quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Uruguai e Argentina (parte 1/5)

Fazia tempos que eu tinha curiosidade de visitar o Uruguai, país pouco falado pelos viajantes. Além do Suriname, era o único país da América do Sul no qual eu jamais botara os pés.
Teríamos bastante tempo para o Uruguai e para um pulo na Argentina, pelo menos em Buenos Aires e arredores. E fora da temporada, evitando as hordas de visitantes que certamente entupiriam as cidades e encareceriam os preços.
Então lá fomos pela via aérea, aproveitando as milhas dos programas de fidelidade, para Montevidéu no começo de novembro. Optei pelo metrô até a estação Tatuapé, onde tomei ônibus comum ao aeroporto de Cumbica.
Partimos imediatamente para o embarque a fim de flanar pelas lojas, na verdade uma só, do dutyfree. Nada de nada, fora os cheiros enjoativos dos perfumes importados e caríssimos que nos ofereciam para testar e que depois não nos largavam mesmo lavando bem com sabonete. Era um odor adocicado, nauseante, pegajoso.
Comemos somente um sanduíche pequeno servido pela empresa aérea no voo até a capital uruguaia, que nos recebeu sob as nuvens e com temperatura fresca.
O veículo que nos conduziu ao centro da cidade acompanhou todo o litoral de Montevidéu. O bairro de Carrasco guardava mansões e apartamentos de alto padrão, de no máximo quatro andares, entre ruas arborizadas e muita tranquilidade. À medida que nos aproximávamos do centro, os edifícios subiam de altura e caíam de qualidade, sem jamais se mostrarem decrépitos ou inabitáveis.
Depois de hospedados no centro da cidade, saímos para reconhecimento da vizinhança e encontrar local para encher a pança. Encaramos uma mistura de bar, lanchonete e restaurante. De decoração despretensiosa, o estabelecimento mal tinha entrado no horário de jantar. Comemos bife a milanesa, coberto por dois ovos fritos cada um, batatas frias e pão. A jarra de vinho da casa ajudou a hidratar as vias.
Me senti em casa perambulando pelas ruas de Montevidéu, tal a semelhança de rostos, tipos, jeitos, arquitetura do começo do século XX, guardadores de carro, alguns mendigos.
De diferente, aliás, bem diferente, a gigantesca quantidade de pessoas, de todos os estilos, sentadas ou andando pelas calçadas, com a cuia e a bomba de chimarrão na mão, a garrafa térmica metálica debaixo do mesmo braço. O costume era infinitamente mais numeroso e intenso que no Rio Grande do Sul ou na Argentina. E dá-lhe chupadas na bomba, reabastecimento de água quente da garrafa térmica, rearranjos do mate na cuia. Mulheres, homens, jovens, idosos, vestindo roupas formais, como terno e gravata, ou à vontade, de bermudas, tipos conservadores, moderninhos, descolados, sozinhos ou em grupos, praticamente todos. Em todas as direções, dezenas, centenas, milhares de usuários de chimarrão, ali chamado de mate.
A névoa baixa só se dissipou no final da manhã seguinte, mas não impedia, da janela do quarto, de avistar o horizonte, o rio, as construções mais distantes.
Passamos pela praça Independência, tendo ao centro a imponente estátua de José Artigas, herói nacional do Uruguai, sob o cavalo. Ao lado, a moderna sede da presidência da república, ocupada, na época, pelo progressista José “Pepe” Mujica. Na esquina com a avenida 18 de Julho, altíssimo prédio do início do século XX, em formato irregular e rebuscado, bastante interessante, cujo topo, em domo, se projetava rumo ao céu, acima de tudo e de todos.
Cruzamos o portal de pedra, resquício da antiga cidade fortificada, ao fundo da praça, e mergulhamos no miolo da Cidade Velha de Montevidéu. Perambulamos entre prédios antigos, da virada dos séculos XIX para o XX, outros nem tanto. Uns conservados, imponentes, charmosos, como o Banco da República, outros decrépitos, interditados para futuras reformas, ou simplesmente abandonados. Barracas de artesanatos, antiguidades, velharias, pipocavam, principalmente nas imediações da praça da Constituição, que abrigava também a Catedral metropolitana.
À medida que avançávamos rumo à ponta da cidade, ao limite das águas do rio da Prata, a cidade se estreitava e se deteriorava. As águas à esquerda e à direita se aproximavam. Moradores de rua, dependentes químicos, pedintes, poucos e nada ameaçadores àquela hora da manhã.
O reduzido movimento comercial e administrativo do sábado suavizou a caminhada por ruas, avenidas, becos.
E, finalmente, caímos na zona portuária, mais especificamente nas imediações do Mercado do Porto, principal atração turística de Montevidéu e sem atrativo externo, exceto duas seculares fontes metálicas de água potável na calçada em frente. Nos interiores, lojinhas de quinquilharias, mas especialmente diversos restaurantes típicos servindo carnes e mais carnes, de todos os tipos e sabores, grelhadas nas vistosas e exibidas grelhas, bem abastecidas de carvão em meio às chamas altas e avermelhadas.
A grande concentração de restaurantes, aliada à circulação de centenas de turistas, obrigava os garçons a sair à cata dos clientes. Nada ostensivo, sufocante, perturbador, mas presente e incisivo.
Escolhemos o restaurante cujo caçador de clientes foi mais simpático, conversador, puxando papos ensaiados sobre futebol assim que descobriu nossa cidade de origem. Até provocou que ele e os demais deveriam se preocupar com os bolsos se fôssemos corintianos. De qualquer maneira, o local tinha bom aspecto e os preços nos atraíram.
Matamos uma garrafa de vinho branco frisante, o popular Medyo y Medyo. Abrimos a refeição com um suculento chouriço, e caímos de cabeça em generosos pedaços de carne de boi acompanhada de salada mista e batata frita. A onipresente cesta de pães não poderia faltar na mesa uruguaia. Não deixamos farelo sobre farelo.
Já de volta, visitamos os exteriores do imponente teatro Solis, ao qual o afluxo de idosos para uma apresentação vespertina nos chamou a atenção. Eram todos bem velhinhos, alguns amparados por bengalas, muletas, cadeiras de rodas, cuidadores. Todos invariavelmente bem vestidos e orgulhosos para o evento.
Descemos a rua lateral ao teatro até a orla e margeamos a rambla, avenida e calçadão costeiro ao rio e ao mar, cuja extensão ultrapassava os vinte quilômetros, livre e sem interrupções ou qualquer tipo de comércio, quase vazia naquela tarde de sol tímido.
Para o bem dos uruguaios e felicidade geral da nação, não identificamos aquele comportamento esquizofrênico, tão comum pelo Brasil e outros países afora, em que as ovelhinhas de rebanho cutucam histericamente os celulares, geralmente conectando ações sem qualquer importância pessoal ou social. É claro, um ou outro se comunicava em ligações telefônicas móveis, mas a maioria não desfilava com esse objeto quase sempre supérfluo, preferindo mantê-lo em casa, nas bolsas ou nos bolsos.
À noite, nos estufamos de comida no café e restaurante da avenida 18 de Julho. Precisávamos nos movimentar. O vento frio e cortante, no entanto, nos impediu de relaxar em andanças digestivas e exploratórias pela cidade. Nas esquinas e na beira do rio e do mar, o clima exigia o casaco fechado. Longe do vento, difícil de suportar mesmo durante o dia, a temperatura era bem agradável.
Na outra manhã, saímos a pé pela avenida 18 de Julho, sentido leste. Alguns quarteirões padronizados de cinquenta metros de comprimento depois, atingimos a rua Tristán Narvaja, ao longo da qual, e em mais algumas transversais, acontecia a feira dominical.
Pela extensa área se vendia de tudo, comidas frescas e preparadas, roupas, quinquilharias, antiguidades, velharias, artigos eletrônicos, artesanatos, utilidades e inutilidades, dispostas em bancadas cobertas como nas feiras livres brasileiras. Nas calçadas e nos comércios fixos, mais antiguidades, cafés, bares velhos e tradicionais, nem sempre bem conservados, mas sempre prestigiados, além de dezenas de sebos repletos de livros variados, para fazer inveja a um Brasil de não leitores. Na calçada da avenida 18 de Julho, mudas de plantas, cobras, ratos, lagartos, tartarugas, todos vivos.
Na calçada oposta da avenida, a Universidade da República, expondo faixas e cartazes, pendurados ou colados, por mais investimentos na educação, contra a retirada de estudantes das moradias estudantis, entre outras reivindicações.
Dali, prosseguimos até o cruzamento com o Boulevard Artigas, larga e extensa avenida norte-sul, onde se erguia o obelisco dos constituintes de 1830 que escreveram a primeira constituição do Uruguai após a independência dos invasores espanhóis, mas negando direitos elementares à maioria do povo. Assim denunciou o escritor uruguaio Eduardo Galeano em excelentes livros, inclusive no clássico Veias Abertas da América Latina e em Espelhos, este um de meus livros favoritos e estrategicamente presente na bagagem daquela viagem.
Do obelisco, alcançamos o terminal rodoviário de Tres Cruces. Sobre o terminal, o xópin de mesmo nome e, como todos os xópins da face da terra, pasteurizado e repugnante, voltado exclusivamente ao consumismo doentio. Mas, como em todos os xópins do mundo, valeu pelos banheiros, somente pelos banheiros.
Retornamos ao centro da cidade de ônibus urbano. Comemos ravióli ao sugo com frango, precedido pela insípida Grappamiel, mescla industrial de aguardente de uva e mel, e regado ao Clericó, uma mistura refrescante de vinho branco, licor, pedaços de frutas variadas e pedras de gelo. Encontramos mesa na janela para a avenida, com direito a contemplação do movimento das calçadas, especialmente do Chafariz dos Cadeados, em cujo entorno os casais afixavam cadeados com os respectivos nomes, garantindo assim, pelo menos conforme a lenda, a eternidade do amor. Os turistas paravam e se fotografavam ao lado dos cadeados, de frente, de lado, um de cada vez, os dois juntinhos.
Esticamos às quilométricas ramblas que costeiam as águas do rio e do mar, sob o sol forte da tarde. Alcançamos as praias de areias brancas, após passar ao lado de discretas plataformas de pesca, largos para namorar e relaxar, pistas de patins, muito espaço disponível para olhar as águas, ler, ouvir música, conversar, passar o tempo sem pressa. Os montevideanos botaram fé no sol vespertino daquele domingo e baixaram em peso à orla da capital. Havia espaço para toda a população da cidade, para os turistas e mais um pouco. Nada lotava em Montevidéu, cidade repleta de espaços públicos e democráticos, bem diferente da privatizada e desumana São Paulo, cidade em que, na ausência dos mesmos espaços livres, a população se vê obrigada a “passear” e consumir supérfluos caros nos xópins da cidade.
Na capital uruguaia, como não poderia deixar de ser, mesmo em tarde quente e ensolarada, a população vinha acompanhada do onipresente chimarrão. A cuia e a bomba numa mão, a garrafa térmica metálica sob o mesmo braço. Caminhavam assim, se sentavam assim, se movimentavam assim, conversavam assim, paravam assim, entre sugadas de mate, todos os dias.
Retornamos ao quarto do hotel, esgotados de tanto andar para cima e para baixo. Abrimos a janelona voltada para o poente e o sol entrou em cheio. Preguiça merecida em tarde sem sensação de frio.
E refletimos sobre a inveja positiva que os uruguaios despertam nos brasileiros, em especial nos moradores da maioria das cidades grandes. Os uruguaios prestigiavam os locais públicos e democráticos, praças, parques, calçadões das ramblas, em família, casais, sós, jovens e idosos, pobres e ricos. Sem falar nas ruas arborizadas de plátanos, em ambas as calçadas, cujas copas se encostavam acima, formando alamedas sombreadas e esverdeadas. Também a diversidade nos logradouros públicos, bares, restaurantes, cinemas, teatros, áreas de lazer em geral, de idosos ao lado de jovens, casais próximos a turminhas, grupos em contato com pessoas sós, idades e tipos díspares convivendo no corpo a corpo.
O sol ainda brilhava depois das 19h quando saímos para experimentar o Chivito, o famoso sanduiche uruguaio. Contando com várias receitas, o Chivito trazia uma infinidade de ingredientes, vegetais e de carne, crus e cozidos, entre as metades do pão. Detonei o lanche regado à jarra de vinho.
A noite surpreendentemente quente, e sem o vento, atraiu montevideanos e turistas para as ruas, calçadas e praças do centro. A lua quarto-crescente no topo do céu limpo de nuvens coroou a cálida noite.
Segunda-feira útil em Montevidéu. Andamos a esmo pela Cidade Velha, observando pela segunda vez as construções neoclássicas, pesadas e atraentes.
Pegamos o ônibus municipal turístico e percorremos as principais atrações de Montevidéu, as já exploradas e as ainda não contempladas. Entre as últimas, o parque Batlle, o bairro e parque do Prado, repleto de verde e bucolismo, o estádio de futebol Centenário, a orla com as praias do bairro de Pocitos e Punta Carretas.
Esperávamos dia claro e ensolarado como o anterior, mas nublou e esfriou. Quase congelamos na parte superior e aberta do ônibus. Mesmo tremendo de frio diante do vento cortante, aguentamos firme todo o trajeto.
Assim que o circuito terminou, corremos para o Mercado do Porto, nos esquentando com uma dose de aguardente de uva, a Grappa uruguaia. Pedimos uma garrafa de vinho uruguaio e caímos de cabeça na fraldinha grelhada, ao ponto, enriquecida com molho levemente picante.
continua...

8 comentários:

  1. Meu amigo..a quanto tempo não aprecia aqui..e que bom já vendo seus passeios.
    Eu e meu marido estamos planejando ir para o Peru, começando pela Argentina ou Mato Grosso , ou Chile. Queremos fazer tipo muchileiros. E estamos querendo gastar o mínimo com hospedagens e passagens para poder gastar com outras coisas em todos os lugares que passarmos. Estou anciosa por esta viajem, será uma aventura e tanto. Te conto depois. Se tiver dicas, fique a vontade, serão de ótima ajuda.Meu marido pediu para eu reservar seu link para ele ler com calma quando chegar em casa.Ele esta lendo tudo que vê, em que tiver algo sobre nossos roteiros, ainda em definidos kkk
    Adorei sua colocação sobre o Uruguai "não identificamos aquele comportamento esquizofrênico, tão comum pelo Brasil e outros países afora, em que as ovelhinhas de rebanho cutucam histericamente os celulares, geralmente conectando ações sem qualquer importância pessoal ou social." abraços meu amigo.

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  2. Oi Sherol, obrigado pelo comentário!
    Espero que realizem mesmo essa viagem.
    Por que não sobem o noroeste da Argentina, cruzam a Bolívia e chegam no Peru?
    Não exatamente por esse roteiro, mas fui mais de uma vez ao Peru. Deem uma olhada nos relatos aqui do blog.
    E fiquem à vontade para perguntar.
    Abraços!

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  3. Oi Viajante Sustentável, parece que Montevideo não mudou nada. Estive lá há muitos anos, era mocinha, tenho parentes lá. Na época fiquei deslumbrada com sua arquitetura européia, seus monumentos, praças bastante arborizadas, muita identificação com o povo gaúcho, cidade limpa, tranquila e uma boa culinária. Ah!! Sem falar nos antiquários, na época chamavam Montevideo: - Suíça da América do Sul. Aqui, compramos produtos uruguaios eletrodomésticos, roupas,queijos, vinhos, perfumes...em Rivera que faz fronteira com o Brasil e dista 200 km daqui. Adorei teu relato, fiquei atualizada com a Montevideo atual. Abraços

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  4. Oi Ivete, tudo bem?
    Parece sim que a cidade não mudou nada, pelo que você e outras pessoas comentam. O tempo lá passa mais devagar, há mais tranquilidade, o urbanismo é mais humano. Faz muito bem estar e ficar em Montevidéu.
    É uma cidade e um país para volta e ficar mais tempo.
    Comente sempre.
    Abraços!

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  5. Viajante sustentável, obrigada pela abordagem fidedigna e pelo respeito e carinho com que descreve nossa cidade e os nossos costumes. Parafraseando Baiano do Zorra Total confesso que "Eu tento sair de Montevideo mas, Montevideo não sai de mim !!!". Rs...

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  6. Olá, Renee, obrigado pela visita e comentários.
    Realmente adorei o Uruguai e os uruguaios. É um país para voltar e ficar mais tempo.
    Fique à vontade para pesquisar e comentar os relatos do blog, esse e tantos outros sobre o Brasil e diversos países da América, África, Ásia, Europa.
    Abraços.

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  7. Muito legal o relato! Montevideo é a próxima cidade que visitarei, tirarei ótimas dicas daqui ;)

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  8. Oi voluntas, obrigado pela visita e pelos comentários.
    O Uruguai foi uma grata surpresa. Tranquilo, sem badalaçao ou grandes atrações turísticas, com povo educado, prestativo, na dele. Um lugar para ficar, ficar, ficar...
    Qualquer coisa me pergunte.
    Comente sempre!

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