segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Mato Grosso do Sul (parte 1/2)

Após visitar as cidades fronteiriças internacionais da região Norte do Brasil, fiquei curioso em conhecer algumas do Centro Oeste. As chuvas haviam terminado. O sol começava a brilhar no céu limpo e azul. Época ideal para percorrer o Centro Oeste.
E lá fui eu, em meados de maio, rumo à viagem bem mais curta e modesta que as demais. Embarquei à tarde no terminal rodoviário da Barra Funda em ônibus para Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul.
Os poucos passageiros logo mergulharam em sono profundo. A paisagem no meio da escuridão se resumia a plantações, fábricas, cidades médias, em relevo levemente ondulado. A maioria desembarcou em Presidente Prudente no início da madrugada. E o ônibus lotou em seguida com novos passageiros.
Sentou-se ao meu lado um senhor gaúcho que viajava constantemente para o interior de São Paulo devido ao acidente que lhe fraturara o maxilar. Falava animadamente sobre gado, pescaria, sempre em detalhes incompreensíveis para mim. Ainda gostava de escrever e recitar poemas. Arriscou declamar versos da própria autoria, mas logo ficou rouco e desistiu.
Amanheceu nas imediações de Rio Brilhante, já no Mato Grosso do Sul. O colega gaúcho, meio agricultor, meio poeta, se despediu alegremente e desembarcou.
Do lado de fora, imensas planícies se perdiam de vista. Emas circulavam no meio das monoculturas de soja. Enormes fazendas cercadas exibiam ao lado acampamentos de trabalhadores rurais sem terra nos acostamentos da rodovia. A cerração baixa dominava os campos antes de se dissipar pelo sol.
O ônibus se esvaziou novamente a partir de Dourados. Pouco antes do acesso a Ponta Porã, latifundiários do agronegócio faziam chantagens emocionais através de bloqueios na rodovia. Rogavam pelo perdão das dívidas contraídas a juros baixos junto ao governo federal. Ainda exigiam mais empréstimos a perder de vista para exaurir o solo com a monocultura de exportação. Não longe dali, outro acampamento extenso de agricultores sem terra, sem dívidas, sem empréstimos, desejando cultivar alimentos, mas passando fome.
Desembarquei pela manhã na estação rodoviária de Ponta Porã.
A distância considerável até o centro da cidade não me impediu de colocar a mochila nas costas e caminhar bastante sob o sol e vento fresco. Tentei o primeiro hotel, caríssimo, o segundo, mal encarado, o terceiro, barato e de aspecto razoável.
A população parecia simpática e educada, mas sem calor humano, sorrisos, descontrações. Feições sulinas, rodízios, quitandas com frutas e verduras frescas, lojas e mais lojas.
Após o almoço, me acomodei no quarto, li o jornal Brasil de Fato, e adormeci. O piso frio e as nesgas de sol que entravam pela pequena janela do quarto me obrigavam a apelar para os cobertores do armário. E precisei de coragem e determinação para entrar no chuveiro morno.
Quase ninguém circulava pela avenida Brasil, a principal de Ponta Porã, naquela noite fria e com brisa seca. Raros estudantes e ainda mais raros frequentadores de bares eram as únicas almas vivas. Poucas luzes vinham do lado paraguaio. Ainda assim, carros com placas do Brasil se dirigiam para o meio daquele breu. Duas crianças paraguaias, maltrapilhas, jogavam pedras uma na outra.
A camareira do hotel, que ajudava na faxina e no simples, mas suficiente, café da manhã, me contou que a casa dela fora roubada no dia anterior. Não deixaram nem as roupas ou os objetos pessoais.
Durante o dia, o tereré, mate gelado tomado na cuia, reinava absoluto nos dois lados da fronteira. Em rodinhas de amigos nas calçadas, no balcão das lojas, no quintal das casas, no peitoril das janelas.
A avenida larga, extensa e arborizada, dividia o Brasil da cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero. Do lado de lá da fronteira, mais lojas, comidas servidas em barracas nas calçadas. Longe do sol ainda fazia frio, mesmo durante o dia.
Bastante arborizadas e com poucos edifícios altos, as cidades de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero não ofereciam construções de valor histórico ou beleza arquitetônica. A cidade paraguaia, apesar de mal cuidada, humilhava a irmã brasileira em quantidade e qualidade de áreas verdes. Eram inúmeras praças e parques, amplos, bonitos, arborizados, públicos. Não vi praças em Ponta Porã onde eu pudesse me sentar e descansar.
Sentado em uma das praças de Pedro Juan Caballero, eu assisti a ensaios de desfiles escolares, com fanfarras, coreografias, cornetas, toques e marchas militares. Seguranças em duplas ou em três, fortemente armados, se postavam na frente dos estabelecimentos comerciais, agências bancárias e edifícios públicos.
Rostos e peles morenas predominavam em ambas as cidades, embora traços indígenas mais marcantes não fossem tão comuns. Notei mais essas características nos menores abandonados, moradores de rua, mendigos. As morenas de longos cabelos lisos e pretos, sem serem estonteantes, faziam bem aos olhos. Não se vestiam de maneira provocante, usavam mais calças compridas que saias ou vestidos. Simpáticas e educadas, raramente olhavam ou paqueravam.
Os dois lados contavam com fortes traços comercias. Não faltavam do lado paraguaio lojas vendendo bugigangas, eletrônicos, relógios, informática, cd´s e, obviamente, o legítimo, e jamais falsificado, uísque escocês.
Os passageiros dos ônibus urbanos de Ponta Porã reclamavam do preço absurdo da passagem, o mesmo valor de São Paulo. Um deles descrevia ao colega as maravilhas do bilhete único, implantado na cidade de São Paulo durante gestão do Partido dos Trabalhadores. E bradava para todos ouvirem que, com o preço cobrado em Ponta Porã, se podia viajar pela capital paulista sem limites durante duas horas.
Ponta Porã não se animava durante a noite. Numa esquina, quatro amigos ouviam som alto vomitado dos alto-falantes instalados no porta-malas do carro. Somente o repertório batizado de sertanejo, muito comercial, nada autêntico ou de raiz.
Decidi ir a Dourados e tentar melhores opções de transportes para Bela Vista.
No início da rodovia, na saída da cidade, a polícia federal efetuou fiscalização rigorosa no interior do ônibus e nas bagagens guardadas embaixo. Sem eu notar, os policiais abriram a minha, vasculharam item por item antes de recolocá-los novamente, sem critérios, esmagando tudo. E contrariaram o procedimento correto que deveria ser feito na presença do dono da bagagem, garantindo que ninguém acrescentaria nada de indesejável, e eu me livraria de flagrantes forjados.
O protesto da turma do agronegócio continuava, bloqueando fazendas, silos, estradas, cidades. Eles choravam pelo baixo valor do dólar. Queriam perdão das dívidas. Rogavam por mais empréstimos praticamente sem juros. Em outras palavras, os lucros ficariam nas mãos deles e os prejuízos seriam assumidos pelo povo brasileiro. Era o capitalismo sem riscos dos capitalistas do latifúndio. E tudo para a monocultura de exportação que empregava pouca mão de obra e esgotava o solo.
Cidade planejada e espalhada, Dourados contava com ruas arborizadas, nas calçadas e nos canteiros centrais das avenidas. Nas partes por onde passei, elas pareciam limpas, organizadas e de bom aspecto. Compensava em parte as caras fechadas e de poucos amigos dos moradores de pele e olhos claros. Ano a ano, a região se tornava tristemente conhecida pelos massacres de indígenas a manda dos elementos do agronegócio. Punição dos criminosos, nenhuma.
Sentei-me ao ar livre em restaurante de esquina e comi à vontade. Logo o ambiente lotou de famílias, casais, grupos. O som mecânico do estabelecimento torturava com baladas caipiras estadunidenses, substituído em seguida por música ao vivo recheada de padrões bregas e sertanejos.
À tarde embarquei em ônibus velho rumo a Bela Vista. A frequência do pinga-pinga era de agricultores e peões que trabalhavam nas fazendas da região. Conversei bastante com um que trabalhava e morava com a família em fazenda de gado e carneiros próxima a Dourados.
A paisagem levemente ondulada oscilava entre infindáveis plantações de milho, pastos para gado, terras improdutivas e desmatadas. Acampamentos de trabalhadores rurais sem terra e de grupos indígenas apareciam nas margens das rodovias. Antes da cidade de Antônio João, nomeada em homenagem a brasileiro morto durante a invasão do exército brasileiro ao Paraguai, percorremos longo trecho de estradas de terra extremamente empoeiradas, deixando o interior do ônibus, bocas, narizes, entupidos de poeira. Outro bloqueio dos latifundiários, logo liberado para ônibus e veículos particulares. Nas imensas quantidades de terra, sem quaisquer almas vivas, embarcavam e desembarcavam passageiros na beira da estrada. Nenhuma casa a vista em ambos os lados. Eram agricultores, condutores de gado, empregados de fazendas, raros pequenos proprietários. Usavam chapéus de couro, largos cinturões e botas de cano alto. Conversando muito entre si, trocavam opiniões sobre o tempo, criação, colheita, emprego. Simpáticos, porém reservados.
O pôr-do-sol avermelhado à direita e a lua cheia alaranjada à esquerda deram espetáculo à parte na paisagem do cerrado.
Na calçada em Antônio João, três índios conversavam em língua própria. Ninguém lhes dava atenção. Ouvi casos de invasões de terras indígenas, comandadas pelos grandes fazendeiros, forçando os índios a se organizarem para reaverem o que lhes era de direito. Mas era luta desigual e desumana.
O ônibus seguiu lotado. Uma mãe próxima ao meu banco me lançava olhares curiosos. Sentou-se ao meu lado um morador de Bela Vista que decidira, depois da aposentadoria, estudar teologia em Dourados. Mas, diferentemente dos fanáticos religiosos convencionais que repetem trechos decorados das escrituras, o colega não parava de contar histórias de crimes antigos na região onde nascera ou então detalhes enfadonhos das aulas da faculdade.
Mais acampamentos de índios expulsos das terras milenares, pelos latifundiários e acobertados pela polícia, surgiam na beira da estrada. Os pobres coitados aguardavam até não sei quando o governo estadual e federal reintegrá-los às terras dos ancestrais.
O ônibus velho entrou na pequena rodoviária de Bela Vista à noite.
Entrei em restaurante, cuja parte interna, mais quentinha, massacrava com o som ao vivo em volume exagerado. Pedi bebida, engoli a comida medíocre. Enrolei com pude naquela barulheira. Duas mesas adiante e de frente para o gritador ao microfone, três coroas exageradamente pintadas olhavam para todos os lados, enquanto os lábios acompanhavam as letras das músicas.
Ninguém nas ruas naquela noite de sábado, nem mesmo nos bares das calçadas, onde garçons cochilavam no balcão. O frio incomodava e retornei ao quarto do hotel. Da janela eu ouvia sons de festa em outras partes da cidade, e também vindos do lado do Paraguai, onde o locutor convocava a população para o dia seguinte.
Tomei o fraco e madrugador café da manhã do hotel, que se encerrava estranhamente às 8h.
Os paraguaios comemoravam o aniversário da independência.
Na pequena cidade paraguaia de Bella Vista Norte, do outro lado da ponte sobre o rio Apa, assisti cerimônias religiosas, discursos de políticos cujos ternos se entupiam de medalhas, dramatização de cenas da noite da independência, danças típicas na praça principal da cidade. Os presentes aplaudiram e se emocionaram quando crianças declamaram poemas falados inteiramente em língua guarani. O locutor ressaltava o orgulho do povo pela descendência indígena. Demagogia ou não, as falas levantaram o ego dos moradores. Grupos de escolares vestiam roupas típicas, saias longas, chapéus de abas largas. Houve em seguida desfiles de estudantes com faixas enaltecendo a história paraguaia, ao som de fanfarras. A população se aglomerava nas calçadas e os políticos no palanque alto de madeira.
Pequenas e espalhadas, ambas as cidades irmãs não ofereciam atrativos arquitetônicos. No lado brasileiro, a cidade de Bela Vista revelava ruas largas, arborizadas, vazias em pleno domingo ensolarado. O clima seco e o sol implacável amenizavam o frio, mas queimavam e desidratavam.
Almocei no mesmo restaurante da noite anterior, o único aberto naquele domingo sonolento. A data comercial do dia das mães ditava a frequência, de famílias inteiras e rosas nas mesas. Predominavam pessoas loiras e sérias, gaúchas narigudas e geladas. Jamais levantavam os olhos para desconhecidos. Apenas olhavam e conversavam entre si. Clãs fechados. Mas os garçons, sempre bem humorados, me serviram bem.
Depois segui às barrancas do rio Apa, núcleo de fundação da cidade. Hotel antigo, casarões ocupados por repartições públicas, o antigo cinema em ruínas. Mais adiante, descendo à margem do rio, gramados sombreados com churrasqueiras divertiam os que elegeram a natureza para aproveitar o domingo.
Comprei passagem até a cidade de Jardim, onde passaria minha noite de conexão rumo a Corumbá. O trecho percorrido da estrada revelava terrenos ondulados, praticamente desprovidos de plantações. Raras criações de gado, campos com palmeiras, matas ciliares, cerrado que ainda resistia aos desmatamentos indiscriminados.
Jardim se animava mais que a pacata Bela Vista. O centro pequeno e concentrado contava, ao redor, com ruas largas e arborizadas. Entrei em restaurante que incluía delícias da culinária caipira e pantaneira. Comida farta e saborosa. Finalmente me livrava da monotonia dos rodízios gaúchos. Saí estufado e satisfeito.
Tentei em vão obter transporte para conhecer o Buraco das Araras. Andei pela estrada e dei de cara com a ponte velha sobre o rio Miranda. Parte despencara nas águas do rio em razão das fortes chuvas do início daquele ano. Pescadores desciam o barranco de terra solta, se posicionavam nas margens, lançavam os anzóis, esperavam, esperavam e esperavam os peixes.
Pelas ruas da cidade, mais morenas, mais olhares, mais sorrisos, ampla variedade de comida que não se resumia aos rodízios de carne.
continua...

4 comentários:

  1. Eu acompanho o seu blog e fiquei curiosa em saber o quê te motiva a ir a esses lugares. O que você estava buscando?
    -Marcela.

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  2. Oi Marcela, obrigado pelo comentário.
    De maneira geral, busco em minhas viagens, além do prazer de conhecer paisagens e culturas, aprender cada vez mais sobre os interiores por onde passo.
    Nesta viagem especificamente, em razão do pouco tempo disponível, pretendi ficar em cidades de fronteira internacional do estado. Conheci três delas, além de tomar contato com a realidade da região.
    Qualquer coisa, me pergunte.
    Abraços!

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  3. Olá, percebi que existem relatos corretos, sou morador de Ponta Porã, a 16 anos e realmente existe a falta de lugares para a diversão do povo local, como citado praças e lugares repletos de arvores, sombras etc...
    Gostaria de lhe convidar a retornar em uma outra ocasião, para quem sabe ver se houve alguma mudança, em sua visão sobre as cidades!!!
    ROBERTO SALOMÃO

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  4. Oi Roberto, obrigado pela visita e pelo comentário.
    Certamente quero voltar pois, independente se houve mudanças ou não na cidade, pode haver mudanças no meu olhar, sempre subjetivo em todas as viagens.
    Valeu pela sugestão.
    Abraços!

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