergulhamos no miolo da Cidade Velha de
Montevidéu. Perambulamos entre prédios antigos, da virada dos séculos XIX para
o XX, outros nem tanto. Uns conservados, imponentes, charmosos, como o Banco da
República, outros decrépitos, interditados para futuras reformas, ou
simplesmente abandonados. Barracas de artesanatos, antiguidades, velharias,
pipocavam, principalmente nas imediações da praça da Constituição, que abrigava
também a Catedral metropolitana.
À medida que avançávamos rumo à ponta da cidade, ao limite
das águas do rio da Prata, a cidade se estreitava e se deteriorava. As águas à
esquerda e à direita se aproximavam. Moradores de rua, dependentes químicos,
pedintes, poucos e nada ameaçadores àquela hora da manhã.
O reduzido movimento comercial e administrativo do sábado
suavizou a caminhada por ruas, avenidas, becos.
E, finalmente, caímos na zona portuária, mais
especificamente nas imediações do Mercado do Porto, principal atração turística
de Montevidéu e sem atrativo externo, exceto duas seculares fontes metálicas de
água potável na calçada em frente. Nos interiores, lojinhas de quinquilharias,
mas especialmente diversos restaurantes típicos servindo carnes e mais carnes,
de todos os tipos e sabores, grelhadas nas vistosas e exibidas grelhas, bem
abastecidas de carvão em meio às chamas altas e avermelhadas.
A grande concentração de restaurantes, aliada à circulação
de centenas de turistas, obrigava os garçons a sair à cata dos clientes. Nada
ostensivo, sufocante, perturbador, mas presente e incisivo.
Escolhemos o restaurante cujo caçador de clientes foi mais
simpático, conversador, puxando papos ensaiados sobre futebol assim que descobriu
nossa cidade de origem. Até provocou que ele e os demais deveriam se preocupar
com os bolsos se fôssemos corintianos. De qualquer maneira, o local tinha bom
aspecto e os preços nos atraíram.
Matamos uma garrafa de vinho branco frisante, o popular Medyo y Medyo. Abrimos a refeição com um
suculento chouriço, e caímos de cabeça em generosos pedaços de carne de boi
acompanhada de salada mista e batata frita. A onipresente cesta de pães não
poderia faltar na mesa uruguaia. Não deixamos farelo sobre farelo.
Já de volta, visitamos os exteriores do imponente teatro
Solis, ao qual o afluxo de idosos para uma apresentação vespertina nos chamou a
atenção. Eram todos bem velhinhos, alguns amparados por bengalas, muletas,
cadeiras de rodas, cuidadores. Todos invariavelmente bem vestidos e orgulhosos
para o evento.
Descemos a rua lateral ao teatro até a orla e margeamos a rambla, avenida e calçadão costeiro ao
rio e ao mar, cuja extensão ultrapassava os vinte quilômetros, livre e sem
interrupções ou qualquer tipo de comércio, quase vazia naquela tarde de sol
tímido.
Para o bem dos uruguaios e felicidade geral da nação, não identificamos
aquele comportamento esquizofrênico, tão comum pelo Brasil e outros países
afora, em que as ovelhinhas de rebanho cutucam histericamente os celulares,
geralmente conectando ações sem qualquer importância pessoal ou social. É
claro, um ou outro se comunicava em ligações telefônicas móveis, mas a maioria
não desfilava com esse objeto quase sempre supérfluo, preferindo mantê-lo em
casa, nas bolsas ou nos bolsos.
À noite, nos estufamos de comida no café e restaurante da
avenida 18 de Julho. Precisávamos nos movimentar. O vento frio e cortante, no
entanto, nos impediu de relaxar em andanças digestivas e exploratórias pela
cidade. Nas esquinas e na beira do rio e do mar, o clima exigia o casaco
fechado. Longe do vento, difícil de suportar mesmo durante o dia, a temperatura
era bem agradável.
Na outra manhã, saímos a pé pela avenida 18 de Julho,
sentido leste. Alguns quarteirões padronizados de cinquenta metros de
comprimento depois, atingimos a rua Tristán Narvaja, ao longo da qual, e em mais
algumas transversais, acontecia a feira dominical.
Pela extensa área se vendia de tudo, comidas frescas e
preparadas, roupas, quinquilharias, antiguidades, velharias, artigos
eletrônicos, artesanatos, utilidades e inutilidades, dispostas em bancadas
cobertas como nas feiras livres brasileiras. Nas calçadas e nos comércios
fixos, mais antiguidades, cafés, bares velhos e tradicionais, nem sempre bem
conservados, mas sempre prestigiados, além de dezenas de sebos repletos de
livros variados, para fazer inveja a um Brasil de não leitores. Na calçada da
avenida 18 de Julho, mudas de plantas, cobras, ratos, lagartos, tartarugas,
todos vivos.
Na calçada oposta da avenida, a Universidade da República,
expondo faixas e cartazes, pendurados ou colados, por mais investimentos na
educação, contra a retirada de estudantes das moradias estudantis, entre outras
reivindicações.
Dali, prosseguimos até o cruzamento com o Boulevard
Artigas, larga e extensa avenida norte-sul, onde se erguia o obelisco dos
constituintes de 1830 que escreveram a primeira constituição do Uruguai após a
independência dos invasores espanhóis, mas negando direitos elementares à
maioria do povo. Assim denunciou o escritor uruguaio Eduardo Galeano em
excelentes livros, inclusive no clássico Veias
Abertas da América Latina e em Espelhos,
este um de meus livros favoritos e estrategicamente presente na bagagem daquela
viagem.
Do obelisco, alcançamos o terminal rodoviário de Tres
Cruces. Sobre o terminal, o xópin de mesmo nome e, como todos os xópins da face
da terra, pasteurizado e repugnante, voltado exclusivamente ao consumismo
doentio. Mas, como em todos os xópins do mundo, valeu pelos banheiros, somente pelos
banheiros.
Retornamos ao centro da cidade de ônibus urbano. Comemos
ravióli ao sugo com frango, precedido pela insípida Grappamiel, mescla industrial de aguardente de uva e mel, e regado ao
Clericó, uma mistura refrescante de
vinho branco, licor, pedaços de frutas variadas e pedras de gelo. Encontramos
mesa na janela para a avenida, com direito a contemplação do movimento das
calçadas, especialmente do Chafariz dos Cadeados,
em cujo entorno os casais afixavam cadeados com os respectivos nomes, garantindo
assim, pelo menos conforme a lenda, a eternidade do amor. Os turistas paravam e
se fotografavam ao lado dos cadeados, de frente, de lado, um de cada vez, os
dois juntinhos.
Esticamos às quilométricas ramblas que costeiam as águas do rio e do mar, sob o sol forte da
tarde. Alcançamos as praias de areias brancas, após passar ao lado de discretas
plataformas de pesca, largos para namorar e relaxar, pistas de patins, muito
espaço disponível para olhar as águas, ler, ouvir música, conversar, passar o
tempo sem pressa. Os montevideanos botaram fé no sol vespertino daquele domingo
e baixaram em peso à orla da capital. Havia espaço para toda a população da
cidade, para os turistas e mais um pouco. Nada lotava em Montevidéu, cidade
repleta de espaços públicos e democráticos, bem diferente da privatizada e
desumana São Paulo, cidade em que, na ausência dos mesmos espaços livres, a
população se vê obrigada a “passear” e consumir supérfluos caros nos xópins da
cidade.
Na capital uruguaia, como não poderia deixar de ser, mesmo
em tarde quente e ensolarada, a população vinha acompanhada do onipresente
chimarrão. A cuia e a bomba numa mão, a garrafa térmica metálica sob o mesmo
braço. Caminhavam assim, se sentavam assim, se movimentavam assim, conversavam
assim, paravam assim, entre sugadas de mate, todos os dias.
Retornamos ao quarto do hotel, esgotados de tanto andar
para cima e para baixo. Abrimos a janelona voltada para o poente e o sol entrou
em cheio. Preguiça merecida em tarde sem sensação de frio.
E refletimos sobre a inveja positiva que os uruguaios despertam
nos brasileiros, em especial nos moradores da maioria das cidades grandes. Os
uruguaios prestigiavam os locais públicos e democráticos, praças, parques,
calçadões das ramblas, em família,
casais, sós, jovens e idosos, pobres e ricos. Sem falar nas ruas arborizadas de
plátanos, em ambas as calçadas, cujas copas se encostavam acima, formando
alamedas sombreadas e esverdeadas. Também a diversidade nos logradouros
públicos, bares, restaurantes, cinemas, teatros, áreas de lazer em geral, de
idosos ao lado de jovens, casais próximos a turminhas, grupos em contato com
pessoas sós, idades e tipos díspares convivendo no corpo a corpo.
O sol ainda brilhava depois das 19h quando saímos para
experimentar o Chivito, o famoso
sanduiche uruguaio. Contando com várias receitas, o Chivito trazia uma infinidade de ingredientes, vegetais e de carne,
crus e cozidos, entre as metades do pão. Detonei o lanche regado à jarra de
vinho.
A noite surpreendentemente quente, e sem o vento, atraiu
montevideanos e turistas para as ruas, calçadas e praças do centro. A lua
quarto-crescente no topo do céu limpo de nuvens coroou a cálida noite.
Segunda-feira útil em Montevidéu. Andamos a esmo pela
Cidade Velha, observando pela segunda vez as construções neoclássicas, pesadas
e atraentes.
Pegamos o ônibus municipal turístico e percorremos as
principais atrações de Montevidéu, as já exploradas e as ainda não contempladas.
Entre as últimas, o parque Batlle, o bairro e parque do Prado, repleto de verde
e bucolismo, o estádio de futebol Centenário, a orla com as praias do bairro de
Pocitos e Punta Carretas.
Esperávamos dia claro e ensolarado como o anterior, mas
nublou e esfriou. Quase congelamos na parte superior e aberta do ônibus. Mesmo
tremendo de frio diante do vento cortante, aguentamos firme todo o trajeto.
Assim que o circuito terminou, corremos para o Mercado do
Porto, nos esquentando com uma dose de aguardente de uva, a Grappa uruguaia. Pedimos uma garrafa de
vinho uruguaio e caímos de cabeça na fraldinha grelhada, ao ponto, enriquecida
com molho levemente picante.
continua...
Meu amigo..a quanto tempo não aprecia aqui..e que bom já vendo seus passeios.
ResponderExcluirEu e meu marido estamos planejando ir para o Peru, começando pela Argentina ou Mato Grosso , ou Chile. Queremos fazer tipo muchileiros. E estamos querendo gastar o mínimo com hospedagens e passagens para poder gastar com outras coisas em todos os lugares que passarmos. Estou anciosa por esta viajem, será uma aventura e tanto. Te conto depois. Se tiver dicas, fique a vontade, serão de ótima ajuda.Meu marido pediu para eu reservar seu link para ele ler com calma quando chegar em casa.Ele esta lendo tudo que vê, em que tiver algo sobre nossos roteiros, ainda em definidos kkk
Adorei sua colocação sobre o Uruguai "não identificamos aquele comportamento esquizofrênico, tão comum pelo Brasil e outros países afora, em que as ovelhinhas de rebanho cutucam histericamente os celulares, geralmente conectando ações sem qualquer importância pessoal ou social." abraços meu amigo.
Oi Sherol, obrigado pelo comentário!
ResponderExcluirEspero que realizem mesmo essa viagem.
Por que não sobem o noroeste da Argentina, cruzam a Bolívia e chegam no Peru?
Não exatamente por esse roteiro, mas fui mais de uma vez ao Peru. Deem uma olhada nos relatos aqui do blog.
E fiquem à vontade para perguntar.
Abraços!
Oi Viajante Sustentável, parece que Montevideo não mudou nada. Estive lá há muitos anos, era mocinha, tenho parentes lá. Na época fiquei deslumbrada com sua arquitetura européia, seus monumentos, praças bastante arborizadas, muita identificação com o povo gaúcho, cidade limpa, tranquila e uma boa culinária. Ah!! Sem falar nos antiquários, na época chamavam Montevideo: - Suíça da América do Sul. Aqui, compramos produtos uruguaios eletrodomésticos, roupas,queijos, vinhos, perfumes...em Rivera que faz fronteira com o Brasil e dista 200 km daqui. Adorei teu relato, fiquei atualizada com a Montevideo atual. Abraços
ResponderExcluirOi Ivete, tudo bem?
ResponderExcluirParece sim que a cidade não mudou nada, pelo que você e outras pessoas comentam. O tempo lá passa mais devagar, há mais tranquilidade, o urbanismo é mais humano. Faz muito bem estar e ficar em Montevidéu.
É uma cidade e um país para volta e ficar mais tempo.
Comente sempre.
Abraços!
Viajante sustentável, obrigada pela abordagem fidedigna e pelo respeito e carinho com que descreve nossa cidade e os nossos costumes. Parafraseando Baiano do Zorra Total confesso que "Eu tento sair de Montevideo mas, Montevideo não sai de mim !!!". Rs...
ResponderExcluirOlá, Renee, obrigado pela visita e comentários.
ResponderExcluirRealmente adorei o Uruguai e os uruguaios. É um país para voltar e ficar mais tempo.
Fique à vontade para pesquisar e comentar os relatos do blog, esse e tantos outros sobre o Brasil e diversos países da América, África, Ásia, Europa.
Abraços.
Muito legal o relato! Montevideo é a próxima cidade que visitarei, tirarei ótimas dicas daqui ;)
ResponderExcluirOi voluntas, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirO Uruguai foi uma grata surpresa. Tranquilo, sem badalaçao ou grandes atrações turísticas, com povo educado, prestativo, na dele. Um lugar para ficar, ficar, ficar...
Qualquer coisa me pergunte.
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Não conheço o Uruguai, mas, pela descrição cuidadosa, tem algo de semelhante a Argentina. Estive em Buenos Aires e parecia que eu estava passeando pela Avenida Rio Branco, aqui no Rio de Janeiro. A Argentina tem lugares encantadores. Até o cemitério da Ricoleta, que a princípio eu não iria visitar (e não me arrrependi de ter dado uma chegada lá), me surpreendeu positivamente. Porém, me senti tão desprestigiado na Argentina...Estava com um grupo de brasileiros fazendo prova para guia de turismo....Fomos deixados de lado em alguns restaurantes e me pareceu puro preconceito....teve outros episódios que não vale à pena comementar. Não tenho vontade de voltar a Argentina.
ResponderExcluirMas, sua publicação sobre o Uruguai me deixou curioso sobre este pais da América. Só a tal aguardente de uva, já deve valer à pena, rsss.
Saudações!
Olá!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Conseguiu ler as cinco partes dos relatos dessa viagem?
O Uruguai leva um ritmo mais tranquilo que a Argentina, mas ambos têm muito em comum. Vale à pena... Na Argentina recomendo a Patagônia, bem ao sul, podendo incluir a Patagônia chilena na mesma viagem.
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