Não importava se dia útil, quando os montevideanos se
vestiam para o trabalho, muitos de terno e gravata e demais roupas formais. Ninguém
abandonava a onipresente cuia de chimarrão numa mão e a garrafa térmica
metálica debaixo do mesmo braço. Se comportavam como manetas, contando apenas
com um braço e uma mão para os demais afazeres. Jamais abandonavam o mate. Jamais
desocupavam um dos braços e a respectiva mão. Impressionante! Longe de criticá-la,
porém, a população uruguaia era invariavelmente educada, prestativa, discreta,
simpática.
Pagamos o hotel com cartão de crédito, mas em dólares
estadunidenses, numa prática antipática de muitos hotéis uruguaios e argentinos.
Poderíamos até realizar a operação em pesos uruguaios, depois de a recepção calcular
o valor correspondente a partir da taxa de câmbio do dia. Acabamos aceitando a
operação bizarra e questionável para países soberanos e membros do Mercosul.
Após o café da manhã, pegamos ônibus urbano para o
terminal rodoviário. Embarcamos em ônibus confortável, mas frio pelo
desnecessário ar condicionado, similar aos ônibus brasileiros de longo
percurso.
Pequenas paradas para embarque e desembarque nas cidades
de Pán de Azúcar, San Carlos e Rocha, esta maior e onde embarcaram dezenas de
novos passageiros, sobretudo estudantes em saída escolar. O ônibus então lotou,
inclusive no corredor, entupindo de pessoas em pé.
A paisagem durante o trajeto exibiu terrenos aplainados
entre leves ondulações e serrotes baixos e pedregosos. Casas esparsas, fazendas
de gado e ovelhas, alguns parreirais, riachos, lagos, pastos verdejantes.
Embora se notasse pobreza em moradores das margens da
estrada e em passageiros do ônibus, nada de miséria ostensiva. As casas avistadas
eram grandes, bem construídas e dotadas de chaminés para as lareiras. Ruas de
areia cortavam a rodovia com residências em ambos os lados.
Desembarcamos em La Paloma e fomos a pé até o hotel, completamente
vazio fora da temporada, assim como os demais da cidade. E também vazias e
fechadas grande parte das casas de veraneio, lojas, sorveterias, restaurantes,
bares, lanchonetes. Perfeito! Era exatamente o que queríamos.
Demos volta pelas praias, arredores do farol de Santa
Maria, por ruas desertas de gente, antes de voltar à avenida central a fim de
forrarmos o bucho em um dos dois únicos restaurantes abertos. Fomos bem atendidos
pela simplicidade. Comemos carne regada ao saboroso e refrescante refrigerante
de fruta local.
Dormimos muito, bem e profundamente sob o silêncio
absoluto da noite da cidadezinha de pouco mais de três mil habitantes.
Sob o esplêndido sol e o céu azul límpido, saímos para
caminhar pelas praias de La Paloma. O vento fresco e constante às vezes
esfriava o corpo, mas nada para precisar se cobrir.
Praticamente ninguém nas casas ou praias. Uma ou outra
pessoa andando com cães, apesar da placa visível proibindo a entrada de animais
nas areias. Quatro garotas se esticavam sobre esteiras e cadeiras de praia na
esperança de se bronzearem sob o sol da primavera fria.
Nenhum comércio na beira da praia. Somente casas
espaçadas, sem muros ou grades, todas batizadas com um nome qualquer afixado em
placa de madeira, da mesma maneira que se nomeiam chácaras, sítios e fazendas
nos interiores. Todas elas dotadas de lareira e janelas amplas de vidro, às
vezes de vidro duplo, contra o frio que deve cair por lá no meio do ano. E
praticamente todas vazias, cujos frequentadores esperavam dias mais quentes ou
as férias de final de ano. Algumas com mato alto nos jardins frontais ou
laterais indicavam ausência de moradores havia mais de um ano.
Enorme variedade de pássaros, nos tamanhos, tipos, cores,
cantos, penas, enfeitavam e alegravam os caminhos pelas praias ou pelas ruas
desertas. As areias grossas e trechos com cascalhos de cascas de mariscos e
conchas feriam as solas dos pés. Tínhamos que desviar ou vestir os chinelos nos
trechos mais pontiagudos.
Escolhemos massa e vinho tinto no segundo dos únicos dois estabelecimentos
abertos. Sentamos em mesa interna devido ao vento cortante. Acabou se tornando
mais interessante que o ensolarado lado de fora.
Iria começar a transmissão ao vivo pela televisão do jogo
entre Jordânia e Uruguai pela repescagem para a Copa do Mundo de Futebol de
2014. Um grupo de crianças, professora e cuidadoras, outros clientes, as
garçonetes, o dono gorducho, eventualmente até a cozinheira, prestavam atenção
à telona, torcendo pela seleção nacional. Bandeiras uruguaias foram hasteadas
na parte de dentro e de fora, daquele e em outros pontos comerciais e
residenciais. Uma delas bem acima de nossas cabeças, afixada no vidro.
A cada gol uruguaio, gritos e abraços. O homem do casal ao
lado, acompanhado da esposa e dois filhos menores, entornou dois litros de
cerveja, passando a olhar revirado para tudo e todos. Vez ou outra saía para
fumar, não deixando de acompanhar a partida pelo vidro transparente do
restaurante. Gritava gol bem alto, seguido de “Uruguay, No Más!”. Ainda bem que a goleada folgada os manteve
alegres.
Desci sozinho para jantar no bom e prestigiado restaurante
do hotel disposto em ambiente sóbrio e bem decorado. Tracei peixe com gengibre
e mel e duas taças de vinho.
Amanheceu um céu limpíssimo, cristalino, sem nuvens, o sol
brilhando sem obstáculos. Porém, considerando os dias anteriores, nos vestimos
completos, com camiseta, calça, meias, botas, agasalhos na mochila, prontos
para o que desse e viesse naquele passeio de um dia.
Pegamos ônibus matinal e descemos em San Carlos. O segundo
ônibus passou pela cidade de Maldonado antes de nos deixar na famosa e badalada
península uruguaia de Punta del Este, sob um sol implacável que prometia ainda mais
calor.
Em ambos os ônibus, passageiros simples, alguns vestindo
roupas velhas, rasgadas, manchadas, puídas. Pobreza, dinheiro contado, sim, mas
nada de miséria.
Iniciamos nossa exploração pela parte oeste da península, o
calçadão da Playa Mansa, bem próximo a hotel e cassino, locação presente em
programas televisivos patéticos nos quais certo apresentador brasileiro sai à
caça de celebridades, normalmente figurinhas em acelerado processo de
decadência. De um lado, ausência de praias, costões de pedra, o mar entupido de
barcos e iates exageradamente exagerados das marinas. Do outro, a avenida e
prédios de apartamentos espalhafatosos, ostentando piscinas privativas, entre
restaurantes de preços salgados, mas que os garçons atravessavam as pistas para
nos aliciar. E turistas, claro, para lá e para cá, admirando e fotografando
tudo.
Avançando ao sul da península, e ultrapassando a barreira fechada
dos prédios, bares e cassinos, chegamos ao setor mais residencial, de apenas
casas, na verdade mansões estratosféricas, ocupadas provavelmente por classes
sociais que pouco se importam com a fome e a miséria que assola a maioria da
população do planeta. Pelo contrário, não só se lixam como faturam e vivem
dessa mesma miséria. As moradias impactavam mais pelo exagero, sempre o
exagero, do que pela beleza, bom gosto ou qualquer tipo de apuro estético.
Contornamos a ponta de Punta del Este, onde um conjunto de
esculturas femininas, desmazeladas, caindo aos pedaços, se erguia sobre os
rochedos além da murada.
A partir dali, na borda leste da península, caminhamos
pela Playa Brava, de mar mais agitado, cujas enseadas se cobriam de rochas e cascalhos
de cascas de mariscos. Após o trecho de mansões faraônicas, novamente a
barreira fechada de prédios de apartamentos, suntuosos, alguns nem tanto e até mal
cuidados. Já no final do lado leste da ponta, uma extensa porção de praia de
areia branca e fina e a escultura acinzentada com os dedos de uma mão aflorando
acima da linha da areia.
Do outro lado da praia, o terminal rodoviário de Punta del
Este e um restaurante de preços acessíveis. E foi nesse que entramos, suados,
fervendo, cansados, sedentos, devido ao sol abrasador e ao adiantado da hora.
Comemos bem comida trivial uruguaia, compensada pelos preços nada assustadores
em cidade que o chique é pagar caro, nem que seja para adquirir o lixo do lixo.
Pouco antes de pedirmos a conta, um cantor desajeitado,
cuja filhota de poucos aninhos perambulava perdida pelos meandros do
restaurante, começou a apresentação para os gatos pingados ocupando mesas
esparsas, a maioria de brasileiros. Ao saber a predominância da frequência, ele
atacou com um sucesso comercial da dupla Vitor e Leo, ali vertido
para o castelhano. Depois, outra versão em castelhano de um sucesso comercial
de Michel Teló, aquela mesma que rendeu versões em sei lá quantas línguas. O
nobre cantante então empurrou o microfone para os integrantes animados de uma
mesa para que estes pagassem o mico de interpretar a letra no original, em
português, enquanto ele cantarolava em castelhano. A cena tocante me encheu os
olhos de lágrimas, tamanha a comoção.
Sob o sol implacável do meio da tarde, atravessamos a
avenida, vestidos com roupas e botas de quem esperava o frio. Ônibus e mais
ônibus se enfileiravam na avenida despejando turistas para se fotografarem ao
lado e na frente da escultura dos dedos da mão sobre a areia da praia.
Caminhamos pela avenida central da península, do lado da
sombra evidentemente, entupida de lojas, oferecendo produtos caros e
supérfluos.
Era hora de dar adeus à badaladíssima, famosíssima,
chiquérrima Punta del Este, e completamente desprovida de graça para viajantes
com o mínimo de massa cinzenta. Valeu ter ido para comprovar o óbvio. E valeu
pelo dia claro, pelas cores, pela cristalinidade das paisagens valorizada pela
luz do sol.
Partimos de ônibus rumo à cidade de Rocha, onde esperamos o
segundo ônibus que nos levaria para La Paloma. E em tempo de assistir ao
estupendo por do sol nas planícies uruguaias.
Saímos para jantar no mesmo restaurante do almoço do jogo
de futebol, aquele com o grupo das crianças em viagem pela escola. E lá estavam
elas novamente, jantando disciplinadamente.
Que maravilha voltar à mansidão, ao silêncio, à atmosfera
simples de La Paloma, longe, bem longe da badalação otária de Punta del Este. A
noite estava fresca, sem o frio intenso das anteriores. Relaxamos no bucolismo
da cidadezinha com raríssimos turistas.
Retornamos ao hotel, gratificados pelo dia ricamente
aproveitado, e ricamente questionado, como não poderia deixar de ser.
O vento uivou durante a noite toda, embora até a meia
noite a lua quase cheia ainda brilhasse no céu límpido. No entanto, amanheceu
nublado, com brisa fria e chuviscos ocasionais.
Entre olhadelas às pancadas de chuva, permanecemos no
quarto. Aproveitei para ler mais páginas deliciosas de Espelhos, do Eduardo Galeano. Se em dia de sol, calor e céu azul,
as reflexões e relatos desse pensador uruguaio caíam bem, imaginem com o vento
e chuva do lado de fora. Páginas com textos curtos e sucintos sobre a história
da humanidade, pelo menos os fatos que efetivamente importam à maior parte da humanidade,
sob o olhar apurado do escritor, enriquecem e enriquecerão sempre.
Perambulamos pelo centro, bairros e praias de La Paloma
debaixo de céu ameaçador, momentaneamente sem chuva.
Numa das travessas das imediações do farol de Santa Maria,
avistamos um pastor alemão, raça muito apreciada por ali, sobretudo nos
quintais das casas vazias dos moradores de temporada. Era dos grandes e se
movimentava atrás da cerca de ripas de madeira. E latia para um cachorro menor
que passeava com os donos pela rua de areia. Sabíamos que latiria para nós
também, ainda mais que teríamos que passar rente à cerca a fim de desviar das
poças d’água criadas pela chuva. Só não sabíamos que o filho-da-puta do dono ou
do cuidador tinha deixado o portão da cerca apenas encostado, sem o ferrolho, e
o danado do cão fosse abrir o portão com a pata e nos atacar em plena rua. Mas
foi exatamente o que aconteceu. O amorzinho veio em nossa direção enquanto
passávamos na frente da casa, quase colados à cerca. Desencostou o portão e,
latindo e rosnando feito um doido, saiu pela rua. Logo me alcançou e mandou ver
uma série de dentadas na parte traseira da coxa. Se manteve assim, rosnando e me
mordendo, por uns segundos enquanto mantínhamos nosso ritmo, sem parar, sem
correr, sem olhar para trás. Bastou ultrapassarmos a distância mínima de segurança
da casa para o cão interromper o ataque e voltar para o interior do quintal,
atrás da cerca. Durante o episódio nem o encarei. Apenas notei o vulto e os
rosnados atrás de mim. E as dentadas obviamente. Só fomos parar quando nos
sentimos numa distância segura. A pele ardia, embora não apresentasse
sangramento ou ferimentos mais profundos. A cabeça foi a mil. Meu desejo era
matar o pastor alemão e o irresponsável que deixou o portão da cerca
destrancado. Fora a raiva, nada a fazer senão desinfetar o local das dentadas.
E torcer para que o cachorro estivesse em dia com as vacinas.
Ao sairmos para almoçar, nova pancada de chuva, com muito
vento, mais forte que do começo da manhã. Comemos no restaurante do hotel
mesmo, muito e bem. Vinho uruguaio regou o lauto almoço, enquanto o mundo
desabava do lado de fora, em imagem que contemplávamos pelo vidro do
restaurante.
E nos retiramos ao quarto do hotel, mergulhando sob o
cobertor extra. Que preguiça para lá de bem-vinda! Li Eduardo Galeano, tiramos
uma soneca, li mais, não fiz nada, depois mais nada ainda, até que o tempo
abriu quase totalmente.
O hotel lotou, de uruguaios e principalmente de
argentinos, entre famílias e casais. A quantidade de carros estacionados em
frente e a agitação durante as refeições apontava a chegada do fim de semana
portenho.
continua...
Interessante sua visão de Punta Del Este, é lá que tem o tal cassino né? É a ele que se refere? Percebi um tom de ironia na frase "A cena tocante me encheu os olhos de lágrimas, tamanha a comoção." Era isso que queria transmitir?
ResponderExcluirAbraços!
Helena Silva
Oi Helena, obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirÉ lá sim que tem cassino, um deles "frequentado" por certo apresentador brasileiro de celebridades na televisão.
E a outra frase foi ironia pura rssss. A cena realmente deprimiu e não via a hora de sair dali. Patético de verdade. Mas, tem gente que gosta...não discrimino.
Comente sempre...abraços!
Tu és realmente uma pessoa do mundo! Gosto disso.
ResponderExcluir"Desembarcamos em La Paloma e fomos a pé até o hotel, completamente vazio fora da temporada, assim como os demais da cidade. E também vazias e fechadas grande parte das casas de veraneio, lojas, sorveterias, restaurantes, bares, lanchonetes."
Aprecio também este conforto em relação a quantidade de pessoas em um lugar.
Abraço!
Oi Matheus, obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirE agindo assim aproveitamos bem mais do jeito do lugar. Entramos em contato com o povo mais simples, e sempre o mais instigante. Absorvemos mais da cultura e da paisagem.
Procuro viajar assim na maioria dos destinos e tento convencer das vantagens da simplicidade a todos.
E vamos que vamos!
Comente sempre.
Abraços.
Sua acuidade de observação, nos coloca na cena de suas andanças...muito bom texto!
ResponderExcluirOi gaúcha, obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirSão elogios assim que me incentivam a viajar mais, escrever mais, publicar mais.
Espero que continue lendo, esse e outros relatos publicados no blog, de viagens pelo Brasil e outros países. E comente sempre!
Abraços.
Muito bom teu relato...desperta minha imaginação e um um instante estou lá. La Paloma, San Carlos, despertaram minha curiosidade, porém, a famosíssima Punta del Este perdeu seu brilho. Obrigada, amigo, embora devagar continuo sua caroneira. Abraços.
ResponderExcluirObrigado pelos comentários, Ivete!
ResponderExcluirÉ um baita incentivo ler suas opiniões.
Realmente La Paloma, sobretudo fora da temporada, é uma delícia, para ficar, se deixar levar, relaxar. Mesmo com os cachorros antissociais rsss.
Comente sempre.
Abraços!