segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Uruguai e Argentina (parte 2/5)

...continuação
Não importava se dia útil, quando os montevideanos se vestiam para o trabalho, muitos de terno e gravata e demais roupas formais. Ninguém abandonava a onipresente cuia de chimarrão numa mão e a garrafa térmica metálica debaixo do mesmo braço. Se comportavam como manetas, contando apenas com um braço e uma mão para os demais afazeres. Jamais abandonavam o mate. Jamais desocupavam um dos braços e a respectiva mão. Impressionante! Longe de criticá-la, porém, a população uruguaia era invariavelmente educada, prestativa, discreta, simpática.
Pagamos o hotel com cartão de crédito, mas em dólares estadunidenses, numa prática antipática de muitos hotéis uruguaios e argentinos. Poderíamos até realizar a operação em pesos uruguaios, depois de a recepção calcular o valor correspondente a partir da taxa de câmbio do dia. Acabamos aceitando a operação bizarra e questionável para países soberanos e membros do Mercosul.
Após o café da manhã, pegamos ônibus urbano para o terminal rodoviário. Embarcamos em ônibus confortável, mas frio pelo desnecessário ar condicionado, similar aos ônibus brasileiros de longo percurso.
Pequenas paradas para embarque e desembarque nas cidades de Pán de Azúcar, San Carlos e Rocha, esta maior e onde embarcaram dezenas de novos passageiros, sobretudo estudantes em saída escolar. O ônibus então lotou, inclusive no corredor, entupindo de pessoas em pé.
A paisagem durante o trajeto exibiu terrenos aplainados entre leves ondulações e serrotes baixos e pedregosos. Casas esparsas, fazendas de gado e ovelhas, alguns parreirais, riachos, lagos, pastos verdejantes.
Embora se notasse pobreza em moradores das margens da estrada e em passageiros do ônibus, nada de miséria ostensiva. As casas avistadas eram grandes, bem construídas e dotadas de chaminés para as lareiras. Ruas de areia cortavam a rodovia com residências em ambos os lados.
Desembarcamos em La Paloma e fomos a pé até o hotel, completamente vazio fora da temporada, assim como os demais da cidade. E também vazias e fechadas grande parte das casas de veraneio, lojas, sorveterias, restaurantes, bares, lanchonetes. Perfeito! Era exatamente o que queríamos.
Demos volta pelas praias, arredores do farol de Santa Maria, por ruas desertas de gente, antes de voltar à avenida central a fim de forrarmos o bucho em um dos dois únicos restaurantes abertos. Fomos bem atendidos pela simplicidade. Comemos carne regada ao saboroso e refrescante refrigerante de fruta local.
Dormimos muito, bem e profundamente sob o silêncio absoluto da noite da cidadezinha de pouco mais de três mil habitantes.
Sob o esplêndido sol e o céu azul límpido, saímos para caminhar pelas praias de La Paloma. O vento fresco e constante às vezes esfriava o corpo, mas nada para precisar se cobrir.
Praticamente ninguém nas casas ou praias. Uma ou outra pessoa andando com cães, apesar da placa visível proibindo a entrada de animais nas areias. Quatro garotas se esticavam sobre esteiras e cadeiras de praia na esperança de se bronzearem sob o sol da primavera fria.
Nenhum comércio na beira da praia. Somente casas espaçadas, sem muros ou grades, todas batizadas com um nome qualquer afixado em placa de madeira, da mesma maneira que se nomeiam chácaras, sítios e fazendas nos interiores. Todas elas dotadas de lareira e janelas amplas de vidro, às vezes de vidro duplo, contra o frio que deve cair por lá no meio do ano. E praticamente todas vazias, cujos frequentadores esperavam dias mais quentes ou as férias de final de ano. Algumas com mato alto nos jardins frontais ou laterais indicavam ausência de moradores havia mais de um ano.
Enorme variedade de pássaros, nos tamanhos, tipos, cores, cantos, penas, enfeitavam e alegravam os caminhos pelas praias ou pelas ruas desertas. As areias grossas e trechos com cascalhos de cascas de mariscos e conchas feriam as solas dos pés. Tínhamos que desviar ou vestir os chinelos nos trechos mais pontiagudos.
Escolhemos massa e vinho tinto no segundo dos únicos dois estabelecimentos abertos. Sentamos em mesa interna devido ao vento cortante. Acabou se tornando mais interessante que o ensolarado lado de fora.
Iria começar a transmissão ao vivo pela televisão do jogo entre Jordânia e Uruguai pela repescagem para a Copa do Mundo de Futebol de 2014. Um grupo de crianças, professora e cuidadoras, outros clientes, as garçonetes, o dono gorducho, eventualmente até a cozinheira, prestavam atenção à telona, torcendo pela seleção nacional. Bandeiras uruguaias foram hasteadas na parte de dentro e de fora, daquele e em outros pontos comerciais e residenciais. Uma delas bem acima de nossas cabeças, afixada no vidro.
A cada gol uruguaio, gritos e abraços. O homem do casal ao lado, acompanhado da esposa e dois filhos menores, entornou dois litros de cerveja, passando a olhar revirado para tudo e todos. Vez ou outra saía para fumar, não deixando de acompanhar a partida pelo vidro transparente do restaurante. Gritava gol bem alto, seguido de “Uruguay, No Más!”. Ainda bem que a goleada folgada os manteve alegres.
Desci sozinho para jantar no bom e prestigiado restaurante do hotel disposto em ambiente sóbrio e bem decorado. Tracei peixe com gengibre e mel e duas taças de vinho.
Amanheceu um céu limpíssimo, cristalino, sem nuvens, o sol brilhando sem obstáculos. Porém, considerando os dias anteriores, nos vestimos completos, com camiseta, calça, meias, botas, agasalhos na mochila, prontos para o que desse e viesse naquele passeio de um dia.
Pegamos ônibus matinal e descemos em San Carlos. O segundo ônibus passou pela cidade de Maldonado antes de nos deixar na famosa e badalada península uruguaia de Punta del Este, sob um sol implacável que prometia ainda mais calor.
Em ambos os ônibus, passageiros simples, alguns vestindo roupas velhas, rasgadas, manchadas, puídas. Pobreza, dinheiro contado, sim, mas nada de miséria.
Iniciamos nossa exploração pela parte oeste da península, o calçadão da Playa Mansa, bem próximo a hotel e cassino, locação presente em programas televisivos patéticos nos quais certo apresentador brasileiro sai à caça de celebridades, normalmente figurinhas em acelerado processo de decadência. De um lado, ausência de praias, costões de pedra, o mar entupido de barcos e iates exageradamente exagerados das marinas. Do outro, a avenida e prédios de apartamentos espalhafatosos, ostentando piscinas privativas, entre restaurantes de preços salgados, mas que os garçons atravessavam as pistas para nos aliciar. E turistas, claro, para lá e para cá, admirando e fotografando tudo.
Avançando ao sul da península, e ultrapassando a barreira fechada dos prédios, bares e cassinos, chegamos ao setor mais residencial, de apenas casas, na verdade mansões estratosféricas, ocupadas provavelmente por classes sociais que pouco se importam com a fome e a miséria que assola a maioria da população do planeta. Pelo contrário, não só se lixam como faturam e vivem dessa mesma miséria. As moradias impactavam mais pelo exagero, sempre o exagero, do que pela beleza, bom gosto ou qualquer tipo de apuro estético.
Contornamos a ponta de Punta del Este, onde um conjunto de esculturas femininas, desmazeladas, caindo aos pedaços, se erguia sobre os rochedos além da murada.
A partir dali, na borda leste da península, caminhamos pela Playa Brava, de mar mais agitado, cujas enseadas se cobriam de rochas e cascalhos de cascas de mariscos. Após o trecho de mansões faraônicas, novamente a barreira fechada de prédios de apartamentos, suntuosos, alguns nem tanto e até mal cuidados. Já no final do lado leste da ponta, uma extensa porção de praia de areia branca e fina e a escultura acinzentada com os dedos de uma mão aflorando acima da linha da areia.
Do outro lado da praia, o terminal rodoviário de Punta del Este e um restaurante de preços acessíveis. E foi nesse que entramos, suados, fervendo, cansados, sedentos, devido ao sol abrasador e ao adiantado da hora. Comemos bem comida trivial uruguaia, compensada pelos preços nada assustadores em cidade que o chique é pagar caro, nem que seja para adquirir o lixo do lixo.
Pouco antes de pedirmos a conta, um cantor desajeitado, cuja filhota de poucos aninhos perambulava perdida pelos meandros do restaurante, começou a apresentação para os gatos pingados ocupando mesas esparsas, a maioria de brasileiros. Ao saber a predominância da frequência, ele atacou com um sucesso comercial da dupla Vitor e Leo, ali vertido para o castelhano. Depois, outra versão em castelhano de um sucesso comercial de Michel Teló, aquela mesma que rendeu versões em sei lá quantas línguas. O nobre cantante então empurrou o microfone para os integrantes animados de uma mesa para que estes pagassem o mico de interpretar a letra no original, em português, enquanto ele cantarolava em castelhano. A cena tocante me encheu os olhos de lágrimas, tamanha a comoção.
Sob o sol implacável do meio da tarde, atravessamos a avenida, vestidos com roupas e botas de quem esperava o frio. Ônibus e mais ônibus se enfileiravam na avenida despejando turistas para se fotografarem ao lado e na frente da escultura dos dedos da mão sobre a areia da praia.
Caminhamos pela avenida central da península, do lado da sombra evidentemente, entupida de lojas, oferecendo produtos caros e supérfluos.
Era hora de dar adeus à badaladíssima, famosíssima, chiquérrima Punta del Este, e completamente desprovida de graça para viajantes com o mínimo de massa cinzenta. Valeu ter ido para comprovar o óbvio. E valeu pelo dia claro, pelas cores, pela cristalinidade das paisagens valorizada pela luz do sol.
Partimos de ônibus rumo à cidade de Rocha, onde esperamos o segundo ônibus que nos levaria para La Paloma. E em tempo de assistir ao estupendo por do sol nas planícies uruguaias.
Saímos para jantar no mesmo restaurante do almoço do jogo de futebol, aquele com o grupo das crianças em viagem pela escola. E lá estavam elas novamente, jantando disciplinadamente.
Que maravilha voltar à mansidão, ao silêncio, à atmosfera simples de La Paloma, longe, bem longe da badalação otária de Punta del Este. A noite estava fresca, sem o frio intenso das anteriores. Relaxamos no bucolismo da cidadezinha com raríssimos turistas.
Retornamos ao hotel, gratificados pelo dia ricamente aproveitado, e ricamente questionado, como não poderia deixar de ser.
O vento uivou durante a noite toda, embora até a meia noite a lua quase cheia ainda brilhasse no céu límpido. No entanto, amanheceu nublado, com brisa fria e chuviscos ocasionais.
Entre olhadelas às pancadas de chuva, permanecemos no quarto. Aproveitei para ler mais páginas deliciosas de Espelhos, do Eduardo Galeano. Se em dia de sol, calor e céu azul, as reflexões e relatos desse pensador uruguaio caíam bem, imaginem com o vento e chuva do lado de fora. Páginas com textos curtos e sucintos sobre a história da humanidade, pelo menos os fatos que efetivamente importam à maior parte da humanidade, sob o olhar apurado do escritor, enriquecem e enriquecerão sempre.
Perambulamos pelo centro, bairros e praias de La Paloma debaixo de céu ameaçador, momentaneamente sem chuva.
Numa das travessas das imediações do farol de Santa Maria, avistamos um pastor alemão, raça muito apreciada por ali, sobretudo nos quintais das casas vazias dos moradores de temporada. Era dos grandes e se movimentava atrás da cerca de ripas de madeira. E latia para um cachorro menor que passeava com os donos pela rua de areia. Sabíamos que latiria para nós também, ainda mais que teríamos que passar rente à cerca a fim de desviar das poças d’água criadas pela chuva. Só não sabíamos que o filho-da-puta do dono ou do cuidador tinha deixado o portão da cerca apenas encostado, sem o ferrolho, e o danado do cão fosse abrir o portão com a pata e nos atacar em plena rua. Mas foi exatamente o que aconteceu. O amorzinho veio em nossa direção enquanto passávamos na frente da casa, quase colados à cerca. Desencostou o portão e, latindo e rosnando feito um doido, saiu pela rua. Logo me alcançou e mandou ver uma série de dentadas na parte traseira da coxa. Se manteve assim, rosnando e me mordendo, por uns segundos enquanto mantínhamos nosso ritmo, sem parar, sem correr, sem olhar para trás. Bastou ultrapassarmos a distância mínima de segurança da casa para o cão interromper o ataque e voltar para o interior do quintal, atrás da cerca. Durante o episódio nem o encarei. Apenas notei o vulto e os rosnados atrás de mim. E as dentadas obviamente. Só fomos parar quando nos sentimos numa distância segura. A pele ardia, embora não apresentasse sangramento ou ferimentos mais profundos. A cabeça foi a mil. Meu desejo era matar o pastor alemão e o irresponsável que deixou o portão da cerca destrancado. Fora a raiva, nada a fazer senão desinfetar o local das dentadas. E torcer para que o cachorro estivesse em dia com as vacinas.
Ao sairmos para almoçar, nova pancada de chuva, com muito vento, mais forte que do começo da manhã. Comemos no restaurante do hotel mesmo, muito e bem. Vinho uruguaio regou o lauto almoço, enquanto o mundo desabava do lado de fora, em imagem que contemplávamos pelo vidro do restaurante.
E nos retiramos ao quarto do hotel, mergulhando sob o cobertor extra. Que preguiça para lá de bem-vinda! Li Eduardo Galeano, tiramos uma soneca, li mais, não fiz nada, depois mais nada ainda, até que o tempo abriu quase totalmente.
O hotel lotou, de uruguaios e principalmente de argentinos, entre famílias e casais. A quantidade de carros estacionados em frente e a agitação durante as refeições apontava a chegada do fim de semana portenho.
continua...

8 comentários:

  1. Interessante sua visão de Punta Del Este, é lá que tem o tal cassino né? É a ele que se refere? Percebi um tom de ironia na frase "A cena tocante me encheu os olhos de lágrimas, tamanha a comoção." Era isso que queria transmitir?
    Abraços!
    Helena Silva

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  2. Oi Helena, obrigado pelo comentário.
    É lá sim que tem cassino, um deles "frequentado" por certo apresentador brasileiro de celebridades na televisão.
    E a outra frase foi ironia pura rssss. A cena realmente deprimiu e não via a hora de sair dali. Patético de verdade. Mas, tem gente que gosta...não discrimino.
    Comente sempre...abraços!

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  3. Tu és realmente uma pessoa do mundo! Gosto disso.

    "Desembarcamos em La Paloma e fomos a pé até o hotel, completamente vazio fora da temporada, assim como os demais da cidade. E também vazias e fechadas grande parte das casas de veraneio, lojas, sorveterias, restaurantes, bares, lanchonetes."

    Aprecio também este conforto em relação a quantidade de pessoas em um lugar.

    Abraço!

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  4. Oi Matheus, obrigado pelo comentário.
    E agindo assim aproveitamos bem mais do jeito do lugar. Entramos em contato com o povo mais simples, e sempre o mais instigante. Absorvemos mais da cultura e da paisagem.
    Procuro viajar assim na maioria dos destinos e tento convencer das vantagens da simplicidade a todos.
    E vamos que vamos!
    Comente sempre.
    Abraços.

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  5. Sua acuidade de observação, nos coloca na cena de suas andanças...muito bom texto!

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  6. Oi gaúcha, obrigado pelo comentário.
    São elogios assim que me incentivam a viajar mais, escrever mais, publicar mais.
    Espero que continue lendo, esse e outros relatos publicados no blog, de viagens pelo Brasil e outros países. E comente sempre!
    Abraços.

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  7. Muito bom teu relato...desperta minha imaginação e um um instante estou lá. La Paloma, San Carlos, despertaram minha curiosidade, porém, a famosíssima Punta del Este perdeu seu brilho. Obrigada, amigo, embora devagar continuo sua caroneira. Abraços.

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  8. Obrigado pelos comentários, Ivete!
    É um baita incentivo ler suas opiniões.
    Realmente La Paloma, sobretudo fora da temporada, é uma delícia, para ficar, se deixar levar, relaxar. Mesmo com os cachorros antissociais rsss.
    Comente sempre.
    Abraços!

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