segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Uruguai e Argentina (parte 4/5)

...continuação
Despretensiosamente saímos pelas ruas do Micro Centro, sem rumo ou objetivos específicos. Desejávamos apenas flanar.
Alcançamos a avenida 9 de Julho, do Obelisco, a Corrientes, dos teatros e cinemas, as construções neoclássicas imponentes, ente elas o grandioso Teatro Colón, o Tribunal, a Casa Naval. Construções históricas que Buenos Aires e Montevidéu mantinham de pé e em bom estado, ao contrário da maioria das grandes cidades brasileiras, que cometeram e cometem o crime de apagar a memória urbana. Enquanto isso, ironicamente, a capital uruguaia e a argentina recebiam milhares de turistas brasileiros maravilhados com a arquitetura.
Acabamos caindo, como a maioria, no calçadão da rua Florida, repleta de lojas e lojinhas, cambistas, agentes de viagem, agentes culturais, vendedores. Todos gritando ao mesmo tempo no meio do calçadão, no melhor estilo do centro degradado de São Paulo. No meio das lojas, para portenhos e principalmente para turistas, cruzamos com um goiano de Goiânia que vendia produtos de couro de fabricação própria. Apesar da lábia e da certeza de nos engambelar, somente roupas caríssimas e sem novidades estilísticas. Vazamos rápido.
O mais agradável na desagradável rua Florida estava numa das extremidades do calçadão, mais precisamente na aconchegante praça San Martin, porta de entrada do bairro de Retiro. Colorida pelas flores lilases cobrindo as árvores altas, o local irrompia como um oásis depois da tortura sofrida ao longo do corredor polonês do calçadão comercial. Ampla, limpa, bem cuidada, sombreada, a praça nos convidava à preguiça, ao relaxamento, à observação da natureza e do leve vaivém de argentinos e turistas.
Antes da praça, porém, gente, muita gente, disputando espaço com os veículos em trânsito ou estacionados. Era impossível negar o tremendo impacto negativo dessa minha quarta passagem por Buenos Aires após vivenciarmos o pacato Uruguai, mesmo Montevidéu da movimentada e barulhenta avenida 18 de Julho.
Acordei antes do amanhecer e não consegui adormecer novamente. Já havia os ruídos vindos rua, seguidos pela vibração do começo do tráfego pesado de veículos dos dias úteis.
Descemos ao café da manhã, servido no subsolo, em salão feio e claustrofóbico. Fora os cereais e os iogurtes, dos quais eu me empanturrei, os demais itens eram pouco variados, invariavelmente ressecados e passados.
Botamos os pés nas ruas para enfrentar a trepidação, o barulho e a poluição do centro de Buenos Aires. Escolhemos uma rua a esmo, a Reconquista, no sentido da Praça de Mayo, espaço que contém a Catedral, o Banco de la Nación Argentina e, é claro, a Casa Rosada, sede do governo federal argentino.
Ao redor da praça, e dentro dela, faixas e cartazes de protesto, a maioria se referindo à soberania argentina e aos mortos durante a invasão da Inglaterra às ilhas Malvinas. E muitos, muitos mesmo, bloqueios metálicos montados pela polícia federal, ao redor de toda a Casa Rosada, fechando ruas, calçadas, parte da própria praça de Mayo.
A presidenta Cristina Kirchner discursaria para o público ao entardecer, depois de se licenciar por motivos de saúde por quarenta e cinco dias. O evento prometia. Os portenhos, lenta e firmemente, se dirigiam, isoladamente, em grupos, passeatas, para a praça. À medida que entardecia, crescia a agitação, as passeatas, os rojões, os tradicionais bumbos argentinos, a trepidação da cidade, a ansiedade de todos, inclusive a nossa.
Andamos demais do Micro Centro para o Centro, do Centro para San Telmo, de San Telmo para Puerto Madero, de volta ao Micro Centro, de volta a Puerto Madero, entre perambuladas, observações arquitetônicas, detalhes de portas, janelas, restaurantes, bares, cafés, as portenhas e os portenhos, todos apressados, aquelas produzidas e sobre saltos quilométricos, aqueles empertigados e vestindo ternos justos. E barulho, muito barulho, das obras, do trânsito, de tudo. E gente, muita gente.
Almoçamos em restaurante de Puerto Madero. Optamos pelo menu executivo, incluindo salada, pães e molhos variados, o suculento Bife de Chourizo, e uma generosa porção de salada de frutas. Comemos bem e bastante, regados ao vinho argentino, pagando preço aceitável. Apesar de local não turístico, mais frequentado por engravatados, o garçom arranhava a língua portuguesa e torcia fanaticamente para o Quilmes, time de futebol de cidade suburbana de mesmo nome. Ao pedirmos a conta, ele realçou “já trago la doloroza”.
E andamos, andamos, até os pés incharem. Entramos no hotel quase rastejando de cansaço. Tiramos as roupas e desabamos na cama para recompor as forças. O sol viera com tudo e fazia um calor suave. Abrimos o janelão de vidro. As preparações para as passeatas rumo à praça de Mayo, as vozes reivindicadoras, retumbantes aos microfones, incrementadas pelos bumbos e pelo espocar dos rojões, explodiam dentro do quarto do oitavo andar, talvez amplificadas pela acústica das ruas do Micro Centro.
Não saímos mais. Assistimos aos discursos da volta da presidenta Cristina Kirchner pela televisão. Tomamos o cuidado para escolher um canal público e não os privados ainda dominados pelos monopólios de sempre. Recentemente uma lei de democratização dos meios de comunicação fora aprovada pelo Congresso argentino e referendada pelo Judiciário. A famosa Ley de Medios combateria os monopólios da mídia argentina e abriria acesso para diversos setores da sociedade, públicos e comunitários, expressarem a voz pelo rádio e televisão, o que irritava profundamente o império privado dos meios de comunicação, avesso às vozes do povo.
Na Argentina, assim como no Brasil, nunca houve liberdade de Imprensa e sim liberdade de Empresa privada manipular a opinião pública.
Após o café da manhã mixuruca, caminhamos até a estação ferroviária de Retiro.
Quase em frente à estação, diante do painel dos Caídos na Guerra das Malvinas, soldados trajados de gala hastearam a bandeira argentina e tocaram o clarim em comemoração ao dia da Soberania.
Depois de nos situarmos dentro da enorme estação ferroviária, e encontrar a bilheteria correta, compramos passagens no trem de subúrbio. Uma usuária de crack furou a fila e implorou à bilheteira para lhe trocar uma nota de cinco pesos. Tão logo obteve o que queria, desapareceu pelos arredores da estação, recheada de moedas.
Embarcamos no trem metropolitano quase cheio em horário do contra fluxo. Os vagões estavam velhos e mal cuidados. A paisagem ao longo do trajeto de mais de uma hora alternou zona de fábricas e galpões, favelas de concreto, prédios de apartamentos, quadras de tênis, muitas quadras de tênis, campos de futebol, concentrações comerciais, subúrbios de alto padrão.
Apesar de casarões e mansões entre ruas arborizadas dos trechos mais sofisticados, nada de muros altos, nada das colônias penais tão na moda nos arredores de São Paulo, nada daquelas monstruosidades fortificadas batizadas de “condomínios fechados”, os sonhos de consumo das novas e velhas castas antissociais.
Na zona a nordeste de Buenos Aires, mais especificamente nas imediações de San Isidro, sobrados dos meados do século XX, alguns mais recentes, entre muito verde, ruas divinamente arborizadas, praças, parques, gramados. Nem sinal de muros altos ou guaritas de segurança. Afinal tratava-se de zona residencial e não de presídio.
Ambulantes e pedintes circulavam pelos vagões, alardeando as ofertas, proferindo o tradicional discurso, tão familiar nos trens da grande São Paulo: ”desculpe incomodar a viagem de vocês, mas...”, ou entregando bilhetes e fichas contendo a situação trágica em que se encontravam, para depois recolherem as magras esmolas.
Descemos na estação Tigre, na margem do rio de mesmo nome e ponto de partida de passeios turísticos pelo Delta, ao longo de rios e canais que desembocam no rio da Prata, além de partida das linhas regulares de barcos de passageiros às vilas acessadas somente pelas vias fluviais.
Não nos animamos a realizar os passeios fluviais turísticos, cujas rotas padronizadas não incluíam paradas para explorar os vilarejos e as trilhas entre eles. E nada conseguimos das linhas regulares. O péssimo atendimento nas bilheterias e a ausência de orientações claras nos painéis eletrônicos quanto aos horários de ida e de volta e às paradas previstas, provavelmente em acordo tácito com as operadoras turísticas, nos deixaram na mão.
Desistimos do que já não nos empolgava.
Nos contentamos em andar despreocupados pelas calçadas arborizadas das margens dos cursos d’água que cruzam a cidadezinha, entre casas, museus, bares, restaurantes, clubes de remo invariavelmente levando nomes em inglês. Tudo muito bem cuidado, limpo, vistoso, aconchegante. Não dava vontade de levantar do banco sob o caramanchão florido, assistindo os barcos irem para lá e para cá, vislumbrando os casarões da margem oposta.
Haja verde, nas árvores, gramados, calçadas, ilhas centrais da avenida da orla sinuosa. Não faltavam flagrantes do passado esnobe da Argentina, imitando em tudo a Inglaterra monárquica, a mesma que invadiu as ilhas Malvinas em 1982 e que, de maneira humilhante ao povo argentino, as ocupam até hoje. Evidências britânicas abundavam na arquitetura das casas, fachadas, nomes de estabelecimentos, na obsessão em decorar jardins impecáveis. Em redutos isolados, a Argentina parecia ainda viver os áureos tempos, anteriores às ditaduras e aos desmontes capitalistas dos anos 1970, 1980 e 1990.
Passamos rapidamente pelo Porto de Frutas, que de porto e de frutas não tinha mais nada. Tratava-se, na verdade, de um amontoado de lojas vendendo quinquilharias inúteis a preços exorbitantes e voltadas a turistas otários.
Trocamos novamente de margem e escolhemos uma mesa na calçada de restaurante que servia porções generosas a preços acessíveis. Sem titubear optamos pelo saborosíssimo Vacio, a nossa suculenta Fraldinha, uma das partes nobres do boi e que nos deliciamos em mais de uma oportunidade no Uruguai. Ainda reforcei o pedido para que viesse um pedaço magro, com o mínimo de gordura. Mas, porém, contudo, todavia, ao contrário do Uruguai, o que o garçom trouxe, para nossa profunda decepção, foi um pedaço de Costela, mais precisamente a famigerada Ponta de Agulha, uma parte  cinzenta, gelatinosa e gordurosa da costela bovina. Absolutamente nada a ver com o Vacio uruguaio ou com a Fraldinha brasileira. Garimpamos aquela gororoba o máximo que pudemos, mas nem chegamos à metade do que nos foi servido. A farta salada, as batatas fritas e a porção de pães nos salvaram parcialmente.
Ainda conversei com o garçom se aquilo era realmente o Vacio, no que ele prontamente confirmou, explicando os diferentes nomes usados no país para cada parte do boi. Os argentinos traduziam a palavra Vacio como sendo Fraldinha, e não Costela. Mas ali era a Ponta da Agulha da costela e não Fraldinha. E o Uruguai ali tão perto!
Vivendo e aprendendo! Vacio só no Uruguai, Fraldinha só no Brasil.
Andamos até a outra estação de trem da cidade, a Delta, a fim de tomar o Trem da Costa, dez vezes mais caro que o da ida e ligeiramente mais confortável. O diferencial ficou por conta do trajeto, diferente do anterior, passando ao largo de subúrbios charmosíssimos, San Isidro, Barrancas, entre tantos, alguns na margem do rio da Prata, repletos de verde, ruas arborizadas, quadras de esportes, gramados e parques sem fim, plataformas e barcos na beira das águas, nos convidando ao ócio criativo, como, aliás, muitos portenhos se deixavam levar por ali.
Até as pequenas e convidativas estações de trem da linha da costa eram aproveitadas para beber, conversar sem pressa, contemplar os únicos dois vagões do trem turístico, em mesas espaçadas dos cafés pitorescos.
Descemos na estação Maipu, a inicial da linha da costa. Atravessamos uma extensa galeria ladeada de dezenas de lojas de antiguidades e velharias, exalando o esnobismo anacrônico de uma Argentina que não existe mais. Ninguém parava, para olhar e muito menos para comprar.
No final da galeria, a estação Mitre, final de outra linha de trens de subúrbios, onde embarcamos rumo à estação de Retiro, de volta ao nosso ponto de partida pela manhã.
Um maluco, aparentemente inofensivo, vez ou outra, atravessava o trem inteiro, vagão por vagão, ruminando palavras indecifráveis. Ao se sentar, aproveitou para pichar frases na parede interna do vagão com caneta. Na praça das proximidades da estação, o indivíduo ainda caminhava aos supetões e escrevia frases ininteligíveis em placas públicas.
Insatisfeitos diante da Fraldinha que virou Ponta de Agulha gordurosa no almoço, saímos para jantar em Buenos Aires. Não pretendíamos ir longe, explorar opções gastronômicas em outros bairros. Arriscaríamos mesmo no Micro Centro.
Percorremos a rua Lavalle inúmeras vezes até nos decidirmos por café e restaurante de esquina, animado, possuindo boas opções a preços aceitáveis, conforme o cardápio afixado do lado de fora. O garçom nos assediou. Topamos, entramos e nos sentamos. Ele nos trouxe o cardápio na mesa e partimos para as escolhas. Mas, eis que senão quando, notamos que os preços daquele cardápio entregue na mesa diferiam dos do cardápio afixado do lado externo. Ainda verificamos e averiguamos duas ou três vezes. Os bandidos usavam preços baixos do lado de fora para cobrar altos preços do lado de dentro. Confirmada a tentativa de golpe dos empresários, levantamos e demos o fora imediatamente.
Embora cientes de estarmos em zona turística, nos enojava o assédio pegajoso dos agentes de bares, restaurantes, casas de espetáculos, lojas, passeios turísticos, isso e aquilo. Pareciam moscas e não paravam de gritar, todos ao mesmo tempo, pelas calçadas e calçadões.
Notamos um restaurante com jeito antigo, preços razoáveis e, principalmente, sem o assédio de garçons ou pentelhos em geral. Entramos. Os preços de dentro batiam com os de fora. Era estabelecimento do tipo tradicional, com garçons velhos e gastos, vestindo calça preta, camisa branca, gravata borboleta preta, guardanapo envolvendo o braço direito.
Pedimos massa e vinho argentino. E não nos arrependemos. Ambos vieram saborosos e bem servidos.
Mais relaxados e saciados, notamos que a frequência, à parte dos raros turistas que não caíram nas arapucas de sempre, era de portenhos, seres da noite, amigos, casais antiquados, saudosistas do centro de Buenos Aires.
Cama e sono pesado coroaram o dia gratificante.
continua...

2 comentários:

  1. Viajante Sustentável pelo que li e ouvi de minhas filhas Buenos Aires é um espetáculo de cidade, repleta de atrações onde a arquitetura estilo europeu mistura modernidade com antiguidade e faz qualquer um querer retornar para matar a saudade. Além da rica vida cultural, o que mais me chamou atenção foi a cultura e boa educação do povo. Pena que provou da gororoba...Risos. Continuo lendo, como dizem: - Devagar e sempre! E ainda de carona. Obrigada e abraços.

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  2. Obrigado pelos comentários, Ivete.
    Buenos Aires tem tudo isso, sim, mas muita poluição sonora também, sobretudo no centro, aonde todo mundo vai, inclusive os turistas. Acho que Montevidéu está mais calma e mais aconchegante para ficar.
    De qualquer maneira, ambos os países merecem ser visitados, principalmente os interiores, sem pressa, degustando os detalhes.
    Comente sempre....abraços!

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