O TEMPO LIVRE
Nem só de trabalho se vivia por aquelas bandas de
Rondônia. Na vila da empresa, cumpríamos o horário comercial, mas as opções de
lazer eram mínimas. Mesmo no setor dos funcionários de nível superior das duas
vilas artificiais da empresa.
Jogávamos vôlei ou futebol nas quadras de areia,
aproveitávamos as piscinas, frequentávamos o clube social, comparecíamos aos
monótonos e repetitivos churrascos, invariavelmente com os mesmos rostos de
sempre, conversando os mesmos assuntos de sempre, bebendo bastante como sempre.
O assanhamento brotava quando alguém de fora, parente ou não, aparecia para
oxigenar o ambiente, sobretudo se mulher disponível e um pouquinho atraente.
Sim, pois, naquela colônia penal, o nível de exigências caía com o passar do
tempo.
Quando juntavam
vários geólogos, bebíamos todas e mais um pouco, enquanto debatíamos as origens
da cassiterita e as mais apropriadas técnicas de prospecção mineral. O álcool e
o assunto nos enlevavam. Discutíamos de maneira tão exaltada que assustávamos
os das mesas vizinhas. Ou então jogávamos sinuca, tênis de mesa, víamos filmes
pelo videocassete, então uma novidade, sobretudo no interior de Rondônia.
Num dado dia livre
eu e mais três colegas decidimos sumir das vilas artificiais. Subimos na
caminhonete e pegamos a estrada de saída rumo a BR-364. Não havia grandes
opções. Ou parávamos nos bares de beira de estrada para encher a cara de bebida
ruim na companhia de putas feias, sujas e banguelas ou seguíamos até a cidade
de Ariquemes, algumas horas dali por estradas de terra. Por exclusão escolhemos
a segunda opção.
Embora sede de
município, nada se podia esperar de Ariquemes além de miséria, poeira,
construções de madeira, aspecto de terra sem lei, olhares e comportamentos
suspeitos. Os cinco anos de emancipação não foram suficientes para lhe dar
aparência de cidade. O local estava mais para clareira na floresta, parca e
desordenadamente ocupada. Mas, surpreendentemente, foi lá que pela primeira vez
comi em restaurante de comida japonesa.
Assessorado pelo
técnico de mineração paraense, um nissei, resolvemos enfrentar a parada em
instalações precárias e pouco confiáveis, de madeira obviamente. Porém a comida
compensou. Enchemos a barriga de variedades em grande quantidade e de boa
qualidade.
Saímos à tarde do
restaurante meio sem rumo. Decidimos dar a última volta pelo emaranhado de ruas
empoeiradas de Ariquemes. Eu estava no volante e na ruazinha esburacada,
caminhando pelo rascunho de calçada, uma morena, cabelos pretos e longos,
roupas compatíveis com o calor que massacrava. Fui notado por olhares
insinuantes. Sinalizei que queria algo mais concreto. Não senti recusas. Larguei
meus colegas no primeiro bar que apareceu e voltei para resgatá-la do sol
forte.
Subiu na cabine e
nos refugiamos nos arredores da cidadezinha, em local sem alma humana por
perto. Não houve tempo para preâmbulos e apresentações. Usamos e abusamos na
cabine e na carroceria, mesmo debaixo daquele sol de rachar mamona. E nos
lambuzamos até dizer chega.
Apesar da
facilidade e falta de resistência, não me pareceu puta, não no sentido
profissional da palavra. Pau para toda obra na região provavelmente, mas não
puta. Não me pediu nada em troca e nem lhe oferecia nada.
Só sei que o fato
rendeu histórias nas duas vilas da empresa por muito tempo. Meus colegas de
aventuras jamais iriam deixar por menos. Ainda mais que os odores característicos,
decorrentes dos acasalamentos na caminhonete, marcaram toda a viagem de volta.
ELAS
Muitas mulheres moravam na segunda vila artificial. Além
das esposas e filhas dos funcionários, de quem mantínhamos a distância
regulamentar, havia as que também trabalhavam na empresa. Eram professoras,
médicas, enfermeiras, trabalhadoras de escritório. Paranaenses, paraenses e
maranhenses compunham a maioria das professoras, a função em maior número por
ali. Como todo o respeito a elas e, principalmente, ao estado de perigo que a
maioria dos homens vivia, se juntássemos todas não montaríamos uma sequer. Conservadoras,
carolas, reprimidas, restritas intelectualmente, as colegas em nada amenizavam
a dramática a situação dos solteiros. E, paradoxalmente, loucas para casar.
Ocorria que, acidentalmente, permanecesse apenas uma delas
na sala de jogos do clube entre um ou mais homens. Assim que a dita cuja se apercebia, se levantava subitamente, se apressando
no caminho da porta. À minha pergunta do motivo daquele pânico, respondeu: “uma
mulher não pode ficar sozinha com outro homem”. Eu não sabia se ria ou chorava.
Não entendíamos como uma mulher de vinte e poucos anos, saída do interior e
disposta a ensinar em escola no meio da floresta amazônica, a milhares de
quilômetros de casa, obcecada por casamento, pudesse se comportar de maneira
tão medieval. Ao não ficarem sozinhas entre homens, porém, gostavam de se
aproximar e conversar assuntos insípidos e sonolentos.
O consumo contínuo
e excessivo de álcool, o afastamento da vida urbana, a solidão, a carência
afetiva, entre outros problemas, atingiam de maneira intensa e diversa cada um
dali. O engenheiro civil, carioca, além de beber bastante, vivia com frequentes
dores no estômago e no intestino. Uma das professoras, maranhense, oportunista,
confortava-o nas horas mais delicadas. Em pouco tempo começaram a namorar. Ela
não largava do pé dele, envolvendo-o nas próprias teias. Em pouco tempo, o
coitado já não respirava sem a autorização dela. Todos percebiam que o que os
unia era a profunda carência decorrente do confinamento forçado naquela vila da
transnacional. Logo surgiram alianças nas mãos direitas do casal. E começaram a
planejar casamento.
Notei a
arrumadeira dos quartos. Baixinha, substanciosa, morena, olhar perigoso. Em
condições normais de temperatura e pressão, provavelmente não a consideraria. A
situação, porém, estava grave. Insinuei minhas intenções. Ela não disse nem sim
nem não. Peguei-a no final do expediente e fomos a uma estradinha local,
estreita, com movimento zero, ainda mais ao anoitecer. Deixamos as burocracias
de lado e partimos direto ao ponto. Saímos outras vezes. Optávamos ora pela
cabine da caminhonete ora pela carroceria, mais ventilada e espaçosa.
E havia a famosa
enfermeira do ambulatório. Magra, alta, tipo indígena, rosto gasto e sem
beleza, jeito para lá de oferecido, corria fama entre os funcionários. Pelos
indícios, jamais negara carinhos a quem solicitasse. Nunca descobri o motivo do
número 2000 após o nome dela. Muitos garantiam que derivava da quantidade de
clientes atendidos intimamente.
Num final de
projeto, enquanto elaborávamos relatórios, cresceu a demanda por desenhistas
para a confecção de mapas e perfis. A equipe fixa da vila principal não dava
conta do recado e a empresa recrutou mais recursos na sede do Rio de Janeiro.
Entre os
desenhistas estava uma balzaquiana, de estatura média, corpo suculento, sorriso
sempre presente, charme à flor da pele. Não sei se pelo isolamento na colônia
penal ou pela carência incurável da idade, mas logo começamos a babar pela
desenhista. Dizia ser separada, com filhos, independente e mostrava olhares
para lá de insinuantes. Virou o assunto e o desejo da maioria dos solteiros. E
talvez dos casados também.
Minhas visitas ao
departamento de desenhos aumentaram e algo sinalizava que ela tinha ido com
minha cara. Sorrisos, olhares, movimentos de corpo, balançar dos cabelos
volumosos me deixavam ainda mais empolgado. Devia dar o bote antes que alguém o
fizesse.
Num sábado à
noite, a empresa organizou a festa do Havaí. Ninguém podia perder e lá estava
eu no clube da vila principal. E a desenhista também. Trocamos olhares e logo
tratei de marcar presença e terreno. A atração transbordava pelos poros de
ambos.
Em pouco tempo nos
agarrávamos no canto do salão. A festa ficou pequena e muitos eram os olhares
curiosos. Levei a donzela à minha suíte na segunda vila, quase uma hora por
estrada de chão, ainda mais à noite e com umas na cabeça.
A empresa não
permitia que funcionários solteiros do sexo oposto dormissem ou permanecerem no
mesmo quarto sob quaisquer circunstâncias. Ainda mais naquelas condições de
pura excitação e terceiras intenções. Mandei às favas o regulamento hipócrita
dos estrangeiros. E a noite foi curta. Antes do café da manhã do domingo, ela
saiu e tentamos disfarçar o indisfarçável. Ainda ficamos juntos em outras
noites.
Mas tive que ficar
fora por duas semanas, no acampamento do projeto de campo. Quando voltei, a
carioca já havia retornado ao Rio de Janeiro. Fizeram fila para se aninhar com
ela. Poucos os que não conseguiram. A desenhista serviu a quase todos. Na
verdade, não se sabe quem serviu a quem. Ambos os lados aproveitaram e se
deliciaram.
Certa noite, alguns
amigos do gerente administrativo estavam em visita pela segunda vila. Entre
eles, uma falsa loira, trintona, atraente, simpática, comunicativa. Era
candidata à vereadora em Ariquemes pelo partido oficial da ditadura. Apesar de
casada, não trouxera o marido a tiracolo e parecia disposta a agradar os
eleitores da melhor maneira. Trocamos olhares e começamos a conversar
animadamente. Ambos se interessaram pelos temas políticos, mas logo percebi que
deveria evitá-los. A nobre candidata recitava lemas fascistas sobre o Brasil e
os brasileiros, sobretudo no que se refere à situação do campo, na qual
demonstrava ser herdeira de teses escravistas. Além de minhas opiniões se
situarem a cento e oitenta graus daquilo, me atraí mais por outras posições
dela, que não as políticas. Em meio ao discurso para lá de reacionário, a
aspirante à política exalava charme enquanto abria os lábios, movimentava o
corpo, mexia nos cabelos, me lançava olhares cheios de segundas intenções. Até
rolou clima para, quem sabe, mais tarde, esquentar a noite em local mais discreto.
Não me permiti,
porém, tirar os pés do chão, temendo aonde me meteria. Como latifundiária,
ligada à pior corja de invasores de terras, grileiros, pistoleiros, policiais e
juízes corruptos, criminosos em geral, aquelas atitudes fascistas não se restringiam
ao discurso eleitoral. A beldade à minha frente pertencia literalmente à classe
que usava e abusava da violência para manter e ampliar o poderio econômico.
Quanto mais ela se abria, mais me conscientizava que, caso prosseguisse, me
enroscaria em teias podres, das quais não sairia ileso. Decidi recuar, esfriar
a quentura, inventar qualquer desculpa e pular fora. Ela nem percebeu, ou
fingiu não perceber.
Claro que depois
me bateu arrependimento ou, no mínimo, dúvidas. Ainda mais vivendo naquela
estiagem crônica de mulheres. Porém, como um amigo costumava afirmar: “Nessas
horas, é melhor não”. Foi uma pena, mas saí vivo e sem escoriações.
O
FINAL
Ainda não completara um ano de atuação nos projetos de
prospecção mineral da transnacional em Rondônia e a chapa já esquentara. O
péssimo relacionamento com o gerente ameba, o isolamento social, a vida vazia e
sem perspectivas, que não fossem me alcoolizar e me amarrar àquelas mulheres
pavorosas, tornaram minha permanência insustentável.
Troquei ideias com outro geólogo também descontente e não
vimos luz no fim do túnel. De qualquer maneira, decidimos tentar a última
cartada. Frente às incontáveis barbaridades cometidas pelo gerente,
unanimemente repudiadas, dos peões aos geólogos, escrevemos longa carta ao
diretor de mineração da empresa, então lotado no Rio de Janeiro. Expusemos
detalhadamente, item por item, cada ato de incompetência técnica e
administrativa cometida pelo sujeito, seguidas das providenciais propostas de
solução. Escolhemos uma noite tranquila para datilografá-las nas máquinas de
escrever do escritório da vila principal. Não esquecemos o papel-carbono a fim
de ficarmos com a cópia fiel dos textos. Lemos e relemos dezenas de vezes.
Ponderamos isso e aquilo. Além dos riscos que corríamos com a contundência das
afirmações, não queríamos passar por levianos ou mentirosos. Tudo que
escrevíamos ali deveria ser passível de imediata comprovação. Enviamos
finalmente ambas as denúncias no primeiro malote. E só aguardando o estouro.
E a reação veio em poucos dias. Fui sumariamente demitido
sem maiores explicações. Meu colega ainda teve semanas para respirar antes da
bordoada. Em ambos os casos, a transnacional nem sequer expôs os motivos ou
comentários a respeito do conteúdo das denuncias que escrevêramos. Jamais tive
notícias do tal diretor. Não nos surpreendeu o fato do gerente ameba estar
muito solidamente atado à cúpula estrangeira. Sabíamos que não teríamos força.
As cartas serviram mais para desabafar e tirar o peso da consciência. Ninguém
poderia nos acusar de indiferença ou ausência de iniciativa diante do caos pelo
qual passavam os projetos e da insatisfação da maioria dos funcionários.
Me despedi de todos. A maioria me elogiou pela ousadia.
Outros enfiaram a cabeça no buraco e me evitaram, temendo se contagiar pelo profissionalismo.
Me senti aliviado pela melhor decisão tomada. E sairia da colônia penal da
transnacional. Nada contra as maravilhas da floresta amazônica e os povos
originais que nela habitam, mas sim pelos crimes que os estrangeiros cometiam
impunemente à natureza e aos seres humanos que lá viviam e trabalhavam.
Assinei o que tinha que assinar e voei dali o mais rápido
possível. Nem precisei ir ao Rio para sacar meus direitos. Em São Paulo mesmo
consegui tudo o que precisava.
Reconquistara minha vida no final de 1982 depois de quase um ano confinado.
Parabéns... Pessoa duplamente corajosa.
ResponderExcluir;)
Olá, Graça Marques, obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirAntes a experiência tivesse sido a partir de viagens a passeio, atividade que realizei tantas vezes depois pelos quatro cantos da Amazônia, todas elas relatadas neste blog.
Mas essa aí de cima foi para morar e trabalhar.
De qualquer maneira, valeu e voltei mais vivido, amadurecido e experiente.
Abraços!
Vou começar a ler seu blog, post por post...
ResponderExcluir;)
Olá, Ju Lehmen, obrigado pela atençäo.
ResponderExcluirEspero seus comentários.
Abraços!
Olá,
ResponderExcluirTudo bem?
Meu nome é Vinicius, queria parabenizar o Viajante Sustentavel. Ando visitando muitos blogs relacionados a viagem por motivos de trabalho e o seu me chamou a atenção pelo qualidade do conteúdo.
Acho que você fez um ótimo trabalho com ele e gostaria de propor uma parceria; sou ligado a uma seguradora de viagem, e estamos sempre buscando sites interessantes para fecharmos parcerias de infográficos, artigos, etc.
Estaríamos muito interessados em nos associarmos ao seu site!
Já temos algumas ideias de posts que poderíamos escrever especialmente para ele, sem nenhum custo pra você, como: dicas de locais quentes e baratos pra escapar dessa frente fria; como se planejar pra economizar o máximo na viagem; como arrumar as malas da forma mais eficiente; os melhores hostels pra ficar na Europa; como usar sites de alugar quarto no exterior, como AirBnb, e uma lista dos mais confiáveis. Enfim, muitas idéias!
O que você acha, podemos conversar mais? Seria um prazer conhecer melhor a equipe por trás do Viajante Sustentavel, e criarmos conteúdo interessante para seus leitores!
Agradeço desde já.
Abraços,
Muito bom de ler, texto claro, dá vontade de continuar a leitura.
ResponderExcluirwww.reginalemos.blogspot.com
Este é o meu blog.
Olá, Vinicius. Obrigado pelos comentários.
ResponderExcluirNeste blog, entre outros temas, memórias, reflexões e fotos de minhas viagens pelos interiores do Brasil e de outros países da América, Europa e Ásia, contendo questionamentos e análises sociais e ambientais.
Fique à vontade para pesquisar, ler, comentar, divulgar. Boas leituras!!!
Olá Regina, obrigado pelos comentários.
ResponderExcluirLeia e comente sempre.
Abraços!
Olá! Gostei do conteúdo, vou continuar lendo seus post. Gostaria de saber qual seria o nome desta mineradora em que você trabalhou nesta região de Ariquemes na década de 80? Conheci um sr. há uns 3 anos q trabalhou na área administrativa ou contabilidade(não me lembro bem como ele contou), numa mineradora lá em RO também nesta época, e me relatou sobre as endemias da época, enfim, sobre os riscos de saúde na região, numa época em que o estado estava ainda dando seus primeiros passos e consequentemente sem recursos.
ResponderExcluirOlá, qual o seu nome?
ResponderExcluirObrigado pelos comentários.
A empresa era uma associação entre uma transnacional inglesa e uma transnacional canadense, batizada de um nome brasileiro.
Tudo que escrevi é a pura verdade, mas bem resumida. O detalhado era bem mais intenso.
Você mora em Rondônia?
Leia e comente sempre...
Abraços!