Indecisos no que fazer pela manhã, uma vez que os horários
dos transportes a Cabo Polônio não batiam, optamos por outro vilarejo. Corremos
para o terminal rodoviário e embarcamos em tempo.
O ônibus entrou em La Pedrera, vilarejo na beira do mar. Mais
adiante, passou na entrada do Parque Nacional de Cabo Polônio. Vários ônibus de
turismo, mais uma dezena de automóveis, estavam estacionados ao lado. Longa
fila de visitantes aguardava para embarcar nos veículos tracionados rumo ao
miolo do Cabo Polônio. Algo me dizia que não iríamos adorar apreciar a
natureza, física, vegetal e animal com os lobos marinhos, em meio àquela
caravana de turistas.
Meia hora depois desembarcávamos em La Valizas. Saímos a
pé pelas ruas de areia do vilarejo, pequeno, pacato, singelo, tranquilo, dotado
de construções precárias e charmosas. Algumas completamente abandonadas,
cercadas de mato e em estágio avançado de apodrecimento das madeiras das
paredes, portas, janelas.
Atingimos a praia extensa e aplainada, cujas dunas
invadiam as casas e bares de madeira erguidos irregularmente. A natureza,
substituindo a negligência de construtores e autoridades, tratava de punir os
infratores ambientais, forçando-os a abandonar as propriedades por bem ou por
mal. Casas simples e inventivas, de cores berrantes, começavam a ser engolidas
pelas dunas, em constante movimento devido ao vento intenso que não cessava um
segundo sequer.
Na praia, frequência esparsa e desencanada. Cada um na sua, despreocupados se os demais
agiam assim ou assado. Bichos-grilos, autênticos e falsos, vestindo roupas
puídas e encardidas, se espalhavam em raros e pequenos grupos ou casais pela
imensidão da praia. A maioria procurava se encostar ao pé das dunas para se
proteger, ainda que parcialmente, das rajadas de vento. É isso aí, bicho!
Na extremidade da praia, a barra do rio Valizas, que deu
nome à cidadezinha, atravessado somente por barcos a motor mediante pagamento
aos barqueiros. Do outro lado do rio, as dunas mais altas, mais praias e, no
final do horizonte, pontões e ilhas rochosas, talvez nas proximidades do Cabo
Polônio.
As águas calmas do rio lutavam contra a correnteza do mar,
num vaivém constante de avanços e recuos, ora de um, ora de outro. Na margem
esquerda, mais casas, casebres, cabanas, barracas, abandonadas pelo avanço das
dunas, pela baixa temporada, pela falta de condições ou de interesse em
mantê-las.
No geral, o conjunto natureza bruta em contato com as
construções isoladas formava um desenho belo e atraente, delicioso para se
deixar contemplar por horas.
Voltamos ao caminho de areia principal da vila na procura
de algo substancioso para comer. Na primeira tentativa, em estabelecimento
completamente vazio, o proprietário nos comunicou, em tom de quem não queria nada
com nada, mas sorrindo ironicamente, que só tinha para oferecer peixe e
camarão, já se desculpando, já se despedindo, e prontamente nos sugerindo outro
restaurante ali perto.
Entramos no que parecia a única opção em refeições naquele
dia em La Valizas. Comemos Chivitos,
regados ao espumante uruguaio, o Medyo y
Medyo, bem gelado e refrescante, em garrafa retirada do fundo do
refrigerador depois de lenta procura pelo dono gordo e vagaroso. Nos
empanturramos e saímos saciadíssimos do estabelecimento bem decorado, mas desmazelado
pelo tempo e pelo descuido do dono que se arrastava pelo chão acompanhado da
gata e da cadela.
O retorno de ônibus foi rápido na tarde ensolarada,
iluminando pastos, alagados, baixios, criações de gado, ovelhas, cavalos, os
bosques de pinheiros, as casas, as isoladas sedes de fazendas. Pouco depois
desembarcávamos em La Paloma. O vento frio vencia com folga o sol brilhante e
descendente.
Descemos ao procurado restaurante do hotel para o jantar. Fui
de Cazuela de mariscos, ela de peixe
grelhado com salada. Escolhemos vinho uruguaio e nos demos por saciados. Nem tentamos
a sobremesa. O restaurante lotou naquela noite. Os interessados tiveram que
esperar bastante no bar anexo ou desistir.
Arriscamos dar uma volta pelas ruas da cidadezinha, mas o
frio penetrante, surpreendentemente sem vento, frio de verdade, nos obrigou a
voltar e nos enfurnar no quarto do hotel. A lua cheia brilhava absoluta no céu
desprovido de nuvens.
Acordamos cedo, para o começo do café da manhã. Lá estavam
três gringos, um estadunidense com sotaque marcante de terrorista, um indiano
ou paquistanês, um oriental, todos conversando amenidades com um uruguaio. A
língua falada era a inglesa. Eu poderia jurar que ninguém estava a passeio pelo
Uruguai, por La Paloma. E boa coisa para o povo uruguaio eles não vieram fazer
na América do Sul.
Embarcamos em ônibus velho de dois andares. Na rodoviária
de Montevidéu subimos em ônibus cheio que lotou ainda mais durante o percurso,
obrigando dezenas de passageiros a viajarem de pé, esmagados no corredor.
Nada de novo na paisagem de campos aplainados, exceto na
periferia oeste de Montevidéu. Além da refinaria da ANAP e de pequenas fábricas
e galpões, extensa zona residencial bastante precária, favelas de concreto,
cubículos imundos e entulhados de gente e tralhas. Depois, campos de gado,
trigo, milho, pastos vazios, vegetação ciliar.
Descemos em Colônia Sacramento e nos hospedamos em hotel a
poucos passos do terminal rodoviário e do terminal flúvio-marítimo.
Assistimos a partidas e chegadas das embarcações, da linha
entre Colônia Sacramento e Buenos Aires, do parque ao redor da desativada estação
ferroviária da cidade que alcançava a beira do rio da Prata. O Uruguai, assim
como o Brasil, também se ajoelhou e caiu no conto do vigário do transporte
rodoviário. As linhas de trem do país se encontravam totalmente abandonadas,
cobertas pelo mato ou pelo asfalto. Ônibus, caminhões e automóveis compunham a rede
de transportes uruguaios. O país vivia sob a ditadura do transporte rodoviário,
encabeçada por corporações transnacionais, as mesmas que corromperam os
governos a sucatearem a extensa malha ferroviária do Brasil.
Ainda deu tempo para contemplarmos o belíssimo por do sol
na beira do rio da Prata, seguido magistralmente pelo nascimento de mais uma
lua cheia e brilhante no lado oposto.
Opções gastronômicas se dispunham ao longo da avenida
General Flores. Comemos a fraldinha grelhada ao ponto, acompanhada de saladas,
pães e o bom vinho uruguaio. Sentamos em mesa na calçada naquela noite fresca e
agradável.
Durante o jantar, passou pela avenida um bloco de Candombe, ritmo típico do carnaval do
Uruguai. A despeito da origem africana, naquele bloco não havia nenhum mulato
ou negro, apenas branquelos batucando, balançando as mãos e os quadris. O resultado
se assemelhava bastante ao candomblé brasileiro, não só no nome, mas no ritmo
das batidas da percussão e na coreografia dos passos de dança, particularmente em
relação às festas de louvor aos orixás tão presentes nos terreiros e roças do
Brasil.
A noite avançava e o frio sorrateiramente começava a nos
envolver. Batemos no rumo ao quarto apertado do hotel.
Comemos o café da manhã, reguladíssimo, mas saboroso e
suficiente. A senhora da cozinha nos esperava sentar para começar a servir item
a item. Internamente, o hotel agradava pela disposição entre os quartos,
pátios, corredores, pequenas escadas, entradas e saídas das áreas comuns. O
enorme casarão foi bem aproveitado e decorado com discreto bom gosto.
E fomos caminhando pela arborizada rua Manoel Lobo, em
homenagem ao fundador da cidade, rumo à Cidade Velha, à qual entramos pelo
portão da antiga cidadela fortificada, através de espesso muro de pedras. O
brasão português lá estava acima da fortificação, assim como os canhões
voltados para as águas do rio da Prata. Dentro da cidadela, calçamento em
pé-de-moleque, becos, azulejos, lustres, construções barrocas e neoclássicas, a
catedral, o alicerce do palácio e residência de Manoel Lobo, saqueado e
destruído pelos invasores portenhos, a Plaza Mayor, a Plaza Menor, o farol, a rambla costeira, pequenas enseadas,
muitos restaurantes e pousadas, lojinhas de utilidades e inutilidades, carros
antigos estrategicamente estacionados para realçar a atmosfera histórica e,
surpreendentemente, poucos turistas e muita tranquilidade naquele começo de
manhã.
Almoçamos menu turístico, bem servido na quantidade e na
qualidade, em restaurante instalado despretensiosamente dentro de casarão da
avenida principal, a General Flores. Até os banheiros eram originais, amplos,
com pia, vaso sanitário, bidê, banheira. Tudo sob um pé direito alto e placas
de motos e automóveis decorando as paredes internas dos salões.
Os uruguaios, e provavelmente os argentinos visitantes,
não largavam a garrafa térmica debaixo do braço, a cuia e a bomba do chimarrão na
mesma mão, durante quase vinte e quatro horas por dia, nas ruas, praças,
parques, ônibus, carros, pontões de pedra, onde pescavam tranquilamente na
beira do rio. Homens e mulheres, velhos e moços, vestidos assim ou assado, agiam
como manetas, tendo apenas um braço e mão disponíveis para o resto das
atividades.
Por ser pequena, bonita, famosa e em posição estratégica
na ligação fluvial entre dois países, Colônia exibia turistas de todos os
cantos do mundo, inclusive os mochileiros modernos, que em comum com os
mochileiros exploradores de outrora só mesmo a própria mochila, como pude notar
e anotar nas viagens anteriores pelo Brasil e por outros países do planeta.
Houve tempo de sobra na parte da tarde para revermos os
nossos pontos favoritos da cidade. As pequenas distâncias e as sombras nas
calçadas das ruas ricamente arborizadas de plátanos possibilitavam repetirmos
esse e aquele roteiro a pé.
Sentamos em banco na beira do rio da Prata a fim de
contemplar o encerramento do dia.
Para jantar, optamos por restaurante pequeno e charmoso numa
praça da Cidade Velha, quase em frente à Catedral. Escolhemos mesa
estrategicamente situada na calçada, sob a noite fresca. Vinho uruguaio, massa
e a atmosfera bucólica da praça compuseram nosso jantar de despedida do Uruguai.
Praticamente não dormimos.
Bem depois da meia noite o casal do quarto ao lado
discutia do lado de fora, muito próximo à nossa porta. O clima estava pesado e
ela, principalmente, lhe lançava palavras fortes, enquanto ele desembestava a falar
sem parar. Tudo em castelhano. Foi preciso eu reclamar na janela para eles entrarem
e brigarem mais baixo.
Outros turistas se hospedaram tarde e conversavam em voz
alta pelas saletas, escadas de metal e corredores. Um gaúcho adulto e todo
esbaforido iria dividir o quarto com a mãe. Subia e descia as escadas
tagarelando. Não sossegava de jeito nenhum.
A simpática disposição interna entre os quartos do hotel revelava
os defeitos. A acústica era péssima. A proximidade de portas e janelas, ambas
internas, concentrava e propagava todo e qualquer som. A escada de metal
vibrava e amplificava o ruído dos passos.
Acordamos cedo e chegamos horas antes ao terminal
flúvio-marítimo de Colônia. Despachamos as bagagens, passamos pela imigração
uruguaia, exatamente ao lado da imigração argentina. Saímos de um país e
entramos noutro em apenas trinta centímetros de balcão.
Embarcamos no barco com capacidade para duzentos e trinta
passageiros. Escolhemos assentos a esmo. A viagem curta foi agitada pelas águas
bravias do rio da Prata, provocando fortes oscilações na embarcação. O tempo
nublara. Chuviscou e ventou bastante. Nada para ver dentro ou fora, exceto muita
água e animações curtas nas televisões internas, intercaladas de propaganda
comercial e repetitiva, uma delas da prefeitura de Manaus, convidando às atrações
turísticas da capital amazonense.
Desembarcamos no
dique de Puerto Madero, em Buenos Aires.
Com as bagagens, saímos a pé e batemos de frente com o
trânsito infernal do centro de Buenos Aires. Buzinas, muitas buzinas,
histéricas. Obras nas calçadas e em algumas ruas. Gente, muita gente, indo,
vindo. Cenas de megalópole em transe.
Estávamos adiantados para o horário de entrada nos quartos
do hotel. Deixamos o peso das bagagens atrás da recepção e saímos para almoçar.
E haja entupimento de carros pelas ruas e avenidas, gente
pelas calçadas, em meio a incrível poluição sonora. Bem menos paciência e
gentileza, de motoristas e pedestres, que na acolhedora Montevidéu.
Entramos em restaurante comercial, frequentado por
trabalhadores do centro, na verdade o Micro Centro de Buenos Aires. Comida
comível em ambiente frenético, apertado e barulhento. Chamou atenção a longa
fila formada de clientes para comprar comida para levar, naquele e em outros
estabelecimentos. Muitos restaurantes por quilo nem mesas tinham. As pessoas
entravam, enchiam as quentinhas, pesavam, pagavam e as levavam sei lá para
onde. Comeriam sobre as mesas dos escritórios? Comeriam sentadas nas calçadas, em
meio à insana poluição sonora e do ar, como vimos duas funcionárias de
escritório em rua estreita e movimentada?
Espalhamos a bagagem no amplo espaço do quarto e da saleta
do hotel. Relaxamos na cama grande de casal enquanto a enlouquecida Buenos
Aires trepidava lá embaixo.
continua...
Viajante Sustentável, são estes pequenos e lindos detalhes que fico presa em tuas descrições: - La Valizas, saímos a pé pelas ruas de areia do vilarejo, pequeno, pacato, singelo, tranquilo, dotado de construções precárias e charmosas.A praia extensa e aplainada, cujas dunas invadiam as casas e bares de madeira erguidos irregularmente. A natureza, substituindo a negligência de construtores e autoridades, tratava de punir os infratores ambientais, forçando-os a abandonar as propriedades por bem ou por mal. O tempo unido a natureza têm solução para tudo. Gostei de tudo o que li sobre o Uruguai, agora vamos para a Argentina. Até lá. Obrigada e abraços.
ResponderExcluirObrigadão pelos comentários e elogios, Ivete.
ResponderExcluirTambém adorei La Valizas e como a natureza local empurrou para longe a ganância e a insustentabilidade das construções civis.
E o Uruguai, como você notou, vai deixar saudades.
Os impactos visuais e sensoriais não poderiam ser diferentes ao entrar na Argentina.
Abraços e comente sempre!