terça-feira, 19 de março de 2013

Um Ano em Rondônia (parte 3/5)

...continuação
A FLORESTA

Ao contrário da caatinga, não sentia a mínima dificuldade de caminhar pela floresta fora das trilhas. Quase não havia espinhos, as folhas eram largas e macias, não faltava espaço por entre a vegetação. Constantemente fofo, o solo não oferecia grandes obstáculos rochosos ou pontudos. Raízes úmidas e escorregadias, buracos tapados por folhas, troncos de árvores caídas, rios e igarapés para atravessar, a pé ou a nado, o perigo latente de se perder, no entanto, requeriam maiores atenções.
 
Também diferente da caatinga, a floresta amazônica, nos trechos por onde andei, era mais silenciosa. Havia menos cantos de pássaros. Vi menos cobras, aranhas, escorpiões. Sempre fechada nas copas altas, a mais de cinquenta metros de altura, o solo da floresta raramente recebia os raios do sol. Daí eu estar constantemente com a pele branca de tanta sombra e semiescuridão.

Da mesma maneira, o vento praticamente não penetrava nas partes baixas da mata. Bem acima de mim, as copas balançavam, mas nada de brisa embaixo. O calor abafado e sem ventilação provocava transpiração constante. As roupas facilmente encharcavam de suor. Ao surgirem igarapés, eu não pensava duas vezes e entrava de roupa e tudo. E parava no meio do canal, me posicionando com o rosto contra a corrente, nivelando a boca com a superfície da água, e engolia farta quantidade de água limpa e fresca.

A comida salgada do jantar do acampamento me provocava sede durante a noite. E era sede de água fresquinha, não aquela morna do cantil ao alcance da mão. Deixava a rede e, de lanterna, me dirigia ao igarapé a poucos metros do acampamento. A melhor água corria no meio do canal, afastada da margem, tendo que molhar os pés e me esticar para alcançá-la. Notei algo escuro e alongado no fundo das águas. Não se movia e concluí ser um tronco de madeira arrastado pela correnteza. Como o tal tronco estava bem abaixo do trecho da água mais fresca, me aproximei tanto que quase o toquei. Ainda bem. O tal tronco não era tronco e sim um jacaré adormecido. E vivo, muito vivo. O danado abriu a bocarra, se agitando exageradamente, espirrando água para todos os lados. Se o jacaré se assustou com a minha proximidade, imagine eu. Automaticamente saltei para trás, me atrapalhando com a água, desesperado para sair logo dali, sem falar dos gritos que me saíram involuntariamente. Os peões acordaram, saltaram das redes e saíram em disparada na minha direção. Ninguém via nada devido à escuridão da noite. Não sabiam exatamente o que acontecera.

O jacaré não me fez nenhum mal. Os peões, porém, decidiram abotoar o paletó do pobre réptil. Choveram pancadas de pau na cabeça do coitado. E me animei com a possibilidade de o cozinheiro prepará-lo no dia seguinte. Dormi salivando com essa esperança. Mas me frustrei redondamente quando amanheceu. Me surpreenderam ao afirmarem que ninguém comia carne de jacaré por aquelas bandas. O cozinheiro nem saberia por onde começar. Nada de banquete à vista. O jacaré morrera por nada. Inconformado, ainda o observei antes de jogarem o cadáver em ponto distante do acampamento.

Em outro projeto, um geólogo paraense pisou acidentalmente numa surucucu. Em legítima defesa, a cobra o picou na batata da perna. A sorte é que ele vestia calça grossa e larga de brim, prejudicando o acesso de ambas as presas da cobra. Apenas uma delas o atingiu, inoculando pequena quantidade do veneno.

Demorou certo tempo para ele chegar ao posto médico da segunda vila e ser medicado. A transnacional estrangeira contava apenas com soro contra outros tipos de veneno, e ainda por cima com a data de validade vencida. Os irresponsáveis nem programaram a aquisição do soro anti-laquésico, aplicável às surucucus, típicas da região.

O geólogo paraense permaneceu hospitalizado no pequeno hospital enquanto a ferida cicatrizasse e o veneno inoculado não oferecesse maiores perigos. Exibindo o ferimento como um troféu, recebeu visitas de vários de nós para conversar e passar o tempo entre muitas risadas.

Eu me protegia com minhas inseparáveis perneiras de couro duplo que providenciara em Tatuí, interior de São Paulo. Após o acidente com a surucucu, encomendei soro antiofídico junto ao Instituto Butantã, também em São Paulo, porém me disponibilizaram pequena quantidade, e apenas do tipo polivalente, voltado contra os venenos de jararacas e cascavéis.

Pouco ouvi sobre onças. Os peões descreviam cenas de antigos funcionários dilacerados, ou de ossos perdidos na floresta de certo sujeito desaparecido havia meses. Sempre alertavam sobre as cabeceiras de igarapés, principalmente durante as fases de cio e partos recentes, momentos nos quais as onças se tornavam pouco amigáveis. Nada vi ou ouvi além de rastros grandes e recentes nas proximidades dos acampamentos. Certamente elas nos rondavam. A extensão de mais de vinte centímetros das marcas de cada pata impunha respeito.

O cozinheiro me contou que uma onça se aproximara da cozinha do acampamento numa manhã. Notou ao assustá-la com os chiados do rádio ao mudar de estação. Acontece que o cozinheiro, o tal que adorava berrar cantorias do fundamentalismo religioso, vivia acompanhado de dois cachorros. Imediatamente percebi o que atraía as onças. Embarquei os cachorros na primeira viagem do barqueiro, o mesmo que nos transportava e nos abastecia de insumos.
 
Nem os jacarés, inofensivos, encontrados em grupos nas praias fluviais no final da tarde. Nem as cobras, pouco avistadas nas trilhas ou proximidades do acampamento. Nem as onças, virtuais ou não. Nem as piranhas, com as quais nadei, lado a lado, várias vezes, nos igarapés maiores, e que apenas me analisavam ou me tocavam com a boca fechada, sem jamais me morderem. Nem as raras aranhas ou os escondidos escorpiões. Nem os espessos e extensos cortejos de incansáveis formigas, me obrigando a pegar impulso para saltar correndo sem atingi-las.
 
Nenhum desses bichos, que atacam somente quando se sentem atacados, chegariam perto das torturas praticadas pelos insetos voadores. Viviam em nuvens e existiam em praticamente todos os lugares onde estive, nos acampamentos, nas trilhas, nas imediações das vilas. Não deixavam ninguém em paz, atazanando sempre e em todo lugar. E de todos os tipos e tamanhos imagináveis. Havia os que picavam e os que não picavam. E mesmo os que não picavam, estouravam os limites da paciência. Vinham aos milhares. Pousavam nos braços, mãos, pernas, rosto. Entravam nos cabelos, mergulhando rumo ao couro cabeludo. Em determinado acampamento não conseguia comer fora do mosquiteiro, pois milhares de mosquitos entrariam na boca assim que eu a abrisse para colocar a comida.
 
O tempo e a falta de alternativas me ensinaram a não resistir, a me entregar, a desistir de lutar. Vez ou outra, eu me via coberto deles pelo corpo todo e, impassível, fingia que não era comigo.
 
Nunca, porém, peguei malária, seja da falciparum ou da vivax. Ao contrário dos peões que adoeceram em mais de uma oportunidade, criando esquema de emergência para transportá-los a um atendimento mais ou menos decente na vila da empresa. Me protegia preferindo calças e camisetas de mangas compridas, me recolhendo à rede, dentro do mosquiteiro, ao amanhecer e ao entardecer.
 
Sobretudo nos acampamentos recém-montados, as abelhas, longas e rajadas em preto e branco, infernizavam. Eu era picado duas a três vezes por dia, nos dedos ou na palma das mãos, ardendo e inchando imediatamente. Então distribuíamos latas de compotas, cheias do caldo açucarado restante, em cantos afastados do acampamento. As coitadas faziam fila para mergulharem e se prenderem no líquido viscoso. No dia seguinte, centenas delas estavam atoladas e mortas, dentro da calda da lata.
 
Estava eu numa trilha situada não muito distante da vila da empresa, permitindo ir e voltar no mesmo dia, sem precisar acampar. Eu deixara a caminhonete estacionada na margem da estrada larga que seguia em direção a uma das principais minas ativas da empresa. Eu ia à frente conduzindo os demais ao ponto para coletar amostras de solo com o trado. Caminhávamos cada um mantendo boa distância do outro.
 
Árvore de grande porte, chegando a cinquenta metros de altura, mas com raízes pouco profundas, a castanheira comumente caía com as intensas ventanias que se antecipavam às tempestades amazônicas. E foi com uma dessas imensidões que me deparei, caída e atravessada na trilha. A fim de evitar contorná-la, preferi pulá-la. Mesmo deitada, a árvore atingia a altura do meu peito. Não daria para simplesmente saltar. Tive que escalá-la, quase me sentar sobre ela, para depois pular do outro lado. Os musgos que a cobriam me fizeram escorregar e tentar mais de uma vez. Ao alcançar a parte superior, antes de poder saltar, senti o estalo seco e o tombo. A castanheira estava podre, me fazendo despencar dentro do tronco. Bem no meio da árvore, senti queimações pelo corpo. Parecia que eu tocara em algo corrosivo. Mas bastaram segundos para concluir que eram marimbondos, dezenas, centenas, milhares deles, a me envolver e a me picar sem dó nem piedade. Eu despencara no oco da castanheira, justamente onde havia um enxame de marimbondos.
 
Comecei a me debater alucinadamente, tentando de todas as maneiras sair de dentro do oco. Voei dali enlouquecido, aos berros, nas carreiras, enquanto esfregava desesperadamente o corpo, arrancando as centenas de marimbondos que se fixaram sobre mim. Picavam furiosamente as mãos, braços, rosto, couro cabeludo, até por cima da camiseta de algodão. Não parava de correr e retirar os marimbondos do corpo. Sentia toda pele ardendo que nem fogo. Sonhava com um igarapé no qual eu pudesse mergulhar, afogar os marimbondos, me livrar daquele ardor. Mas nada de água, pequena ou grande.
 
Corri centenas de metros, aos tropeços. Caí diversas vezes, me levantava e continuava a correr. Nem sentia dor pelos golpes da queda ou dos arranhões na terra e galhos. A queimação insuportável, me infernizando cada milímetro da pele, da cabeça ao cós da calça, não me deixava pensar em outra coisa que não fosse correr e arrancar os marimbondos do corpo.
 
Algo como um quilômetro depois eu finalmente parei, esgotado, com sede, sem ar ou resistência para prosseguir. Vi apenas ferrões e restos mortais de marimbondos espalhados sobre a pele, a camiseta, o rosto, dentro dos cabelos, na superfície do couro cabeludo. E como tudo queimava! O que mais queria era serrar a parte superior do corpo e me livrar daquele ardor. E me sentia febril, com tonturas, mal parava em pé. Acabei por cambalear e cair novamente no chão úmido da floresta.
 
O técnico de mineração e os peões que me acompanhavam, assim que desandei a correr aos gritos, também saíram em disparada sem saber por que. Acharam que, pelos berros, eu tinha me deparado com uma onça pintada. Passou um tempão até nos juntarmos novamente no local onde eu ruíra no chão. Se aproximaram lentamente, com os olhos arregalados, me fitando como quem observa um desenganado. Eu não falava coisa com coisa, reclamava muito da queimação na pele, não conseguia me firmar em pé. A sede aumentava a sensação de ardor interno.
 
Tomamos o caminho de volta, rumo à estrada, à caminhonete. Os colegas me conduziram à enfermaria do pequeno hospital da segunda vila. A enfermeira me deitou e aplicou soro para combater a febre e a desidratação já em estado avançado. Permaneci hospitalizado por mais de 48 horas.
 
A enfermeira contou mais de cento e cinquenta ferrões de marimbondo na minha pele. Sem contar os que eu arranquei durante a fuga. Eram marimbondos pequenos e avermelhados e, para minha sorte, de veneno fraco. Se fossem as abelhas rajadas que me picavam diariamente nos acampamentos, eu não teria sobrevivido para contar a história.
continua...

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