Após visitar as cidades fronteiriças internacionais da
região Norte do Brasil, fiquei curioso em conhecer algumas do Centro Oeste. As
chuvas haviam terminado. O sol começava a brilhar no céu limpo e azul. Época
ideal para percorrer o Centro Oeste.
E lá fui eu, em meados de maio, rumo à viagem bem
mais curta e modesta que as demais. Embarquei à tarde no terminal rodoviário da
Barra Funda em ônibus para Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul.
Os poucos passageiros logo mergulharam em sono profundo. A
paisagem no meio da escuridão se resumia a plantações, fábricas, cidades
médias, em relevo levemente ondulado. A maioria desembarcou em Presidente
Prudente no início da madrugada. E o ônibus lotou em seguida com novos
passageiros.
Sentou-se ao meu lado um senhor gaúcho que viajava
constantemente para o interior de São Paulo devido ao acidente que lhe fraturara
o maxilar. Falava animadamente sobre gado, pescaria, sempre em detalhes
incompreensíveis para mim. Ainda gostava de escrever e recitar poemas. Arriscou
declamar versos da própria autoria, mas logo ficou rouco e desistiu.
Amanheceu nas imediações de Rio Brilhante, já no Mato
Grosso do Sul. O colega gaúcho, meio agricultor, meio poeta, se despediu
alegremente e desembarcou.
Do lado de fora, imensas planícies se perdiam de vista.
Emas circulavam no meio das monoculturas de soja. Enormes fazendas cercadas
exibiam ao lado acampamentos de trabalhadores rurais sem terra nos acostamentos
da rodovia. A cerração baixa dominava os campos antes de se dissipar pelo sol.
O ônibus se esvaziou novamente a partir de Dourados. Pouco
antes do acesso a Ponta Porã, latifundiários do agronegócio faziam chantagens
emocionais através de bloqueios na rodovia. Rogavam pelo perdão das dívidas
contraídas a juros baixos junto ao governo federal. Ainda exigiam mais
empréstimos a perder de vista para exaurir o solo com a monocultura de
exportação. Não longe dali, outro acampamento extenso de agricultores sem
terra, sem dívidas, sem empréstimos, desejando cultivar alimentos, mas passando
fome.
Desembarquei pela manhã na estação rodoviária de Ponta
Porã.
A distância considerável até o centro da cidade não me
impediu de colocar a mochila nas costas e caminhar bastante sob o sol e vento
fresco. Tentei o primeiro hotel, caríssimo, o segundo, mal encarado, o
terceiro, barato e de aspecto razoável.
A população parecia simpática e educada, mas sem calor
humano, sorrisos, descontrações. Feições sulinas, rodízios, quitandas com
frutas e verduras frescas, lojas e mais lojas.
Após o almoço, me acomodei no quarto, li o jornal Brasil
de Fato, e adormeci. O piso frio e as nesgas de sol que entravam pela pequena
janela do quarto me obrigavam a apelar para os cobertores do armário. E precisei
de coragem e determinação para entrar no chuveiro morno.
Quase ninguém circulava pela avenida Brasil, a principal
de Ponta Porã, naquela noite fria e com brisa seca. Raros estudantes e ainda
mais raros frequentadores de bares eram as únicas almas vivas. Poucas luzes
vinham do lado paraguaio. Ainda assim, carros com placas do Brasil se dirigiam
para o meio daquele breu. Duas crianças paraguaias, maltrapilhas, jogavam
pedras uma na outra.
A camareira do hotel, que ajudava na faxina e no simples,
mas suficiente, café da manhã, me contou que a casa dela fora roubada no dia anterior.
Não deixaram nem as roupas ou os objetos pessoais.
Durante o dia, o tereré, mate gelado tomado na cuia,
reinava absoluto nos dois lados da fronteira. Em rodinhas de amigos nas
calçadas, no balcão das lojas, no quintal das casas, no peitoril das janelas.
A avenida larga, extensa e arborizada, dividia o Brasil da
cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero. Do lado de lá da fronteira, mais
lojas, comidas servidas em barracas nas calçadas. Longe do sol ainda fazia
frio, mesmo durante o dia.
Bastante arborizadas e com poucos edifícios altos, as
cidades de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero não ofereciam construções de valor
histórico ou beleza arquitetônica. A cidade paraguaia, apesar de mal cuidada,
humilhava a irmã brasileira em quantidade e qualidade de áreas verdes. Eram
inúmeras praças e parques, amplos, bonitos, arborizados, públicos. Não vi
praças em Ponta Porã onde eu pudesse me sentar e descansar.
Sentado em uma das praças de Pedro Juan Caballero, eu
assisti a ensaios de desfiles escolares, com fanfarras, coreografias, cornetas,
toques e marchas militares. Seguranças em duplas ou em três, fortemente
armados, se postavam na frente dos estabelecimentos comerciais, agências
bancárias e edifícios públicos.
Rostos e peles morenas predominavam em ambas as cidades,
embora traços indígenas mais marcantes não fossem tão comuns. Notei mais essas
características nos menores abandonados, moradores de rua, mendigos. As morenas
de longos cabelos lisos e pretos, sem serem estonteantes, faziam bem aos olhos.
Não se vestiam de maneira provocante, usavam mais calças compridas que saias ou
vestidos. Simpáticas e educadas, raramente olhavam ou paqueravam.
Os dois lados contavam com fortes traços comercias. Não
faltavam do lado paraguaio lojas vendendo bugigangas, eletrônicos, relógios,
informática, cd´s e, obviamente, o legítimo, e jamais falsificado, uísque
escocês.
Os passageiros dos ônibus urbanos de Ponta Porã reclamavam
do preço absurdo da passagem, o mesmo valor de São Paulo. Um deles descrevia ao
colega as maravilhas do bilhete único, implantado na cidade de São Paulo
durante gestão do Partido dos Trabalhadores. E bradava para todos ouvirem que,
com o preço cobrado em Ponta Porã, se podia viajar pela capital paulista sem
limites durante duas horas.
Ponta Porã não se animava durante a noite. Numa esquina,
quatro amigos ouviam som alto vomitado dos alto-falantes instalados no
porta-malas do carro. Somente o repertório batizado de sertanejo, muito
comercial, nada autêntico ou de raiz.
Decidi ir a Dourados e tentar melhores opções de
transportes para Bela Vista.
No início da rodovia, na saída da cidade, a polícia
federal efetuou fiscalização rigorosa no interior do ônibus e nas bagagens
guardadas embaixo. Sem eu notar, os policiais abriram a minha, vasculharam item
por item antes de recolocá-los novamente, sem critérios, esmagando tudo. E
contrariaram o procedimento correto que deveria ser feito na presença do dono
da bagagem, garantindo que ninguém acrescentaria nada de indesejável, e eu me livraria
de flagrantes forjados.
O protesto da turma do agronegócio continuava, bloqueando
fazendas, silos, estradas, cidades. Eles choravam pelo baixo valor do dólar. Queriam
perdão das dívidas. Rogavam por mais empréstimos praticamente sem juros. Em
outras palavras, os lucros ficariam nas mãos deles e os prejuízos seriam
assumidos pelo povo brasileiro. Era o capitalismo sem riscos dos capitalistas
do latifúndio. E tudo para a monocultura de exportação que empregava pouca mão
de obra e esgotava o solo.
Cidade planejada e espalhada, Dourados contava com ruas
arborizadas, nas calçadas e nos canteiros centrais das avenidas. Nas partes por
onde passei, elas pareciam limpas, organizadas e de bom aspecto. Compensava em
parte as caras fechadas e de poucos amigos dos moradores de pele e olhos claros.
Ano a ano, a região se tornava tristemente conhecida pelos massacres de
indígenas a manda dos elementos do agronegócio. Punição dos criminosos,
nenhuma.
Sentei-me ao ar livre em restaurante de esquina e comi à
vontade. Logo o ambiente lotou de famílias, casais, grupos. O som mecânico do
estabelecimento torturava com baladas caipiras estadunidenses, substituído em
seguida por música ao vivo recheada de padrões bregas e sertanejos.
À tarde embarquei em ônibus velho rumo a Bela Vista. A
frequência do pinga-pinga era de agricultores e peões que trabalhavam nas
fazendas da região. Conversei bastante com um que trabalhava e morava com a
família em fazenda de gado e carneiros próxima a Dourados.
A paisagem levemente ondulada oscilava entre infindáveis
plantações de milho, pastos para gado, terras improdutivas e desmatadas.
Acampamentos de trabalhadores rurais sem terra e de grupos indígenas apareciam
nas margens das rodovias. Antes da cidade de Antônio João, nomeada em homenagem
a brasileiro morto durante a invasão do exército brasileiro ao Paraguai,
percorremos longo trecho de estradas de terra extremamente empoeiradas,
deixando o interior do ônibus, bocas, narizes, entupidos de poeira. Outro
bloqueio dos latifundiários, logo liberado para ônibus e veículos particulares.
Nas imensas quantidades de terra, sem quaisquer almas vivas, embarcavam e
desembarcavam passageiros na beira da estrada. Nenhuma casa a vista em ambos os
lados. Eram agricultores, condutores de gado, empregados de fazendas, raros
pequenos proprietários. Usavam chapéus de couro, largos cinturões e botas de
cano alto. Conversando muito entre si, trocavam opiniões sobre o tempo,
criação, colheita, emprego. Simpáticos, porém reservados.
O pôr-do-sol avermelhado à direita e a lua cheia
alaranjada à esquerda deram espetáculo à parte na paisagem do cerrado.
Na calçada em Antônio João, três índios conversavam em
língua própria. Ninguém lhes dava atenção. Ouvi casos de invasões de terras
indígenas, comandadas pelos grandes fazendeiros, forçando os índios a se
organizarem para reaverem o que lhes era de direito. Mas era luta desigual e
desumana.
O ônibus seguiu lotado. Uma mãe próxima ao meu banco me
lançava olhares curiosos. Sentou-se ao meu lado um morador de Bela Vista que
decidira, depois da aposentadoria, estudar teologia em Dourados. Mas,
diferentemente dos fanáticos religiosos convencionais que repetem trechos
decorados das escrituras, o colega não parava de contar histórias de crimes
antigos na região onde nascera ou então detalhes enfadonhos das aulas da
faculdade.
Mais acampamentos de índios expulsos das terras milenares,
pelos latifundiários e acobertados pela polícia, surgiam na beira da estrada.
Os pobres coitados aguardavam até não sei quando o governo estadual e federal
reintegrá-los às terras dos ancestrais.
O ônibus velho entrou na pequena rodoviária de Bela Vista
à noite.
Entrei em restaurante, cuja parte interna, mais quentinha,
massacrava com o som ao vivo em volume exagerado. Pedi bebida, engoli a comida
medíocre. Enrolei com pude naquela barulheira. Duas mesas adiante e de frente
para o gritador ao microfone, três coroas exageradamente pintadas olhavam para todos
os lados, enquanto os lábios acompanhavam as letras das músicas.
Ninguém nas ruas naquela noite de sábado, nem mesmo nos
bares das calçadas, onde garçons cochilavam no balcão. O frio incomodava e
retornei ao quarto do hotel. Da janela eu ouvia sons de festa em outras partes
da cidade, e também vindos do lado do Paraguai, onde o locutor convocava a
população para o dia seguinte.
Tomei o fraco e madrugador café da manhã do hotel, que se
encerrava estranhamente às 8h.
Os paraguaios
comemoravam o aniversário da independência.
Na pequena cidade paraguaia de Bella Vista Norte, do outro
lado da ponte sobre o rio Apa, assisti cerimônias religiosas, discursos de
políticos cujos ternos se entupiam de medalhas, dramatização de cenas da noite
da independência, danças típicas na praça principal da cidade. Os presentes
aplaudiram e se emocionaram quando crianças declamaram poemas falados
inteiramente em língua guarani. O locutor ressaltava o orgulho do povo pela
descendência indígena. Demagogia ou não, as falas levantaram o ego dos
moradores. Grupos de escolares vestiam roupas típicas, saias longas, chapéus de
abas largas. Houve em seguida desfiles de estudantes com faixas enaltecendo a
história paraguaia, ao som de fanfarras. A população se aglomerava nas calçadas
e os políticos no palanque alto de madeira.
Pequenas e espalhadas, ambas as cidades irmãs não
ofereciam atrativos arquitetônicos. No lado brasileiro, a cidade de Bela Vista
revelava ruas largas, arborizadas, vazias em pleno domingo ensolarado. O clima
seco e o sol implacável amenizavam o frio, mas queimavam e desidratavam.
Almocei no mesmo restaurante da noite anterior, o único
aberto naquele domingo sonolento. A data comercial do dia das mães ditava a
frequência, de famílias inteiras e rosas nas mesas. Predominavam pessoas loiras
e sérias, gaúchas narigudas e geladas. Jamais levantavam os olhos para
desconhecidos. Apenas olhavam e conversavam entre si. Clãs fechados. Mas os
garçons, sempre bem humorados, me serviram bem.
Depois segui às barrancas do rio Apa, núcleo de fundação
da cidade. Hotel antigo, casarões ocupados por repartições públicas, o antigo
cinema em ruínas. Mais adiante, descendo à margem do rio, gramados sombreados
com churrasqueiras divertiam os que elegeram a natureza para aproveitar o
domingo.
Comprei passagem até a cidade de Jardim, onde passaria
minha noite de conexão rumo a Corumbá. O trecho percorrido da estrada revelava
terrenos ondulados, praticamente desprovidos de plantações. Raras criações de
gado, campos com palmeiras, matas ciliares, cerrado que ainda resistia aos
desmatamentos indiscriminados.
Jardim se animava mais que a pacata Bela Vista. O centro pequeno
e concentrado contava, ao redor, com ruas largas e arborizadas. Entrei em
restaurante que incluía delícias da culinária caipira e pantaneira. Comida
farta e saborosa. Finalmente me livrava da monotonia dos rodízios gaúchos. Saí
estufado e satisfeito.
Tentei em vão obter transporte para conhecer o Buraco das
Araras. Andei pela estrada e dei de cara com a ponte velha sobre o rio Miranda.
Parte despencara nas águas do rio em razão das fortes chuvas do início daquele
ano. Pescadores desciam o barranco de terra solta, se posicionavam nas margens,
lançavam os anzóis, esperavam, esperavam e esperavam os peixes.
Pelas ruas da cidade, mais morenas, mais olhares, mais
sorrisos, ampla variedade de comida que não se resumia aos rodízios de carne.
continua...
Eu acompanho o seu blog e fiquei curiosa em saber o quê te motiva a ir a esses lugares. O que você estava buscando?
ResponderExcluir-Marcela.
Oi Marcela, obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirDe maneira geral, busco em minhas viagens, além do prazer de conhecer paisagens e culturas, aprender cada vez mais sobre os interiores por onde passo.
Nesta viagem especificamente, em razão do pouco tempo disponível, pretendi ficar em cidades de fronteira internacional do estado. Conheci três delas, além de tomar contato com a realidade da região.
Qualquer coisa, me pergunte.
Abraços!
Olá, percebi que existem relatos corretos, sou morador de Ponta Porã, a 16 anos e realmente existe a falta de lugares para a diversão do povo local, como citado praças e lugares repletos de arvores, sombras etc...
ResponderExcluirGostaria de lhe convidar a retornar em uma outra ocasião, para quem sabe ver se houve alguma mudança, em sua visão sobre as cidades!!!
ROBERTO SALOMÃO
Oi Roberto, obrigado pela visita e pelo comentário.
ResponderExcluirCertamente quero voltar pois, independente se houve mudanças ou não na cidade, pode haver mudanças no meu olhar, sempre subjetivo em todas as viagens.
Valeu pela sugestão.
Abraços!