Nublara novamente e ventava um vento frio e constante.
Foi servido comes e bebes no final da tarde na pousada. Ao
descer, observamos objetos antigos, penduricalhos, itens diversos adornando
agradavelmente cantos e escadas. O perfume nauseante do incenso, no entanto,
tirava o apetite.
Lá embaixo, ao redor da mesa, estavam o casal proprietário
e um colega. Tomamos chá, beliscamos pãezinhos, queijos, frios. E conversamos.
Na realidade, mais ouvimos. Falavam de tudo um pouco, longa e contundentemente,
deixando raras oportunidades de nos manifestarmos. Mas, em viagens, agrada mais
ouvir do que falar. Viajantes desejam aprender, apreender, captar, absorver, e
não só as paisagens.
O casal se conheceu nos tempos da Vale do Rio Doce,
empresa estatal de mineração, gestão modelo e altamente lucrativa, até ser
privatizada ilegalmente em 1997 durante o regime entreguista de Fernando
Henrique Cardoso. Os testas-de-ferro do grande capital a entregaram a preço de
banana, muito abaixo do valor real da companhia, a capitalistas privados. A
privataria, recheada de irregularidades e inconstitucionalidades, conduzida por
corruptores e corruptos, rendeu inúmeros processos criminais. O povo brasileiro
aguarda ansiosamente a apuração dos crimes, a condenação exemplar dos culpados,
a devolução da empresa ao patrimônio público brasileiro, com juros e correção.
Durante nossa estadia na pousada, o marido nos entupiria
de informações sobre a história da região. Impressionante a capacidade de ele falar
durante horas, emendar assuntos aparentemente desconexos, abrir parênteses e
jamais fechá-los, ignorando a reação dos interlocutores. A esposa, que não era
boba e nem nada, escapava do ambiente tão logo o marido começava a discursar. E
sobrava para o casal recém-chegado ávido por histórias. Ainda mais que fomos os
únicos hóspedes naqueles dias.
Após banho morno entramos na pizzaria ao lado da pousada.
Arriscamos vinho, condizente com a noite fresca e o vento insistente, comemos
pizza bem preparada. O dono da pousada, sentado na mesa ao lado, aceitou nosso
convite, se sentou com a gente, provou do vinho e da pizza. Desembestou a
contar mais histórias, invariavelmente longas e ligadas magicamente a outras, sem
pontos, sem vírgulas, sem parar, quase sem respirar.
Botei lenha na fogueira ao lhe perguntar sobre o caso
Aracelli, famoso crime dos anos 1970, divinamente registrado e analisado pelo
jornalista José Louzeiro, no livro Aracelli,
meu Amor. Naqueles anos de ditadura civil e miliar, uma garota de nove anos
foi drogada, estuprada seguidas vezes, espancada, usada e abusada, depois
assassinada por membros da nobre elite de Vitória. Todos identificavam os culpados,
inclusive os inúmeros policiais que participaram das investigações, muitos
deles também assassinados ao se aproximarem da verdade. Mas ninguém até hoje
foi condenado ou preso.
O Judiciário brasileiro não prende e condena os ricos. O
Judiciário brasileiro só prende e condena os pobres.
Animado pelo vinho, ainda o cutuquei com vara curta a
respeito do elevado número de execuções pelos esquadrões da morte no Espírito
Santo, estado com um dos índices mais altos do Brasil nesse tipo de crime. Receoso,
ele falou, mas não disse nada. Era um tema espinhoso que a maioria amedrontada evitava
se manifestar. E o pavor apenas comprovava a existência generalizada desses
assassinatos por encomenda.
Adormecemos cedo naquela noite quase fria.
Comemos bem e variado durante o café da manhã. Mas,
como de praxe, ele, o marido, sentado ao lado e diante do jornal do dia,
comentava sobre qualquer coisa que lesse. Não importava a relevância do tema,
mas a necessidade de falar. Nem nos olhava, se satisfazendo em vomitar mil assuntos
nos ouvidos próximos. A esposa, como também de praxe, saía de fininho, inventando
atividades para se afastar.
Mais ao sul, no bairro planejado, triste e melancólico do
Coqueiral, assim como em muros de outros trechos do município de Aracruz, a
pichação “Pó preto não”, referência óbvia à poluição causada pela corporação
privada de eucaliptos e celulose.
O tempo começava abrir para o sol. E fomos aproveitar a
claridade da manhã.
Passamos ao lado de aldeias indígenas, a Boa Esperança
entre elas, abrigando etnias tupiniquins e guaranis, segundo as fontes da
pousada. Atravessamos a ponte sobre os manguezais e chegamos ao povoado de
Santa Cruz.
Perambulamos pelo vilarejo de pescadores que lotaria de
turistas na temporada de verão. Silencioso e bucólico no meio do ano, Santa
Cruz dava prazer em circular pelas ruas estreitas, praias e beira do mar de
águas calmas, mangues, fonte de água potável.
Retornamos pela mesma ponte e entramos nos acessos a
outras praias, cheias de casas, algumas da elite capixaba ou mineira, todas
vazias.
Na convidativa praia do Mar Azul, o vento frio não deixou
que nos estendêssemos sob o sol nas areias desertas diante do mar bravio. Castanheiras
e coqueiros, com troncos e galhos inclinados comprovavam a incidência do vento
constante. Nenhuma alma viva, na praia ou nas ruas.
Na praia dos Quinze, similar à anterior, nos chamou
atenção uma casa, provavelmente sobrado de família abastada, completamente
queimada. Somente duas estruturas de concreto ainda em pé. O resto, de madeira,
tudo torrado no chão, espalhado entre detritos pretos, cinzas, cacos de vidro,
pedaços retorcidos de eletrodomésticos. A cerca, também de madeira, estava
intacta, mantendo o distintivo da empresa de segurança que deveria cuidar dessa
e de outras residências ao redor.
Informações colhidas mais tarde garantiram que a polícia
identificara os culpados, adolescentes vizinhos e sedentos por emoções, mas a
punição parara nas repreensões verbais aos pais. Será? O dono da residência, em
trabalho no exterior, nem viera verificar os estragos, mesmo meses após o
ocorrido.
Retornamos à praia dos Padres, onde nos deliciamos com
moqueca de badejo. Estupenda! Saboreamos a maravilha da culinária capixaba
precedida de caipirinhas e doses de cachaça, purinha, branquinha.
Nublou e ventou frio ao entardecer, nos afastando de
aventuras nas praias que não fossem observar e registrar rapidamente a
paisagem.
Nos refugiamos na pousada sem conseguir evitar o assédio
do dono, especialmente durante o chá da tarde. Entre muitas e boas, todas
longas e encadeadas espetacularmente umas às outras, o colega nos contou como
resolviam problemas com cães e gatos que perturbavam a paz dos moradores dali.
Após a advertência inicial aos donos dos animaizinhos, que relutavam em tomar
as providencias cabíveis, fatos misteriosos aconteciam. Gatos e cães apareciam
mortos de uma hora para outra. Versões oficiais davam conta que,
repentinamente, os bichos estranhavam o vento incessante vindo do mar e vinham
a falecer.
Ao ouvir aquilo, num curioso processo de cognição, me
lembrei das conversas da noite anterior, com ele mesmo, sobre os esquadrões da
morte e as execuções de seres humanos por encomenda no Espírito Santo.
A comida e a bebida do jantar empolgaram como na noite
anterior. Na mesa ao lado do restaurante, dois brasileiros ciceroneavam cinco
portugueses, todos a trabalho e vestidos socialmente. Entre cochichos e
sussurros, tratavam de assuntos relacionados a tipos e qualidade de solo,
técnicas e maquinários agrícolas.
Nos matamos de comer pela manhã, antes de encerrar a conta
e pegar novamente a estrada.
Na avenida da Praia Grande demos de frente com protestos
que bloqueavam a ponte ligando à Nova Almeida. Queimaram pneus sobre a ponte e
a fumaça preta logo subiu aos céus avisando que a manifestação ia demorar. Não
ia e nem vinha nenhum veículo. Nada a fazer, senão deligar os motores e
esperar.
Passavam carros da polícia militar, dos bombeiros.
Voltavam em seguida. E nada.
Ninguém era informado sobre a situação. Os manifestantes deveriam
distribuir panfletos, carregar faixas, explicar as razões do bloqueio. Numa
dessas, em solidariedade às causas e às reivindicações, a população, nas
calçadas, ruas, veículos, poderiam apoiar e engrossar a luta. Mas não tínhamos
a mínima ideia de nada.
Cerca de duas horas depois do início dos protestos, a fila
de veículos começou a avançar. Atravessamos a ponte sobre asfalto enegrecido
pelos resíduos pneumáticos. Trechos ainda soltavam fumaça do chão.
E rumamos para sul sem saber as causas, as motivações, as
reivindicações, os temas, os porquês da manifestação. Nenhum panfleto, nenhuma
faixa ou bandeira, nenhuma palavra de ordem. Nada nas camisetas ou algo similar
que nos fizesse entender contra o que protestavam. Falha imperdoável dos
organizadores. Perderam a oportunidade de conquistar aliados às lutas. Ao
contrário, aproveitando essa desinformação, a mídia conservadora jogaria a
população contra eles.
Cruzamos Nova Almeida e Jacaraípe por avenidas monótonas. Entramos
na capital capixaba e devolvemos o carro na locadora.
Saímos do hotel para esticar as pernas. Sem pressa,
apreciando a paisagem praieira, caminhamos pelo calçadão da praia de Camburi.
Cruzamos a pequena ponte e, já na praia do Canto, encontramos lugar convidativo
para comer bem, de maneira variada, em ambiente frequentado por capixabas a
trabalho e pela fina flor do bairro elitizado.
Tingidos pela luz agradável do meio da tarde, perambulamos
mais pela beira do mar de Camburi. Chapinhamos pelas águas, mas nada de entrar.
O vento mais que fresco não atiçava o desejo por mergulhos. E nos entregarmos à
preguiça merecida no quarto do hotel, desta vez nos fundos. Ouvíamos os ruídos
incessantes da autoestrada da praia, porém em volume inferior ao dos quartos de
frente para o mar.
À noite, caprichamos o paladar entre galetos e linguiças
caseiras grelhadas, regados a razoáveis caipirinhas.
De volta ao bom café da manhã do hotel. E obviamente de
costas para o televisor em direção ao qual a maioria abandonava os olhares
bovinos nas programações embrutecedoras de sempre.
Despretensiosamente, sem planos para nada, fomos andando
pela praia de Camburi, pela praia do Canto, com jardins e parques infantis
formando conjunto aconchegante, mas largado e carente de manutenções. Avistamos
os acessos às antigas ilhas do Frade e do Boi, a Curva da Jurema com barraquinhas
de comes e bebes.
Rumamos novamente à praia da Costa em Vila Velha. A manhã
luminosa encantava, assim com as areias e a cor do mar, mas entrar nas águas
estava fora de questão devido ao vento frio.
A temperatura amena aguçou o apetite. Imediatamente nos
lembramos do restaurante de nossa primeira e inesquecível moqueca capixaba. Repetimos
a fenomenal moqueca de dourado, acompanhada de arroz, pirão e da surpreendente moquequinha
de banana-da-terra, cozida no próprio molho da moqueca. Tudo saborosíssimo e
ideal para a despedida dessa maravilha da culinária brasileira. Nossos olhos resplandeciam
em meio a garfadas e goles. Definitivamente a moqueca capixaba supera com folga
a deliciosa moqueca baiana.
Retornamos a Vitória em tempo de visitar o galpão oficial
das famosas Paneleiras do Espírito Santo. Acompanhamos as diversas etapas da
fabricação das panelas, caldeirões, tigelas e afins. A modelagem com a argila
especialmente voltada para a atividade, a secagem, a queima em fogos improvisados
de restos de madeira velha, do lado de fora do galpão e parecendo lixões à
distância, o banho com a tinta obtida da casca de arbusto do mangue, a
exposição para venda, a embalagem e o envio para o Brasil todo.
Antes do amanhecer do dia seguinte, os coitados dos
turistas de pacote já arrastavam as ruidosas malas de rodinha pelos corredores
do hotel, sem o café da manhã, apressados em direção ao ônibus da empresa que
os aguardava com o motor ligado.
Passeamos pelas areias da praia de Camburi sob o sol impecável,
sem nuvens. Pratiquei vinte flexões para tomar coragem e entrar no mar. A maré
vazava, as ondas estouravam em terreno mais plano. O mar puxava menos e pude
relaxar após o choque térmico inicial.
Pegamos ônibus e, depois de passar por terminais urbanos
ao norte de Vitória, descemos na enseada de Jacaraípe, município de Serra.
O dia luminoso, brilhante, realçava as formas e cores,
valorizando a paisagem.
A enseada de Jacaraípe atraía frequência simples, alegre,
sem fricotes, ao longo de praia aplainada, atraente, de ondas regulares. Ao
lado da ponte de pedestres sobre o rio que vinha do manguezal, a placidez de
barcos coloridos dos pescadores atracados nas muradas da praça.
A caipirinha abriu caminho para postas de badejo
acompanhadas de arroz com alho e salada mista. Alternávamos garfadas e goles
com contemplações da praia, do azul do mar, do movimento discreto daquele
sábado de sol forte.
Subimos em outro ônibus urbano até o aeroporto de Vitória.
O tranquilo e rápido voo nos deixou em São Paulo naquele
final de julho.
Em pouco tempo eu entrava em casa, feliz pela viagem, pelo
Espírito Santo e pelos capixabas.
Viajante Sustentável, além de uma viagem de aprendizagem, fiquei maravilhada com tantos Brasis encontrados incrustados dentro de um pequeno estado. Não estou tão feliz por chegar ao final da leitura e sim por perceber que ainda restaram algumas moquecas. Risos. Abração amigo e obrigada.
ResponderExcluirEssas moquecas me dão água na boca só de lembrar delas, até hoje rsss. Na diversidade física e cultural, nas qualidades maravilhosas e nos defeitos assombrosos, o ES surpreende. Viajar assim enriquece... Comente sempre... Abraços.
ResponderExcluirOi, gostaria de entrevistá-lo para uma reportagem que estou produzindo sobre turismo responsável e sustentável, você poderia me proporcionar seu email?
ResponderExcluirDe qualquer forma deixo o meu, se puder entrar em contato :)
mahpaschoalli@gmail.com
Obrigado!
Além das paisagens, moquecas e dos capixabas, ficou também o sentimento de ternura, de amizade, de companheirismo que me faz sentir tamanha felicidade ao seu lado. Pois é pelo enorme carinho que sinto por você, que posso dizer que realmente sou uma pessoa muito feliz! Obrigada por fazer parte da minha vida.
ResponderExcluirBjus Ternurentos!
Oi Ela, obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirTambém sinto o mesmo. Essa viagem não teria sido nem a metade sem você. Você que a propôs, você que a enriqueceu, você que a envolveu da maior de todas as belezas, a sua companhia.
Cobrarei e devolverei em dobro esses beijos!
Olá viajante!
ResponderExcluirQuão belas paisagens e notórias evidencias rochosas, não?
Também já tive o prazer de estar em algumas praias e o belo "Convento da Penha", sei que já a muito, pra ser sincero, desde a inauguração da 3ª ponte em 29 de agosto de 89 que eu nao visito, mas ainda me lembro da imponência dos pontos visitados...
Ainda faltou de certo a sua visita ainda mais ao sul do litoral capixaba, ficaram praias ainda muito simples e de pouca visitação, nao desertas, mas bem calmas, já bem próximas do Estado do Rio. Enfim, estou adorando a leitura do seu blog, obrigado pela oportunidade de ler-te!
Olá José, obrigado pela atenção e pelos comentários.
ResponderExcluirTambém me encantei com as paisagens naturais capixabas, tanto que quero voltar e explorar essas região que você me indicou.
O povo a cultura do estado também me empolgaram, sobretudo as saborosíssimas moquecas.
Comente sempre.
Abraços!