Despretensiosamente saímos pelas ruas do Micro Centro, sem
rumo ou objetivos específicos. Desejávamos apenas flanar.
Alcançamos a avenida 9 de Julho, do Obelisco, a Corrientes,
dos teatros e cinemas, as construções neoclássicas imponentes, ente elas o
grandioso Teatro Colón, o Tribunal, a Casa Naval. Construções históricas que
Buenos Aires e Montevidéu mantinham de pé e em bom estado, ao contrário da
maioria das grandes cidades brasileiras, que cometeram e cometem o crime de
apagar a memória urbana. Enquanto isso, ironicamente, a capital uruguaia e a
argentina recebiam milhares de turistas brasileiros maravilhados com a
arquitetura.
Acabamos caindo, como a maioria, no calçadão da rua
Florida, repleta de lojas e lojinhas, cambistas, agentes de viagem, agentes
culturais, vendedores. Todos gritando ao mesmo tempo no meio do calçadão, no
melhor estilo do centro degradado de São Paulo. No meio das lojas, para
portenhos e principalmente para turistas, cruzamos com um goiano de Goiânia que
vendia produtos de couro de fabricação própria. Apesar da lábia e da certeza de
nos engambelar, somente roupas caríssimas e sem novidades estilísticas. Vazamos
rápido.
O mais agradável na desagradável rua Florida estava numa
das extremidades do calçadão, mais precisamente na aconchegante praça San
Martin, porta de entrada do bairro de Retiro. Colorida pelas flores lilases
cobrindo as árvores altas, o local irrompia como um oásis depois da tortura sofrida
ao longo do corredor polonês do calçadão comercial. Ampla, limpa, bem cuidada,
sombreada, a praça nos convidava à preguiça, ao relaxamento, à observação da
natureza e do leve vaivém de argentinos e turistas.
Antes da praça, porém, gente, muita gente, disputando
espaço com os veículos em trânsito ou estacionados. Era impossível negar o
tremendo impacto negativo dessa minha quarta passagem por Buenos Aires após
vivenciarmos o pacato Uruguai, mesmo Montevidéu da movimentada e barulhenta avenida
18 de Julho.
Acordei antes do amanhecer e não consegui adormecer
novamente. Já havia os ruídos vindos rua, seguidos pela vibração do começo do
tráfego pesado de veículos dos dias úteis.
Descemos ao café da manhã, servido no subsolo, em salão
feio e claustrofóbico. Fora os cereais e os iogurtes, dos quais eu me
empanturrei, os demais itens eram pouco variados, invariavelmente ressecados e
passados.
Botamos os pés nas ruas para enfrentar a trepidação, o
barulho e a poluição do centro de Buenos Aires. Escolhemos uma rua a esmo, a
Reconquista, no sentido da Praça de Mayo, espaço que contém a Catedral, o Banco
de la Nación Argentina e, é claro, a Casa Rosada, sede do governo federal
argentino.
Ao redor da praça, e dentro dela, faixas e cartazes de
protesto, a maioria se referindo à soberania argentina e aos mortos durante a
invasão da Inglaterra às ilhas Malvinas. E muitos, muitos mesmo, bloqueios
metálicos montados pela polícia federal, ao redor de toda a Casa Rosada,
fechando ruas, calçadas, parte da própria praça de Mayo.
A presidenta Cristina Kirchner discursaria para o público
ao entardecer, depois de se licenciar por motivos de saúde por quarenta e cinco
dias. O evento prometia. Os portenhos, lenta e firmemente, se dirigiam,
isoladamente, em grupos, passeatas, para a praça. À medida que entardecia,
crescia a agitação, as passeatas, os rojões, os tradicionais bumbos argentinos,
a trepidação da cidade, a ansiedade de todos, inclusive a nossa.
Andamos demais do Micro Centro para o Centro, do Centro
para San Telmo, de San Telmo para Puerto Madero, de volta ao Micro Centro, de
volta a Puerto Madero, entre perambuladas, observações arquitetônicas, detalhes
de portas, janelas, restaurantes, bares, cafés, as portenhas e os portenhos, todos
apressados, aquelas produzidas e sobre saltos quilométricos, aqueles empertigados
e vestindo ternos justos. E barulho, muito barulho, das obras, do trânsito, de
tudo. E gente, muita gente.
Almoçamos em restaurante de Puerto Madero. Optamos pelo
menu executivo, incluindo salada, pães e molhos variados, o suculento Bife de Chourizo, e uma generosa porção
de salada de frutas. Comemos bem e bastante, regados ao vinho argentino, pagando
preço aceitável. Apesar de local não turístico, mais frequentado por
engravatados, o garçom arranhava a língua portuguesa e torcia fanaticamente
para o Quilmes, time de futebol de cidade suburbana de mesmo nome. Ao pedirmos
a conta, ele realçou “já trago la
doloroza”.
E andamos, andamos, até os pés incharem. Entramos no hotel
quase rastejando de cansaço. Tiramos as roupas e desabamos na cama para
recompor as forças. O sol viera com tudo e fazia um calor suave. Abrimos o
janelão de vidro. As preparações para as passeatas rumo à praça de Mayo, as
vozes reivindicadoras, retumbantes aos microfones, incrementadas pelos bumbos e
pelo espocar dos rojões, explodiam dentro do quarto do oitavo andar, talvez
amplificadas pela acústica das ruas do Micro Centro.
Não saímos mais. Assistimos aos discursos da volta da
presidenta Cristina Kirchner pela televisão. Tomamos o cuidado para escolher um
canal público e não os privados ainda dominados pelos monopólios de sempre.
Recentemente uma lei de democratização dos meios de comunicação fora aprovada
pelo Congresso argentino e referendada pelo Judiciário. A famosa Ley de Medios combateria os monopólios
da mídia argentina e abriria acesso para diversos setores da sociedade,
públicos e comunitários, expressarem a voz pelo rádio e televisão, o que
irritava profundamente o império privado dos meios de comunicação, avesso às
vozes do povo.
Na Argentina, assim como no Brasil, nunca houve liberdade
de Imprensa e sim liberdade de Empresa privada manipular a opinião
pública.
Após o café
da manhã mixuruca, caminhamos até a estação ferroviária de Retiro.
Quase em frente à estação, diante do painel dos Caídos na
Guerra das Malvinas, soldados trajados de gala hastearam a bandeira argentina
e tocaram o clarim em comemoração ao dia da Soberania.
Depois de nos situarmos dentro da enorme estação
ferroviária, e encontrar a bilheteria correta, compramos passagens no trem de
subúrbio. Uma usuária de crack furou a fila e implorou à bilheteira para lhe
trocar uma nota de cinco pesos. Tão logo obteve o que queria, desapareceu pelos
arredores da estação, recheada de moedas.
Embarcamos no trem metropolitano quase cheio em horário do
contra fluxo. Os vagões estavam velhos e mal cuidados. A paisagem ao longo do
trajeto de mais de uma hora alternou zona de fábricas e galpões, favelas de
concreto, prédios de apartamentos, quadras de tênis, muitas quadras de tênis,
campos de futebol, concentrações comerciais, subúrbios de alto padrão.
Apesar de casarões e mansões entre ruas arborizadas dos
trechos mais sofisticados, nada de muros altos, nada das colônias penais tão na
moda nos arredores de São Paulo, nada daquelas monstruosidades fortificadas
batizadas de “condomínios fechados”, os sonhos de consumo das novas e velhas castas
antissociais.
Na zona a nordeste de Buenos Aires, mais especificamente
nas imediações de San Isidro, sobrados dos meados do século XX, alguns mais
recentes, entre muito verde, ruas divinamente arborizadas, praças, parques,
gramados. Nem sinal de muros altos ou guaritas de segurança. Afinal tratava-se
de zona residencial e não de presídio.
Ambulantes e pedintes circulavam pelos vagões, alardeando
as ofertas, proferindo o tradicional discurso, tão familiar nos trens da grande
São Paulo: ”desculpe incomodar a viagem de vocês, mas...”, ou entregando
bilhetes e fichas contendo a situação trágica em que se encontravam, para
depois recolherem as magras esmolas.
Descemos na estação Tigre, na margem do rio de mesmo nome
e ponto de partida de passeios turísticos pelo Delta, ao longo de rios e canais
que desembocam no rio da Prata, além de partida das linhas regulares de barcos
de passageiros às vilas acessadas somente pelas vias fluviais.
Não nos animamos a realizar os passeios fluviais turísticos,
cujas rotas padronizadas não incluíam paradas para explorar os vilarejos e as
trilhas entre eles. E nada conseguimos das linhas regulares. O péssimo
atendimento nas bilheterias e a ausência de orientações claras nos painéis
eletrônicos quanto aos horários de ida e de volta e às paradas previstas,
provavelmente em acordo tácito com as operadoras turísticas, nos deixaram na
mão.
Desistimos do que já não nos empolgava.
Nos contentamos em andar despreocupados pelas calçadas
arborizadas das margens dos cursos d’água que cruzam a cidadezinha, entre
casas, museus, bares, restaurantes, clubes de remo invariavelmente levando
nomes em inglês. Tudo muito bem cuidado, limpo, vistoso, aconchegante. Não dava
vontade de levantar do banco sob o caramanchão florido, assistindo os barcos
irem para lá e para cá, vislumbrando os casarões da margem oposta.
Haja verde, nas árvores, gramados, calçadas, ilhas
centrais da avenida da orla sinuosa. Não faltavam flagrantes do passado esnobe
da Argentina, imitando em tudo a Inglaterra monárquica, a mesma que invadiu as
ilhas Malvinas em 1982 e que, de maneira humilhante ao povo argentino, as ocupam
até hoje. Evidências britânicas abundavam na arquitetura das casas, fachadas, nomes
de estabelecimentos, na obsessão em decorar jardins impecáveis. Em redutos isolados,
a Argentina parecia ainda viver os áureos tempos, anteriores às ditaduras e aos
desmontes capitalistas dos anos 1970, 1980 e 1990.
Passamos rapidamente pelo Porto de Frutas, que de porto e
de frutas não tinha mais nada. Tratava-se, na verdade, de um amontoado de lojas
vendendo quinquilharias inúteis a preços exorbitantes e voltadas a turistas
otários.
Trocamos novamente de margem e escolhemos uma mesa na
calçada de restaurante que servia porções generosas a preços acessíveis. Sem
titubear optamos pelo saborosíssimo Vacio,
a nossa suculenta Fraldinha, uma das partes nobres do boi e que nos deliciamos
em mais de uma oportunidade no Uruguai. Ainda reforcei o pedido para que viesse
um pedaço magro, com o mínimo de gordura. Mas, porém, contudo, todavia, ao
contrário do Uruguai, o que o garçom trouxe, para nossa profunda decepção, foi
um pedaço de Costela, mais precisamente a famigerada Ponta de Agulha, uma parte cinzenta, gelatinosa e gordurosa da costela bovina. Absolutamente
nada a ver com o Vacio uruguaio ou
com a Fraldinha brasileira. Garimpamos aquela gororoba o máximo que pudemos,
mas nem chegamos à metade do que nos foi servido. A farta salada, as batatas
fritas e a porção de pães nos salvaram parcialmente.
Ainda conversei com o garçom se aquilo era realmente o Vacio, no que ele prontamente confirmou,
explicando os diferentes nomes usados no país para cada parte do boi. Os
argentinos traduziam a palavra Vacio
como sendo Fraldinha, e não Costela. Mas ali era a Ponta da Agulha da costela e não Fraldinha. E o
Uruguai ali tão perto!
Vivendo e aprendendo! Vacio
só no Uruguai, Fraldinha só no Brasil.
Andamos até a outra estação de trem da cidade, a Delta, a
fim de tomar o Trem da Costa, dez vezes mais caro que o da ida e ligeiramente
mais confortável. O diferencial ficou por conta do trajeto, diferente do
anterior, passando ao largo de subúrbios charmosíssimos, San Isidro, Barrancas,
entre tantos, alguns na margem do rio da Prata, repletos de verde, ruas
arborizadas, quadras de esportes, gramados e parques sem fim, plataformas e
barcos na beira das águas, nos convidando ao ócio criativo, como, aliás, muitos
portenhos se deixavam levar por ali.
Até as pequenas e convidativas estações de trem da linha
da costa eram aproveitadas para beber, conversar sem pressa, contemplar os
únicos dois vagões do trem turístico, em mesas espaçadas dos cafés pitorescos.
Descemos na estação Maipu, a inicial da linha da costa.
Atravessamos uma extensa galeria ladeada de dezenas de lojas de antiguidades e
velharias, exalando o esnobismo anacrônico de uma Argentina que não existe
mais. Ninguém parava, para olhar e muito menos para comprar.
No final da galeria, a estação Mitre, final de outra linha
de trens de subúrbios, onde embarcamos rumo à estação de Retiro, de volta ao nosso
ponto de partida pela manhã.
Um maluco, aparentemente inofensivo, vez ou outra,
atravessava o trem inteiro, vagão por vagão, ruminando palavras indecifráveis.
Ao se sentar, aproveitou para pichar frases na parede interna do vagão com
caneta. Na praça das proximidades da estação, o indivíduo ainda caminhava aos
supetões e escrevia frases ininteligíveis em placas públicas.
Insatisfeitos diante da Fraldinha que virou Ponta de Agulha gordurosa no almoço, saímos para jantar em Buenos Aires. Não pretendíamos ir
longe, explorar opções gastronômicas em outros bairros. Arriscaríamos mesmo no
Micro Centro.
Percorremos a rua Lavalle inúmeras vezes até nos
decidirmos por café e restaurante de esquina, animado, possuindo boas opções a
preços aceitáveis, conforme o cardápio afixado do lado de fora. O garçom nos
assediou. Topamos, entramos e nos sentamos. Ele nos trouxe o cardápio na mesa e
partimos para as escolhas. Mas, eis que senão quando, notamos que os preços
daquele cardápio entregue na mesa diferiam dos do cardápio afixado do lado
externo. Ainda verificamos e averiguamos duas ou três vezes. Os bandidos usavam
preços baixos do lado de fora para cobrar altos preços do lado de dentro.
Confirmada a tentativa de golpe dos empresários, levantamos e demos o fora
imediatamente.
Embora cientes de estarmos em zona turística, nos enojava
o assédio pegajoso dos agentes de bares, restaurantes, casas de espetáculos,
lojas, passeios turísticos, isso e aquilo. Pareciam moscas e não paravam de
gritar, todos ao mesmo tempo, pelas calçadas e calçadões.
Notamos um restaurante com jeito antigo, preços razoáveis
e, principalmente, sem o assédio de garçons ou pentelhos em geral. Entramos. Os
preços de dentro batiam com os de fora. Era estabelecimento do tipo
tradicional, com garçons velhos e gastos, vestindo calça preta, camisa branca,
gravata borboleta preta, guardanapo envolvendo o braço direito.
Pedimos massa e vinho argentino. E não nos arrependemos.
Ambos vieram saborosos e bem servidos.
Mais relaxados e saciados, notamos que a frequência, à parte
dos raros turistas que não caíram nas arapucas de sempre, era de portenhos,
seres da noite, amigos, casais antiquados, saudosistas do centro de Buenos
Aires.
Cama e sono pesado coroaram o dia gratificante.
continua...
Viajante Sustentável pelo que li e ouvi de minhas filhas Buenos Aires é um espetáculo de cidade, repleta de atrações onde a arquitetura estilo europeu mistura modernidade com antiguidade e faz qualquer um querer retornar para matar a saudade. Além da rica vida cultural, o que mais me chamou atenção foi a cultura e boa educação do povo. Pena que provou da gororoba...Risos. Continuo lendo, como dizem: - Devagar e sempre! E ainda de carona. Obrigada e abraços.
ResponderExcluirObrigado pelos comentários, Ivete.
ResponderExcluirBuenos Aires tem tudo isso, sim, mas muita poluição sonora também, sobretudo no centro, aonde todo mundo vai, inclusive os turistas. Acho que Montevidéu está mais calma e mais aconchegante para ficar.
De qualquer maneira, ambos os países merecem ser visitados, principalmente os interiores, sem pressa, degustando os detalhes.
Comente sempre....abraços!