quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Uruguai e Argentina (parte 5/5)

...continuação
Na manhã seguinte, ao entrarmos no salão do café da manhã, encontramos o mesmo paulistano de vinte e poucos anos com quem trocáramos frases na manhã anterior. O indivíduo batia boca com a copeira que costumeiramente passava de mesa em mesa a fim de anotar o número do quarto dos hóspedes. Eis que o turista berrava histérico, nem em castelhano, nem em português, nem em inglês, que não daria o número do quarto porque isso geraria custos para a empresa onde ele alegava trabalhar. Por mais que a coitada da copeira insistisse que não, o desequilibrado repetia a ladainha em língua nenhuma. Inconformado por não convencê-la do raciocínio ilógico, se virou para um senhor sentado sozinho e apostou “Eu sei de onde você é. Deve ser do Mato Grosso”. E o senhor, de cabeça baixa, apenas sussurrou “Não, da Bolívia”. Em seguida se virou para mim e disparou “Você deve ser mineiro”. À minha resposta negativa, perguntou “Então, de onde você é?”. Secamente emendei “Você me fez a mesma pergunta ontem e já respondi”. Deu um sorriso amarelo e, desajeitadamente, se retirou do salão sem saber onde botar a cara.
A copeira, o boliviano e eu nos entreolhamos, fazendo sinal que o dito cujo não batia bem da cabeça. E ouvimos outras boas sobre o abestalhado nas dependências do hotel.
Em minhas experiências passadas em outros países, aconteceu sempre o contrário. Os brasileiros, bem vistos e admirados, contrastavam com a arrogância, prepotência, ignorância, preconceito, racismo, de muitos turistas do chamado mundo ocidental.
Pegamos metrô até a praça Itália de onde tomamos ônibus intermunicipal. Desembarcamos na beira da rodovia, em frente ao zoológico de Lujan, destino famoso e oferecido em excursões, no balcão dos hotéis e aos berros pelos agentes nos calçadões das ruas Lavalle e Florida do centro de Buenos Aires.
Estávamos prestes a entrar na maior ROUBADA daquela viagem.
Pagamos de entrada o equivalente a sessenta reais por pessoa, sem direito a nada, somente ao impacto de nos depararmos com um deplorável espetáculo envolvendo seres humanos e animais. Estes, teoricamente selvagens, eram dopados e forçados a se exibirem com objetos de decoração e acessórios para fotos aos milhares de turistas que despencavam ali. Não sei o que era pior, a humilhação e maus tratos aos animais obrigados a se exporem ao ridículo durante horas, ou o escândalo mesmo de seres humanos se prestando a tal papel.
Em área reduzida e mal cuidada, o tal zoológico de Lujan abrigava diversos tipos de animais, alguns soltos entre os visitantes, como patos, gansos, lhamas e afins. Outros, cercados e dopados para se sujeitarem aos “carinhos” da horda de turistas em buscas de “emoções” sem nenhuma emoção.
Diante de cada uma das jaulas, dos tigres de bengala, dos tigres brancos, dos leões adultos, dos leões filhotes, dos ursos pardos, dos lobos marinhos, se formavam longas filas de turistas aguardando para entrarem, geralmente aos casais, e se fotografarem alisando os animais postados sobre uma mesa. Toda a cena era vigiada de dentro da jaula por funcionários do zoológico e por cachorros treinados a distrair os felinos na remota hipótese de algo sair errado. Em outras palavras, os cachorros seriam sacrificados para salvar os turistas.
E, turista a turista, casal a casal, entrava na jaula por alguns minutos, pousava a mãos sobre os felinos, e dá-lhe fotos, de frente, de lado, de cima, de baixo, assim, assado. Os pobres dos funcionários, entre um bocejo e outro, se ofereciam para fotografar o bravo casal, agora abraçadinhos e sorrindo com as mãos sobre o animal dopado. E ainda forçavam para cima a cabeça do animal para sair melhor na foto.
Nas jaulas contíguas, havia outros animais da mesma espécie, sonolentos, abobados, deprimidos, esperando a vez de serem convocados ao palco dos horrores.
Os animais acariciados e fotografados milhares de vezes mal abriam os olhos tamanho o esgotamento físico e mental. De vez em quando, num lampejo de lucidez, um deles se recusava a permanecer naquela imbecilidade e ameaçava pular da mesa de exibição. Os funcionários imediatamente enfiavam pedaços de carne na boca deles na expectativa de que, com o suborno, aceitassem mais alguns minutos de humilhação. Eventualmente o animal dava um basta definitivo e descia da mesa sem negociação. Não tinha jeito. Os funcionários então levavam este de volta à jaula contígua e carregavam o próximo animal do rodízio para cima da mesa de exibições, sempre com os pedaços de carne enfiados na boca, para mais carícias e fotos dos ávidos turistas.
No caso específico das jaulas dos ursos pardos e dos lobos marinhos, aos turistas era permitido somente entregar-lhes comida através de um galho comprido de madeira, sem direito a carícias e afagos. E o festival de fotos de todos os ângulos, é claro, vinha a granel.
O passeio sobre o lombo do dromedário, em círculo e por menos de dois minutos, conduzido por funcionários mortos-vivos, era mais deprimente que um velório.
E assim foi, por horas e horas, animal por animal, de fila em fila, fotos e mais fotos, poses e mais poses, ridículo em cima de ridículo. E os animais já não aguentavam mais. Nem com os subornos de carne enfiados goela abaixo. Mas os turistas em bando esperavam nas longas filas, entravam, acariciavam, sorriam, faziam poses e eram fotografados.
E viva a indústria do turismo predatório!
Fugimos dali no meio da tarde, horrorizados com o tal zoológico de Lujan. Atravessamos a rodovia e subimos em ônibus rumo à cidade de Lujan, menos de dez quilômetros à frente.
A despeito de destino de romarias religiosas e sede da gigantesca basílica voltada aos desesperados na busca de benzeduras, milagres e curas, Lujan era uma típica cidade do interior argentino, pacata, arborizada, silenciosa, pelo menos nos dias não santos. Mas a hierarquia religiosa e a indústria da fé agradeciam. O comércio religioso ia muito bem, obrigado.
Pegamos ônibus de volta para Buenos Aires.
Jantamos novamente no bom e legítimo restaurante espremido na zona turística do Micro Centro, porém mantendo, na comida, no aspecto, na frequência, no atendimento, certo purismo nostálgico da velha boemia de Buenos Aires.
Na manhã seguinte, cruzamos novamente a deliciosa e refrescante praça San Martin, desta vez ao final da rua Esmeralda, a caminho dos templos da elite portenha, os bairros do Retiro e da Recoleta, se assemelhando de leve aos bairros paulistanos de Higienópolis e dos Jardins.
 Logo de cara, no entanto, notamos que esses bairros argentinos superavam com folga, em quantidade e qualidade, os citados bairros paulistanos, como também todos os equivalentes nas demais cidades grandes brasileiras. Buenos Aires humilhava no quesito áreas verdes, parques, gramados e praças, arborização de ruas, espaços públicos para lazer gratuito. E esse humanismo não se restringia ao Retiro e à Recoleta, mas em grande parte dos bairros visitados das cidades da Argentina e do Uruguai.
Que situação triste e revoltante para o Brasil e os brasileiros, anestesiados a admirar concreto e asfalto, viadutos e xópins, o lazer pago e discriminado! A maioria da população brasileira não dispõe de significativas áreas verdes, de espaços públicos e democráticos, em quantidade e qualidade suficientes. É empurrada então a torrar dinheiro ou a babar diante de vitrines reluzentes e entupidas de necessidades desnecessárias, despertando o consumismo de supérfluos nos xópins.
Os países do cone sul, Argentina, Chile e Uruguai, não vivem mais o passado de glórias e farturas desfrutadas até os anos de 1960 e 1970. As cidades se degradaram. As ditaduras do capital os mergulharam em crises sociais profundas, baseadas em modelos políticos e econômicos injustos, os mesmos que sempre vigoraram no Brasil. Esses países, porém, aproveitaram a época de prosperidade para, entre tantos itens sociais, construírem cidades humanas e públicas.
De qualquer maneira, os bairros de Retiro, Bairro Norte, Recoleta, ainda eram ilhas de paz e tranquilidade, sobretudo se comparado ao sufocante centro de Buenos Aires, barulhento, poluído, massacrado por buzinas de carros, ônibus e caminhões.
Percorremos a avenida Alvear, as transversais, o cemitério da Recoleta, intensamente visitado por turistas e cuja suntuosidade dos túmulos e mausoléus lembra o cemitério da Consolação de São Paulo. A escultura metálica Floralis Generica se destacava na praça das Nações Unidas, realçada pela resplandecência do metal diante do sol em manhã ensolarada e brilhante. Nas imediações, extensos gramados para relaxar, tomar sol, ler, não fazer nada, como testemunhamos os portenhos praticando.
Entramos na avenida General Las Heras e dobramos na rua Montevidéu, repleta de bares e restaurantes interessantes, alguns oferecendo culinárias menos difundidas. Dezenas de quarteirões depois alcançamos a praça do Congresso, mais um espaço de proporções desmedidas, bem cuidado, destacando o palácio do Congresso Nacional.
Em frente ao congresso, manifestantes acampados erguiam faixas e cartazes contra a Monsanto, a famigerada transnacional química estadunidense rejeitada pela maioria dos povos do mundo por envenenar solos com agrotóxicos, por impor e monopolizar sementes transgênicas, por desrespeitar e agredir ecossistemas e comunidades tradicionais pelo planeta, inclusive e principalmente no Brasil.
Dali, voltamos, sempre a pé, para a zona turística do Micro Centro. De volta aos obstáculos de cambistas, agentes de turismo, inclusive vendendo pacotes para o repugnante zoológico de Lujan, agentes de lojas, agentes de restaurantes, agentes de casas noturnas, todos berrando ao mesmo tempo, alguns até em português sem sotaque, na voz de brasileiros legítimos que se transferiram para Buenos Aires.
Almoçamos no charmoso e honesto restaurante de sempre, sem ninguém nos assediando pelo calçadão.
No meio da tarde, mais que merecidamente, retornamos ao quarto do hotel para não fazer absolutamente nada. A boa e velha preguiça, alternada pelas leituras às informações e às reflexões invariavelmente precisas de Eduardo Galeano no livro Espelhos.
Nos entregamos ao ócio criativo do corpo e da alma.
Enrolei na manhã seguinte indo e vindo de San Telmo, cuja feira dos domingos se estendia pela rua Defensa, da praça Dorrego, centro cultural do bairro, até a avenida de Mayo, nas imediações da Casa Rosada. Centenas de barracas e barraquinhas vendiam de tudo um pouco, velharias, antiguidades, artesanatos, lixos feitos em série voltados a quem nunca teve apreço pelo gosto, obras artísticas e não artísticas, além de inúmeros charlatanismos, como os dançarinos de tango numa das extremidades da praça Dorrego. Velhos, caquéticos, vestindo roupas puídas, esbagaçados fisicamente, portando expressões tristes que lembraram os felinos do zoológico de Lujan, ele e ela mal se mexiam ou acompanhavam a melodia da música reproduzida num tocador de CD.
Turistas do mundo todo perambulavam naquela manhã quente de primavera. A maioria nem olhava os itens em exposição. Estavam mais interessados, como eu, em contemplar o movimento humano, eventuais fachadas arquitetônicas ou casas comerciais antigas e vistosas.
Embora nada espetacular, o mercado de San Telmo empolgou mais que a feira propriamente dita. Dentro de construção autêntica e não desfigurada, em ambiente discreto, as vias estreitas, oferecendo desde alimentos frescos e bebidas a itens similares aos da feira externa, não se entupiam de turistas e garantiam momentos de tranquilidade.
Ônibus de turismo se amontoavam na praça de Mayo vomitando turistas para fotografar rapidamente a Casa Rosada, a Catedral e caminhar pela rua Defensa entre as quinquilharias das barracas.
Dei meia volta depois de arriscar algumas transversais da região.
Os teatros e cinemas da avenida Corrientes enchiam de portenhos, mesmo naquele começo de tarde ensolarada. Filas se formavam pelas calçadas e lotavam as plateias.
A noite abafada de Buenos Aires trouxe vento e chuva pela madrugada. E dezenas de pernilongos. O ar condicionado sem poder regular a temperatura mal amenizava o calor pegajoso ou espantava os mosquitos sedentos de sangue novo. Mas de uma forma ou de outra adormecemos.
Amanheceu chovendo fino naquela manhã de feriado na capital portenha.
Rachamos táxi com outro casal paulistano ao Aeroparque, o aeroporto menor e mais próximo ao centro da cidade. O trajeto percorreu os parques e gramados do bairro de Palermo até a beira do rio da Prata, justamente em frente ao aeroporto.
Desembarcamos em São Paulo na tarde daquele final de novembro, no aeroporto de Cumbica. Caía chuva intermitente similar à daquela manhã em Buenos Aires, cidade à qual, depois de quatro visitas, não pretendia voltar tão cedo, ao contrário das acolhedoras cidades uruguaias.
Como de praxe numa cidade desumana e voltada ao transporte individual, nós demoramos uma eternidade para ultrapassar os congestionamentos sem fim das Marginais de São Paulo, entupidas de automóveis.
Mas cheguei em casa são, salvo e gratificado pela viagem.

8 comentários:

  1. Nossa, que post mal humorado... reclamou de tudo! Pra um blog que diz que "vc tem que se adaptar lugar, não o lugar a vc", ficou meio feio isso ai. Quem sabe na próxima vc consiga relaxar e curtir a viagem ao invés de ficar reclamando de tudo e comparando tudo com o lugar onde vc mora.

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  2. Oi anônimo, obrigado pelo comentário.
    A que trecho ou trechos você se refere, pois me parece que não leu com a devida atenção.
    Se ler calmamente esse relatos e os demais relatos de outras viagens, pelo Brasil e por outros países, verá que o que escreveu não corresponde à verdade.
    Claro que nem tudo são rosas em viagens. Se você já viajou independentemente sabe disso. E escrevo o que vejo e sinto, sem mentiras ou ilusões baratas.
    Mas meus momentos de felicidade e alegria superam com folga os opostos. Se não fosse assim, eu não estaria viajando, a passeio e livremente, por quase 40 anos.
    Leia mais dos meus relatos, com mais atenção e sem preconceitos que terá uma avaliação menos precipitada da que a que me enviou.
    Boas leituras e reflexões!
    Abraços.

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  3. Bom, estive em Buenos Aires em dois momentos , com espaço de 30 anos e, com toda a certeza, a degradação é bem maior do que se vê no Chile. Aliás, percebo a situação deste bem mais confortável do que a nossa vizinha.
    Com relação ao zoo, nunca estive lá e o teu relato foi tão realista que me prestou um serviço verdadeiro de informação.
    Abraço.

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  4. Oi Márcia, obrigado pelo comentário.
    Adoraria relatar fatos e cenas mais agradáveis sobre esse Zoo, mas não foi o que presenciei. Pena.
    Só nos resta denunciar e incentivar o boicote. nenhum turista, mesmo o mais alienado, merece compactuar com esse crime.
    Comente sempre!
    Abraços.

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  5. Viajante Sustentável, bonito relato. Sou contra zoológico, o exibicionismo dos animais que deveriam estar no seu habitat natural e não presos, imagino sua reação diante do Zoo de Lujan. Acho Buenos Ayres uma cidade que conserva seu romantismo nostálgico, talvez pelos bairros boêmios, seu caráter cultural...Sou apaixonada por ela, conheço a cidade por fotos, O cemitério da Recoleta, túmulo de Evita, a Igreja, o Monumento, Casa Rosada, a Ponte da Mulher em Puerto Madero, San Telmo e seus tangos,o Teatro Colón, o Cemitério da Recoleta, o Caminito, em La Boca...Obrigada por dividir suas vivências. Continuo...Não sei onde, há tanto para ler.Abraços

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  6. Ou Ivete, obrigado pelos comentários sinceros e espontâneos. Aja por impulso ao escolher os próximos relatos. Há vários, de viagens pelos interiores do Brasil ou de outros países mundo agora.
    Sempre conto e aguardo seus comentários.
    Abraços!

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  7. Bem dizer, o Brasil é privilegiado pela natureza, pela miscigenação do seu povo, entre outros. Infelizmente, a degradação provocada pela elite de sempre nos faz viver num paradoxo de vivermos numa porção da terra em que dádivas naturais abundam, mas somos massacrados pelos donos do poder.
    Eu vivo em Manaus, cidade que você conhece bem. Somos escravos do transporte particular, sofremos ausência de parques, espaços públicos e de áreas verde em pleno coração da Amazônia!

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  8. Oi Jafé, obrigado pela visita e pelos comentários.
    Esse comportamento de considerar a natureza infinita e de se apropriar dela de modo predatório, típico do modelo econômico imposto, vai nos levar ao colapso ambiental e social do planeta. E o Brasil oferece um paroxismo desse dilema. Vide São Paulo e Manaus, por exemplo.
    Depende de nós, somente de nós, o povo organizado, para frear esse crime anunciado e construir uma nova organização social, política e econômica.
    Não é um caminho fácil e nem curto. Mas é o único.
    Comente sempre,
    Abraços!

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