quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Mato Grosso do Sul (parte 2/2)

...continuação
Sentei na frente do hotel e papeei com o casal de proprietários catarinenses. Os temas alternavam entre as rebeliões de presos em São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul, acompanhadas das costumeiras opiniões fascistas divulgadas pelos meios de comunicação, do tipo “bandido tem que morrer”, ou os tais protestos dos grandes do agronegócio, previstos para atingir o auge no dia seguinte, agora com a adesão compulsória de parte dos pequenos agricultores. Os argumentos gastos e duvidosos utilizados pelos latifundiários sensibilizavam o casal, que os lia, um a um, no panfleto recebido. Ela destacava o aumento dos preços dos insumos frente aos preços finais de exportação. E repetia a ladainha que o governo tinha que ajudar os coitadinhos. Mas se esquecia de louvar a tão louvada economia de mercado e a falácia da liberdade dos preços.
Quem sempre produziu alimentos foram os pequenos agricultores e não os latifundiários ou o agronegócio. Mas o maior montante do dinheiro público ia para esses últimos, que o usavam para engordar as próprias fortunas.  E eles exigiam mais dinheiro público. Dinheiro público para a monocultura de exportação e não para a agricultura familiar que alimenta o povo brasileiro.
Deixei o hotel, em jejum, ainda de madrugada. Tomei café puro gentilmente preparado pelo vigia noturno e caminhei até a estação rodoviária, ainda vazia.
O ônibus pequeno partiu com menos da metade da lotação. Passageiros subiam e desciam na beira da estrada. A lua cheia a oeste iluminava a paisagem do cerrado enquanto o clarão de luz começava a aumentar a leste.
E, afinal, não houve bloqueio algum por parte dos soldados do agronegócio. O dia clareava quando atravessamos Bonito, cidade coberta de pousadas, restaurantes, comércio disposto em ruas largas e extensas. Muito diferente de quando visitei a região onze anos antes.
Com palmeiras e matas ciliares, a paisagem dos campos de cerrado evoluía de relevo ondulado a levemente acidentado à medida que se aproximava a serra da Bodoquena. Pequenas elevações alongadas cobriam-se de vegetação de porte médio. Raríssimas plantações nas imensas fazendas. Emas circulavam livremente. A rodovia cruzava o pantanal em meio a campos, buritizais, canais alagados, com aves de diversas espécies e jacarés dormitando ao sol. O ônibus cruzou ponte extensa e elevada sobre o rio Paraguai na rodovia federal que nos levava a Corumbá. A estrada tornou-se sinuosa, o asfalto piorou, as serras erguiam-se em ambos os lados. Uma mineração de ferro instalara-se no meio das colinas.
Desembarquei na estação rodoviária de Corumbá no meio do dia. Coloquei a mochila nas costas e saí na procura de hotéis. Fazia calor, o sol torrava. Nem sinais do frio dos dias anteriores no sul do estado.
A maioria dos hotéis baratos do centro da cidade se instalava em prédios velhos e caindo aos pedaços, com corredores e quartos escuros, ausência de janelas, o mobiliário podre. Optei por um de quarto grande, com cama de casal, janela aceitável, banheiro que se ensopava durante o banho.
Esvaziei a mochila no armário sem prateleiras, gavetas ou divisões.
À noite fui direto me deliciar com pintado ensopado, saboroso demais, ricamente temperado. Para esperar, detonei duas caipirinhas bem preparadas, e para encerrar, me refresquei com refrigerante local, esverdeado, com aroma e sabor intenso de mate. O restaurante ficava instalado em casarão antigo, com pé direito alto e portas altas de madeira, diretamente na calçada. O senão ficou por conta do televisor ligado nas besteiras da rede monopolista. Ainda bem que encontrei mesa atrás de grossa coluna, imune àquele pesadelo.
Caminhei sem rumo pelas ruas do centro antigo de Corumbá, tomado de casarões, escadarias, bares surpreendentemente tranquilos. Lá embaixo, corria o rio Paraguai com dezenas de barcos atracados no cais. A calmaria predominava naquela noite estrelada.
De volta ao clima quente, finalmente. Calor, roupas leves, transpiração, gente nas ruas, alegria. Vida, muita vida!
Pela manhã me dirigi ao centro histórico, com a calma que ele merecia. Circulei pelas partes superior e inferior, interligadas por ladeiras e escadarias. Valia e muito a pena me deixar levar. Construções da virada dos séculos XIX para o XX, a maioria abandonada ou, principalmente, em restauração. A cidade baixa, com certeza, ficaria linda após o término da revitalização. Praças, largos, barracas, sob as sombras atraíam transeuntes, visitantes.
Embarcações atracadas de diversos desenhos e tamanhos, para passeios ou pescarias, esperavam os interessados para percorrer o rio Paraguai. As águas estavam altas e escondiam dezenas de bancos de areia. Na ponta da praça nova e alongada, casarões antigos se alinhavam ao pé do morro, agora ocupados por agências de turismo ou lojas de artigos regionais.
Sentei no banco da praça sob a sombra refrescante. Logo apareceu companhia. O senhor aposentado se instalou ao lado e começou a conversar, sobre tudo e todos, com jeito agradável e estimulante. No meio da conversa animada fui premiado com significativa cagada de pássaro alojado na árvore, me atingindo os cabelos e ombro. Aproveitei a mangueira de irrigar os jardins e me lavei do jeito que deu.
Especulei sobre roteiros de passeio nas redondezas. Os bloqueios nas estradas pelos soldados dos latifundiários esvaziaram Corumbá dos turistas e impediam o número mínimo para as saídas. Mas eu não podia reclamar. Era exatamente como eu queria encontrar a cidade.
Dois bares animavam a noite ao lado do hotel mais caro da cidade. Ao passar por entre as mesas da calçada, mulheres vistosas e em quantidade me lançaram olhares convidativos. Olhares profissionais. Não foi difícil compreender a situação e a intenção de se postarem ao lado de hotel, cujos hóspedes, para elas, eram todos ricos. As mulheres comuns de Corumbá jamais olhariam assim.
No mais, a cidade mergulhava em profundo silêncio.
Corumbá possuía traçado quadricular de ruas, paralelas e transversais ao rio Paraguai, algumas arborizadas, com poucas praças. Raros edifícios altos, casas geralmente no estilo das décadas de 1950 e 1960. Bolivianos e familiares compunham a maioria dos ambulantes da cidade. Ofereciam malhas, couros e bugigangas em geral, sobre as barracas ou em panos estendidos diretamente no chão da calçada. Os seguranças que protegiam as agências bancárias e os prédios públicos do centro portavam armas pesadas e pareciam prestes a atirar.
E seguiam os preparativos para o início do festival da América do Sul, previsto para daí a dias. A programação incluía apresentações musicais, exposições artísticas, ciclo de filmes, longas e curtas metragens, oficinas, cursos de artes e de cultura sul americana. Os organizadores montavam tendas e bancas na parte alta e baixa do centro da cidade. Ao lado do Porto Geral ergueram enorme palco em frente à extensa plateia cercada de tapumes.
Peguei ônibus em cujo ponto final eu atingi a fronteira internacional com a Bolívia.
Segui pé, passando sob o arco da alfândega do lado brasileiro. Cruzei ponte curta sobre córrego imundo. Margeei a alfândega boliviana e, finalmente, estava em solo boliviano. Não foi preciso apresentar passaporte ou qualquer outro documento. Os guardas de ambos os lados mal olhavam quem entrava ou saía. O barulhento trecho de cerca de cinquenta metros entre os dois postos de fronteiras cobria-se de poeira e sujeira. Entupia-se de motos, automóveis, caminhões, carretas pesadas.
Primeira vila boliviana após cruzar a fronteira, zona franca, Puerto Aguirre tornava-se paraíso de compras de brasileiros picados pelo consumismo compulsivo. Os olhos deles brilhavam. Corriam para cá e para lá, em meio às lojas e barracas, a fim de não deixar nada para trás. Entre os itens à venda predominavam roupas, lãs, tênis, calçados, casacos e artigos de couro.
Puerto Aguirre mais parecia periferia miserável de qualquer grande cidade. Pequena, empoeirada, comércio deplorável, suja, largada. Com canteiro central mal cuidado, a rua principal levava até a cidade de Puerto Suarez.
Numa esquina, presenciei choque entre moto com placa do Brasil e caminhonete com placa da Bolívia. O motoqueiro voou, rolou na pista, feriu-se levemente. Logo surgiu o policial boliviano, de óculos escuros. Parecia querer resolver o problema. Não fiquei para assistir o desfecho do impasse. Ao meu lado, durante a discussão do acidente, uma adolescente boliviana observava tudo. Graciosa, vestia saia bem curtinha, me sorrindo maliciosamente. A intuição me avisava que era hora de voltar ao Brasil.
O final de semana se aproximava, o calor aumentava, a noites traziam mais corumbaenses para as ruas, bares, restaurantes, praças. Mas a maior parte da cidade e das casas ainda mergulhava no silêncio.
Invariavelmente, em todas as manhãs, as funcionárias do hotel espremiam laranjas no aparelho elétrico. Imaginei que se tratava de reposição para a mesa do café da manhã daquele mesmo dia. Mas não. Elas guardavam o suco em imensas panelas abertas na geladeira e somente o serviam nos dias seguintes. Daí o gosto de velho e passado. A ordem para tamanha estupidez naquele hotel vinha dos donos catarinenses?
O dia amanheceu nublado, com nuvens escuras, carregadas. A frente fria acompanhada de chuvas atingia Corumbá.
Decidi reservar a última noite no melhor restaurante da cidade, o que servia comida primorosa. Mas os preços, em poucos dias, subiram consideravelmente. O Festival de Cultura iniciava e trazia consigo a sede de lucro fácil. Os fregueses que se danassem. Mas a qualidade da comida mantinha-se impecável. A pimenta no ponto certo realçou o sabor do pintado ensopado sem mascará-lo. Nem o televisor, para o qual os bovinos dirigiam os olhares, ofuscou o prazer de comer e beber bem.
Na mesa ao lado, uma morena estonteante brilhava no ambiente. O proprietário da beldade, sentado ao lado dela, ostentava todo o machismo regional. E ela se submetia calada, de cabeça baixa. O predador comia com a mão direita e enlaçava a presa com a esquerda, bem apertada, a fim de demonstrar a todos que ele era o dono, de papel passado e tudo mais. Talvez até trouxesse a nota fiscal de aquisição no bolso da camisa. Por mais que conhecesse os meandros do machismo brasileiro, não dava para engolir tamanha submissão e humilhação. Mas a história ensinava, no entanto, que eram justamente naqueles casos que mais ocorriam as puladas de cerca. Não faltariam “ricardões”, sempre ternos, carinhosos e compreensivos, para consolar e marcar presença. O corno manso, o grande macho, claro, continuaria a apertá-la durante as refeições e nas aparições públicas do casal. Afinal, a mulher pertencia a ele, somente a ele. Ora, pois!
Na saída, o casal subiu em caminhonete típica dos fazendeiros regionais, tão grande que mais parecia iate. O machão e a mulher submissa. Mas só dele!
Empurrei o último café da manhã, sem ao menos tentar o suco de laranja vencido. Não suportava o barulho sem fim dos espremedores elétricos, nem assistir às cozinheiras guardarem os sucos frescos na geladeira enquanto os hóspedes se sujeitavam a beber aquela droga feita dias antes.
Caminhei até a estação rodoviária. Cheguei cedo demais. Fiquei mais de uma hora encolhido de frio, tentando me proteger do vento cortante que passava por toda a estação.
O ônibus partiu no horário com metade da ocupação. Logo começou a chover.
Como normalmente ocorre nas vias que saem de fronteiras internacionais, a Polícia Federal parou o ônibus para fiscalização logo nos primeiros quilômetros da estrada. O fiscal entrou e analisou os passageiros. Escolheu um boliviano, uma moça carregando o filho pequeno e eu. Tivemos que desembarcar e, enquanto três fiscais vasculhavam as bagagens, o chefe nos despejava várias perguntas para sondar terreno. Lia o nome na carteira de identidade e checava no celular se havia algo contra. Foram até simpáticos, olhando tudo, detalhadamente, com calma. Com a bagunça formada de todas as minhas coisas espalhadas no chão, fui convocado para colocar tudo de volta. Havia espaço interno na mochila e não me preocupei em caprichar no arranjo.
E nem adiantaria.
Uma hora depois, novo bloqueio, nova fiscalização. Desta vez da Polícia Rodoviária Federal. As cenas se repetiram. Além dos três sorteados da primeira fiscalização, também foi escolhido um casal jovem.
Chovia e os policiais me solicitaram para levar a mochila sobre a mesa da sala coberta. Vasculharam mais uma vez os itens da mochila. Verificaram meus documentos e checaram-nos no computador contra o cadastro de pessoas procuradas. Repetiram a operação com o nome da minha mãe.
No banco do outro lado do corredor do ônibus, perto de mim, uma senhora viajava com diversas sacolas e malas sob os pés. Ela nem quisera transportá-las no bagageiro do ônibus. Os fiscais jamais a convocaram para abrir as bagagens ou a responder perguntas.
Amanheceu céu azul e limpo no interior de São Paulo. O nascer do sol, à esquerda, impressionou pelo brilho forte e alaranjado.
Desembarquei pela manhã no terminal rodoviário da Barra Funda, nos finais de maio. As nuvens reapareciam no céu.
A cidade ainda se calava, assustada, com a onda de atentados atribuídos ao PCC dias antes. E, nos dias seguintes, mais de quinhentas pessoas, isso mesmo, quinhentas pessoas, a maioria jovem e sem antecedentes criminais, seriam executadas sumariamente pela Polícia Militar, sem direito a julgamento, sem acusação, sem provas, sem motivos, somente por serem pobres e moradoras das periferias de São Paulo.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Mato Grosso do Sul (parte 1/2)

Após visitar as cidades fronteiriças internacionais da região Norte do Brasil, fiquei curioso em conhecer algumas do Centro Oeste. As chuvas haviam terminado. O sol começava a brilhar no céu limpo e azul. Época ideal para percorrer o Centro Oeste.
E lá fui eu, em meados de maio, rumo à viagem bem mais curta e modesta que as demais. Embarquei à tarde no terminal rodoviário da Barra Funda em ônibus para Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul.
Os poucos passageiros logo mergulharam em sono profundo. A paisagem no meio da escuridão se resumia a plantações, fábricas, cidades médias, em relevo levemente ondulado. A maioria desembarcou em Presidente Prudente no início da madrugada. E o ônibus lotou em seguida com novos passageiros.
Sentou-se ao meu lado um senhor gaúcho que viajava constantemente para o interior de São Paulo devido ao acidente que lhe fraturara o maxilar. Falava animadamente sobre gado, pescaria, sempre em detalhes incompreensíveis para mim. Ainda gostava de escrever e recitar poemas. Arriscou declamar versos da própria autoria, mas logo ficou rouco e desistiu.
Amanheceu nas imediações de Rio Brilhante, já no Mato Grosso do Sul. O colega gaúcho, meio agricultor, meio poeta, se despediu alegremente e desembarcou.
Do lado de fora, imensas planícies se perdiam de vista. Emas circulavam no meio das monoculturas de soja. Enormes fazendas cercadas exibiam ao lado acampamentos de trabalhadores rurais sem terra nos acostamentos da rodovia. A cerração baixa dominava os campos antes de se dissipar pelo sol.
O ônibus se esvaziou novamente a partir de Dourados. Pouco antes do acesso a Ponta Porã, latifundiários do agronegócio faziam chantagens emocionais através de bloqueios na rodovia. Rogavam pelo perdão das dívidas contraídas a juros baixos junto ao governo federal. Ainda exigiam mais empréstimos a perder de vista para exaurir o solo com a monocultura de exportação. Não longe dali, outro acampamento extenso de agricultores sem terra, sem dívidas, sem empréstimos, desejando cultivar alimentos, mas passando fome.
Desembarquei pela manhã na estação rodoviária de Ponta Porã.
A distância considerável até o centro da cidade não me impediu de colocar a mochila nas costas e caminhar bastante sob o sol e vento fresco. Tentei o primeiro hotel, caríssimo, o segundo, mal encarado, o terceiro, barato e de aspecto razoável.
A população parecia simpática e educada, mas sem calor humano, sorrisos, descontrações. Feições sulinas, rodízios, quitandas com frutas e verduras frescas, lojas e mais lojas.
Após o almoço, me acomodei no quarto, li o jornal Brasil de Fato, e adormeci. O piso frio e as nesgas de sol que entravam pela pequena janela do quarto me obrigavam a apelar para os cobertores do armário. E precisei de coragem e determinação para entrar no chuveiro morno.
Quase ninguém circulava pela avenida Brasil, a principal de Ponta Porã, naquela noite fria e com brisa seca. Raros estudantes e ainda mais raros frequentadores de bares eram as únicas almas vivas. Poucas luzes vinham do lado paraguaio. Ainda assim, carros com placas do Brasil se dirigiam para o meio daquele breu. Duas crianças paraguaias, maltrapilhas, jogavam pedras uma na outra.
A camareira do hotel, que ajudava na faxina e no simples, mas suficiente, café da manhã, me contou que a casa dela fora roubada no dia anterior. Não deixaram nem as roupas ou os objetos pessoais.
Durante o dia, o tereré, mate gelado tomado na cuia, reinava absoluto nos dois lados da fronteira. Em rodinhas de amigos nas calçadas, no balcão das lojas, no quintal das casas, no peitoril das janelas.
A avenida larga, extensa e arborizada, dividia o Brasil da cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero. Do lado de lá da fronteira, mais lojas, comidas servidas em barracas nas calçadas. Longe do sol ainda fazia frio, mesmo durante o dia.
Bastante arborizadas e com poucos edifícios altos, as cidades de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero não ofereciam construções de valor histórico ou beleza arquitetônica. A cidade paraguaia, apesar de mal cuidada, humilhava a irmã brasileira em quantidade e qualidade de áreas verdes. Eram inúmeras praças e parques, amplos, bonitos, arborizados, públicos. Não vi praças em Ponta Porã onde eu pudesse me sentar e descansar.
Sentado em uma das praças de Pedro Juan Caballero, eu assisti a ensaios de desfiles escolares, com fanfarras, coreografias, cornetas, toques e marchas militares. Seguranças em duplas ou em três, fortemente armados, se postavam na frente dos estabelecimentos comerciais, agências bancárias e edifícios públicos.
Rostos e peles morenas predominavam em ambas as cidades, embora traços indígenas mais marcantes não fossem tão comuns. Notei mais essas características nos menores abandonados, moradores de rua, mendigos. As morenas de longos cabelos lisos e pretos, sem serem estonteantes, faziam bem aos olhos. Não se vestiam de maneira provocante, usavam mais calças compridas que saias ou vestidos. Simpáticas e educadas, raramente olhavam ou paqueravam.
Os dois lados contavam com fortes traços comercias. Não faltavam do lado paraguaio lojas vendendo bugigangas, eletrônicos, relógios, informática, cd´s e, obviamente, o legítimo, e jamais falsificado, uísque escocês.
Os passageiros dos ônibus urbanos de Ponta Porã reclamavam do preço absurdo da passagem, o mesmo valor de São Paulo. Um deles descrevia ao colega as maravilhas do bilhete único, implantado na cidade de São Paulo durante gestão do Partido dos Trabalhadores. E bradava para todos ouvirem que, com o preço cobrado em Ponta Porã, se podia viajar pela capital paulista sem limites durante duas horas.
Ponta Porã não se animava durante a noite. Numa esquina, quatro amigos ouviam som alto vomitado dos alto-falantes instalados no porta-malas do carro. Somente o repertório batizado de sertanejo, muito comercial, nada autêntico ou de raiz.
Decidi ir a Dourados e tentar melhores opções de transportes para Bela Vista.
No início da rodovia, na saída da cidade, a polícia federal efetuou fiscalização rigorosa no interior do ônibus e nas bagagens guardadas embaixo. Sem eu notar, os policiais abriram a minha, vasculharam item por item antes de recolocá-los novamente, sem critérios, esmagando tudo. E contrariaram o procedimento correto que deveria ser feito na presença do dono da bagagem, garantindo que ninguém acrescentaria nada de indesejável, e eu me livraria de flagrantes forjados.
O protesto da turma do agronegócio continuava, bloqueando fazendas, silos, estradas, cidades. Eles choravam pelo baixo valor do dólar. Queriam perdão das dívidas. Rogavam por mais empréstimos praticamente sem juros. Em outras palavras, os lucros ficariam nas mãos deles e os prejuízos seriam assumidos pelo povo brasileiro. Era o capitalismo sem riscos dos capitalistas do latifúndio. E tudo para a monocultura de exportação que empregava pouca mão de obra e esgotava o solo.
Cidade planejada e espalhada, Dourados contava com ruas arborizadas, nas calçadas e nos canteiros centrais das avenidas. Nas partes por onde passei, elas pareciam limpas, organizadas e de bom aspecto. Compensava em parte as caras fechadas e de poucos amigos dos moradores de pele e olhos claros. Ano a ano, a região se tornava tristemente conhecida pelos massacres de indígenas a manda dos elementos do agronegócio. Punição dos criminosos, nenhuma.
Sentei-me ao ar livre em restaurante de esquina e comi à vontade. Logo o ambiente lotou de famílias, casais, grupos. O som mecânico do estabelecimento torturava com baladas caipiras estadunidenses, substituído em seguida por música ao vivo recheada de padrões bregas e sertanejos.
À tarde embarquei em ônibus velho rumo a Bela Vista. A frequência do pinga-pinga era de agricultores e peões que trabalhavam nas fazendas da região. Conversei bastante com um que trabalhava e morava com a família em fazenda de gado e carneiros próxima a Dourados.
A paisagem levemente ondulada oscilava entre infindáveis plantações de milho, pastos para gado, terras improdutivas e desmatadas. Acampamentos de trabalhadores rurais sem terra e de grupos indígenas apareciam nas margens das rodovias. Antes da cidade de Antônio João, nomeada em homenagem a brasileiro morto durante a invasão do exército brasileiro ao Paraguai, percorremos longo trecho de estradas de terra extremamente empoeiradas, deixando o interior do ônibus, bocas, narizes, entupidos de poeira. Outro bloqueio dos latifundiários, logo liberado para ônibus e veículos particulares. Nas imensas quantidades de terra, sem quaisquer almas vivas, embarcavam e desembarcavam passageiros na beira da estrada. Nenhuma casa a vista em ambos os lados. Eram agricultores, condutores de gado, empregados de fazendas, raros pequenos proprietários. Usavam chapéus de couro, largos cinturões e botas de cano alto. Conversando muito entre si, trocavam opiniões sobre o tempo, criação, colheita, emprego. Simpáticos, porém reservados.
O pôr-do-sol avermelhado à direita e a lua cheia alaranjada à esquerda deram espetáculo à parte na paisagem do cerrado.
Na calçada em Antônio João, três índios conversavam em língua própria. Ninguém lhes dava atenção. Ouvi casos de invasões de terras indígenas, comandadas pelos grandes fazendeiros, forçando os índios a se organizarem para reaverem o que lhes era de direito. Mas era luta desigual e desumana.
O ônibus seguiu lotado. Uma mãe próxima ao meu banco me lançava olhares curiosos. Sentou-se ao meu lado um morador de Bela Vista que decidira, depois da aposentadoria, estudar teologia em Dourados. Mas, diferentemente dos fanáticos religiosos convencionais que repetem trechos decorados das escrituras, o colega não parava de contar histórias de crimes antigos na região onde nascera ou então detalhes enfadonhos das aulas da faculdade.
Mais acampamentos de índios expulsos das terras milenares, pelos latifundiários e acobertados pela polícia, surgiam na beira da estrada. Os pobres coitados aguardavam até não sei quando o governo estadual e federal reintegrá-los às terras dos ancestrais.
O ônibus velho entrou na pequena rodoviária de Bela Vista à noite.
Entrei em restaurante, cuja parte interna, mais quentinha, massacrava com o som ao vivo em volume exagerado. Pedi bebida, engoli a comida medíocre. Enrolei com pude naquela barulheira. Duas mesas adiante e de frente para o gritador ao microfone, três coroas exageradamente pintadas olhavam para todos os lados, enquanto os lábios acompanhavam as letras das músicas.
Ninguém nas ruas naquela noite de sábado, nem mesmo nos bares das calçadas, onde garçons cochilavam no balcão. O frio incomodava e retornei ao quarto do hotel. Da janela eu ouvia sons de festa em outras partes da cidade, e também vindos do lado do Paraguai, onde o locutor convocava a população para o dia seguinte.
Tomei o fraco e madrugador café da manhã do hotel, que se encerrava estranhamente às 8h.
Os paraguaios comemoravam o aniversário da independência.
Na pequena cidade paraguaia de Bella Vista Norte, do outro lado da ponte sobre o rio Apa, assisti cerimônias religiosas, discursos de políticos cujos ternos se entupiam de medalhas, dramatização de cenas da noite da independência, danças típicas na praça principal da cidade. Os presentes aplaudiram e se emocionaram quando crianças declamaram poemas falados inteiramente em língua guarani. O locutor ressaltava o orgulho do povo pela descendência indígena. Demagogia ou não, as falas levantaram o ego dos moradores. Grupos de escolares vestiam roupas típicas, saias longas, chapéus de abas largas. Houve em seguida desfiles de estudantes com faixas enaltecendo a história paraguaia, ao som de fanfarras. A população se aglomerava nas calçadas e os políticos no palanque alto de madeira.
Pequenas e espalhadas, ambas as cidades irmãs não ofereciam atrativos arquitetônicos. No lado brasileiro, a cidade de Bela Vista revelava ruas largas, arborizadas, vazias em pleno domingo ensolarado. O clima seco e o sol implacável amenizavam o frio, mas queimavam e desidratavam.
Almocei no mesmo restaurante da noite anterior, o único aberto naquele domingo sonolento. A data comercial do dia das mães ditava a frequência, de famílias inteiras e rosas nas mesas. Predominavam pessoas loiras e sérias, gaúchas narigudas e geladas. Jamais levantavam os olhos para desconhecidos. Apenas olhavam e conversavam entre si. Clãs fechados. Mas os garçons, sempre bem humorados, me serviram bem.
Depois segui às barrancas do rio Apa, núcleo de fundação da cidade. Hotel antigo, casarões ocupados por repartições públicas, o antigo cinema em ruínas. Mais adiante, descendo à margem do rio, gramados sombreados com churrasqueiras divertiam os que elegeram a natureza para aproveitar o domingo.
Comprei passagem até a cidade de Jardim, onde passaria minha noite de conexão rumo a Corumbá. O trecho percorrido da estrada revelava terrenos ondulados, praticamente desprovidos de plantações. Raras criações de gado, campos com palmeiras, matas ciliares, cerrado que ainda resistia aos desmatamentos indiscriminados.
Jardim se animava mais que a pacata Bela Vista. O centro pequeno e concentrado contava, ao redor, com ruas largas e arborizadas. Entrei em restaurante que incluía delícias da culinária caipira e pantaneira. Comida farta e saborosa. Finalmente me livrava da monotonia dos rodízios gaúchos. Saí estufado e satisfeito.
Tentei em vão obter transporte para conhecer o Buraco das Araras. Andei pela estrada e dei de cara com a ponte velha sobre o rio Miranda. Parte despencara nas águas do rio em razão das fortes chuvas do início daquele ano. Pescadores desciam o barranco de terra solta, se posicionavam nas margens, lançavam os anzóis, esperavam, esperavam e esperavam os peixes.
Pelas ruas da cidade, mais morenas, mais olhares, mais sorrisos, ampla variedade de comida que não se resumia aos rodízios de carne.
continua...