quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Uruguai e Argentina (parte 3/5)

...continuação
Indecisos no que fazer pela manhã, uma vez que os horários dos transportes a Cabo Polônio não batiam, optamos por outro vilarejo. Corremos para o terminal rodoviário e embarcamos em tempo.
O ônibus entrou em La Pedrera, vilarejo na beira do mar. Mais adiante, passou na entrada do Parque Nacional de Cabo Polônio. Vários ônibus de turismo, mais uma dezena de automóveis, estavam estacionados ao lado. Longa fila de visitantes aguardava para embarcar nos veículos tracionados rumo ao miolo do Cabo Polônio. Algo me dizia que não iríamos adorar apreciar a natureza, física, vegetal e animal com os lobos marinhos, em meio àquela caravana de turistas.
Meia hora depois desembarcávamos em La Valizas. Saímos a pé pelas ruas de areia do vilarejo, pequeno, pacato, singelo, tranquilo, dotado de construções precárias e charmosas. Algumas completamente abandonadas, cercadas de mato e em estágio avançado de apodrecimento das madeiras das paredes, portas, janelas.
Atingimos a praia extensa e aplainada, cujas dunas invadiam as casas e bares de madeira erguidos irregularmente. A natureza, substituindo a negligência de construtores e autoridades, tratava de punir os infratores ambientais, forçando-os a abandonar as propriedades por bem ou por mal. Casas simples e inventivas, de cores berrantes, começavam a ser engolidas pelas dunas, em constante movimento devido ao vento intenso que não cessava um segundo sequer.
Na praia, frequência esparsa e desencanada.  Cada um na sua, despreocupados se os demais agiam assim ou assado. Bichos-grilos, autênticos e falsos, vestindo roupas puídas e encardidas, se espalhavam em raros e pequenos grupos ou casais pela imensidão da praia. A maioria procurava se encostar ao pé das dunas para se proteger, ainda que parcialmente, das rajadas de vento. É isso aí, bicho!
Na extremidade da praia, a barra do rio Valizas, que deu nome à cidadezinha, atravessado somente por barcos a motor mediante pagamento aos barqueiros. Do outro lado do rio, as dunas mais altas, mais praias e, no final do horizonte, pontões e ilhas rochosas, talvez nas proximidades do Cabo Polônio.
As águas calmas do rio lutavam contra a correnteza do mar, num vaivém constante de avanços e recuos, ora de um, ora de outro. Na margem esquerda, mais casas, casebres, cabanas, barracas, abandonadas pelo avanço das dunas, pela baixa temporada, pela falta de condições ou de interesse em mantê-las.
No geral, o conjunto natureza bruta em contato com as construções isoladas formava um desenho belo e atraente, delicioso para se deixar contemplar por horas.
Voltamos ao caminho de areia principal da vila na procura de algo substancioso para comer. Na primeira tentativa, em estabelecimento completamente vazio, o proprietário nos comunicou, em tom de quem não queria nada com nada, mas sorrindo ironicamente, que só tinha para oferecer peixe e camarão, já se desculpando, já se despedindo, e prontamente nos sugerindo outro restaurante ali perto.
Entramos no que parecia a única opção em refeições naquele dia em La Valizas. Comemos Chivitos, regados ao espumante uruguaio, o Medyo y Medyo, bem gelado e refrescante, em garrafa retirada do fundo do refrigerador depois de lenta procura pelo dono gordo e vagaroso. Nos empanturramos e saímos saciadíssimos do estabelecimento bem decorado, mas desmazelado pelo tempo e pelo descuido do dono que se arrastava pelo chão acompanhado da gata e da cadela.
O retorno de ônibus foi rápido na tarde ensolarada, iluminando pastos, alagados, baixios, criações de gado, ovelhas, cavalos, os bosques de pinheiros, as casas, as isoladas sedes de fazendas. Pouco depois desembarcávamos em La Paloma. O vento frio vencia com folga o sol brilhante e descendente.
Descemos ao procurado restaurante do hotel para o jantar. Fui de Cazuela de mariscos, ela de peixe grelhado com salada. Escolhemos vinho uruguaio e nos demos por saciados. Nem tentamos a sobremesa. O restaurante lotou naquela noite. Os interessados tiveram que esperar bastante no bar anexo ou desistir.
Arriscamos dar uma volta pelas ruas da cidadezinha, mas o frio penetrante, surpreendentemente sem vento, frio de verdade, nos obrigou a voltar e nos enfurnar no quarto do hotel. A lua cheia brilhava absoluta no céu desprovido de nuvens.
Acordamos cedo, para o começo do café da manhã. Lá estavam três gringos, um estadunidense com sotaque marcante de terrorista, um indiano ou paquistanês, um oriental, todos conversando amenidades com um uruguaio. A língua falada era a inglesa. Eu poderia jurar que ninguém estava a passeio pelo Uruguai, por La Paloma. E boa coisa para o povo uruguaio eles não vieram fazer na América do Sul.
Embarcamos em ônibus velho de dois andares. Na rodoviária de Montevidéu subimos em ônibus cheio que lotou ainda mais durante o percurso, obrigando dezenas de passageiros a viajarem de pé, esmagados no corredor.
Nada de novo na paisagem de campos aplainados, exceto na periferia oeste de Montevidéu. Além da refinaria da ANAP e de pequenas fábricas e galpões, extensa zona residencial bastante precária, favelas de concreto, cubículos imundos e entulhados de gente e tralhas. Depois, campos de gado, trigo, milho, pastos vazios, vegetação ciliar.
Descemos em Colônia Sacramento e nos hospedamos em hotel a poucos passos do terminal rodoviário e do terminal flúvio-marítimo.
Assistimos a partidas e chegadas das embarcações, da linha entre Colônia Sacramento e Buenos Aires, do parque ao redor da desativada estação ferroviária da cidade que alcançava a beira do rio da Prata. O Uruguai, assim como o Brasil, também se ajoelhou e caiu no conto do vigário do transporte rodoviário. As linhas de trem do país se encontravam totalmente abandonadas, cobertas pelo mato ou pelo asfalto. Ônibus, caminhões e automóveis compunham a rede de transportes uruguaios. O país vivia sob a ditadura do transporte rodoviário, encabeçada por corporações transnacionais, as mesmas que corromperam os governos a sucatearem a extensa malha ferroviária do Brasil.
Ainda deu tempo para contemplarmos o belíssimo por do sol na beira do rio da Prata, seguido magistralmente pelo nascimento de mais uma lua cheia e brilhante no lado oposto.
Opções gastronômicas se dispunham ao longo da avenida General Flores. Comemos a fraldinha grelhada ao ponto, acompanhada de saladas, pães e o bom vinho uruguaio. Sentamos em mesa na calçada naquela noite fresca e agradável.
Durante o jantar, passou pela avenida um bloco de Candombe, ritmo típico do carnaval do Uruguai. A despeito da origem africana, naquele bloco não havia nenhum mulato ou negro, apenas branquelos batucando, balançando as mãos e os quadris. O resultado se assemelhava bastante ao candomblé brasileiro, não só no nome, mas no ritmo das batidas da percussão e na coreografia dos passos de dança, particularmente em relação às festas de louvor aos orixás tão presentes nos terreiros e roças do Brasil.
A noite avançava e o frio sorrateiramente começava a nos envolver. Batemos no rumo ao quarto apertado do hotel.
Comemos o café da manhã, reguladíssimo, mas saboroso e suficiente. A senhora da cozinha nos esperava sentar para começar a servir item a item. Internamente, o hotel agradava pela disposição entre os quartos, pátios, corredores, pequenas escadas, entradas e saídas das áreas comuns. O enorme casarão foi bem aproveitado e decorado com discreto bom gosto.
E fomos caminhando pela arborizada rua Manoel Lobo, em homenagem ao fundador da cidade, rumo à Cidade Velha, à qual entramos pelo portão da antiga cidadela fortificada, através de espesso muro de pedras. O brasão português lá estava acima da fortificação, assim como os canhões voltados para as águas do rio da Prata. Dentro da cidadela, calçamento em pé-de-moleque, becos, azulejos, lustres, construções barrocas e neoclássicas, a catedral, o alicerce do palácio e residência de Manoel Lobo, saqueado e destruído pelos invasores portenhos, a Plaza Mayor, a Plaza Menor, o farol, a rambla costeira, pequenas enseadas, muitos restaurantes e pousadas, lojinhas de utilidades e inutilidades, carros antigos estrategicamente estacionados para realçar a atmosfera histórica e, surpreendentemente, poucos turistas e muita tranquilidade naquele começo de manhã.
Almoçamos menu turístico, bem servido na quantidade e na qualidade, em restaurante instalado despretensiosamente dentro de casarão da avenida principal, a General Flores. Até os banheiros eram originais, amplos, com pia, vaso sanitário, bidê, banheira. Tudo sob um pé direito alto e placas de motos e automóveis decorando as paredes internas dos salões.
Os uruguaios, e provavelmente os argentinos visitantes, não largavam a garrafa térmica debaixo do braço, a cuia e a bomba do chimarrão na mesma mão, durante quase vinte e quatro horas por dia, nas ruas, praças, parques, ônibus, carros, pontões de pedra, onde pescavam tranquilamente na beira do rio. Homens e mulheres, velhos e moços, vestidos assim ou assado, agiam como manetas, tendo apenas um braço e mão disponíveis para o resto das atividades.
Por ser pequena, bonita, famosa e em posição estratégica na ligação fluvial entre dois países, Colônia exibia turistas de todos os cantos do mundo, inclusive os mochileiros modernos, que em comum com os mochileiros exploradores de outrora só mesmo a própria mochila, como pude notar e anotar nas viagens anteriores pelo Brasil e por outros países do planeta.
Houve tempo de sobra na parte da tarde para revermos os nossos pontos favoritos da cidade. As pequenas distâncias e as sombras nas calçadas das ruas ricamente arborizadas de plátanos possibilitavam repetirmos esse e aquele roteiro a pé.
Sentamos em banco na beira do rio da Prata a fim de contemplar o encerramento do dia.
Para jantar, optamos por restaurante pequeno e charmoso numa praça da Cidade Velha, quase em frente à Catedral. Escolhemos mesa estrategicamente situada na calçada, sob a noite fresca. Vinho uruguaio, massa e a atmosfera bucólica da praça compuseram nosso jantar de despedida do Uruguai.
Praticamente não dormimos.
Bem depois da meia noite o casal do quarto ao lado discutia do lado de fora, muito próximo à nossa porta. O clima estava pesado e ela, principalmente, lhe lançava palavras fortes, enquanto ele desembestava a falar sem parar. Tudo em castelhano. Foi preciso eu reclamar na janela para eles entrarem e brigarem mais baixo.
Outros turistas se hospedaram tarde e conversavam em voz alta pelas saletas, escadas de metal e corredores. Um gaúcho adulto e todo esbaforido iria dividir o quarto com a mãe. Subia e descia as escadas tagarelando. Não sossegava de jeito nenhum.
A simpática disposição interna entre os quartos do hotel revelava os defeitos. A acústica era péssima. A proximidade de portas e janelas, ambas internas, concentrava e propagava todo e qualquer som. A escada de metal vibrava e amplificava o ruído dos passos.
Acordamos cedo e chegamos horas antes ao terminal flúvio-marítimo de Colônia. Despachamos as bagagens, passamos pela imigração uruguaia, exatamente ao lado da imigração argentina. Saímos de um país e entramos noutro em apenas trinta centímetros de balcão.
Embarcamos no barco com capacidade para duzentos e trinta passageiros. Escolhemos assentos a esmo. A viagem curta foi agitada pelas águas bravias do rio da Prata, provocando fortes oscilações na embarcação. O tempo nublara. Chuviscou e ventou bastante. Nada para ver dentro ou fora, exceto muita água e animações curtas nas televisões internas, intercaladas de propaganda comercial e repetitiva, uma delas da prefeitura de Manaus, convidando às atrações turísticas da capital amazonense.
 Desembarcamos no dique de Puerto Madero, em Buenos Aires.
Com as bagagens, saímos a pé e batemos de frente com o trânsito infernal do centro de Buenos Aires. Buzinas, muitas buzinas, histéricas. Obras nas calçadas e em algumas ruas. Gente, muita gente, indo, vindo. Cenas de megalópole em transe.
Estávamos adiantados para o horário de entrada nos quartos do hotel. Deixamos o peso das bagagens atrás da recepção e saímos para almoçar.
E haja entupimento de carros pelas ruas e avenidas, gente pelas calçadas, em meio a incrível poluição sonora. Bem menos paciência e gentileza, de motoristas e pedestres, que na acolhedora Montevidéu.
Entramos em restaurante comercial, frequentado por trabalhadores do centro, na verdade o Micro Centro de Buenos Aires. Comida comível em ambiente frenético, apertado e barulhento. Chamou atenção a longa fila formada de clientes para comprar comida para levar, naquele e em outros estabelecimentos. Muitos restaurantes por quilo nem mesas tinham. As pessoas entravam, enchiam as quentinhas, pesavam, pagavam e as levavam sei lá para onde. Comeriam sobre as mesas dos escritórios? Comeriam sentadas nas calçadas, em meio à insana poluição sonora e do ar, como vimos duas funcionárias de escritório em rua estreita e movimentada?
Espalhamos a bagagem no amplo espaço do quarto e da saleta do hotel. Relaxamos na cama grande de casal enquanto a enlouquecida Buenos Aires trepidava lá embaixo.
continua...

2 comentários:

  1. Viajante Sustentável, são estes pequenos e lindos detalhes que fico presa em tuas descrições: - La Valizas, saímos a pé pelas ruas de areia do vilarejo, pequeno, pacato, singelo, tranquilo, dotado de construções precárias e charmosas.A praia extensa e aplainada, cujas dunas invadiam as casas e bares de madeira erguidos irregularmente. A natureza, substituindo a negligência de construtores e autoridades, tratava de punir os infratores ambientais, forçando-os a abandonar as propriedades por bem ou por mal. O tempo unido a natureza têm solução para tudo. Gostei de tudo o que li sobre o Uruguai, agora vamos para a Argentina. Até lá. Obrigada e abraços.

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  2. Obrigadão pelos comentários e elogios, Ivete.
    Também adorei La Valizas e como a natureza local empurrou para longe a ganância e a insustentabilidade das construções civis.
    E o Uruguai, como você notou, vai deixar saudades.
    Os impactos visuais e sensoriais não poderiam ser diferentes ao entrar na Argentina.
    Abraços e comente sempre!

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