A FLORESTA
Ao contrário da caatinga, não sentia a mínima dificuldade
de caminhar pela floresta fora das trilhas. Quase não havia espinhos, as folhas
eram largas e macias, não faltava espaço por entre a vegetação. Constantemente
fofo, o solo não oferecia grandes obstáculos rochosos ou pontudos. Raízes
úmidas e escorregadias, buracos tapados por folhas, troncos de árvores caídas,
rios e igarapés para atravessar, a pé ou a nado, o perigo latente de se perder,
no entanto, requeriam maiores atenções.
Também diferente da caatinga, a floresta amazônica, nos
trechos por onde andei, era mais silenciosa. Havia menos cantos de pássaros. Vi
menos cobras, aranhas, escorpiões. Sempre fechada nas copas altas, a mais de
cinquenta metros de altura, o solo da floresta raramente recebia os raios do
sol. Daí eu estar constantemente com a pele branca de tanta sombra e
semiescuridão.
Da mesma maneira, o vento praticamente não penetrava nas
partes baixas da mata. Bem acima de mim, as copas balançavam, mas nada de brisa
embaixo. O calor abafado e sem ventilação provocava transpiração constante. As
roupas facilmente encharcavam de suor. Ao surgirem igarapés, eu não pensava
duas vezes e entrava de roupa e tudo. E parava no meio do canal, me
posicionando com o rosto contra a corrente, nivelando a boca com a superfície
da água, e engolia farta quantidade de água limpa e fresca.
A comida salgada do jantar do acampamento me provocava
sede durante a noite. E era sede de água fresquinha, não aquela morna do cantil
ao alcance da mão. Deixava a rede e, de lanterna, me dirigia ao igarapé a
poucos metros do acampamento. A melhor água corria no meio do canal, afastada
da margem, tendo que molhar os pés e me esticar para alcançá-la. Notei algo
escuro e alongado no fundo das águas. Não se movia e concluí ser um tronco de
madeira arrastado pela correnteza. Como o tal tronco estava bem abaixo do
trecho da água mais fresca, me aproximei tanto que quase o toquei. Ainda bem. O
tal tronco não era tronco e sim um jacaré adormecido. E vivo, muito vivo. O
danado abriu a bocarra, se agitando exageradamente, espirrando água para todos
os lados. Se o jacaré se assustou com a minha proximidade, imagine eu.
Automaticamente saltei para trás, me atrapalhando com a água, desesperado para
sair logo dali, sem falar dos gritos que me saíram involuntariamente. Os peões
acordaram, saltaram das redes e saíram em disparada na minha direção. Ninguém
via nada devido à escuridão da noite. Não sabiam exatamente o que acontecera.
O jacaré não me
fez nenhum mal. Os peões, porém, decidiram abotoar o paletó do pobre réptil.
Choveram pancadas de pau na cabeça do coitado. E me animei com a possibilidade
de o cozinheiro prepará-lo no dia seguinte. Dormi salivando com essa esperança.
Mas me frustrei redondamente quando amanheceu. Me surpreenderam ao afirmarem
que ninguém comia carne de jacaré por aquelas bandas. O cozinheiro nem saberia
por onde começar. Nada de banquete à vista. O jacaré morrera por nada. Inconformado,
ainda o observei antes de jogarem o cadáver em ponto distante do acampamento.
Em outro projeto, um geólogo paraense pisou acidentalmente
numa surucucu. Em legítima defesa, a cobra o picou na batata da perna. A sorte
é que ele vestia calça grossa e larga de brim, prejudicando o acesso de ambas
as presas da cobra. Apenas uma delas o atingiu, inoculando pequena quantidade
do veneno.
Demorou certo tempo para ele chegar ao posto médico da segunda
vila e ser medicado. A transnacional estrangeira contava apenas com soro contra
outros tipos de veneno, e ainda por cima com a data de validade vencida. Os irresponsáveis
nem programaram a aquisição do soro anti-laquésico, aplicável às surucucus,
típicas da região.
O geólogo paraense permaneceu hospitalizado no pequeno
hospital enquanto a ferida cicatrizasse e o veneno inoculado não oferecesse
maiores perigos. Exibindo o ferimento como um troféu, recebeu visitas de vários
de nós para conversar e passar o tempo entre muitas risadas.
Eu me protegia com minhas inseparáveis perneiras de couro
duplo que providenciara em Tatuí, interior de São Paulo. Após o acidente com a
surucucu, encomendei soro antiofídico junto ao Instituto Butantã, também em São
Paulo, porém me disponibilizaram pequena quantidade, e apenas do tipo
polivalente, voltado contra os venenos de jararacas e cascavéis.
Pouco ouvi sobre onças. Os peões descreviam cenas de
antigos funcionários dilacerados, ou de ossos perdidos na floresta de certo
sujeito desaparecido havia meses. Sempre alertavam sobre as cabeceiras de
igarapés, principalmente durante as fases de cio e partos recentes, momentos
nos quais as onças se tornavam pouco amigáveis. Nada vi ou ouvi além de rastros
grandes e recentes nas proximidades dos acampamentos. Certamente elas nos
rondavam. A extensão de mais de vinte centímetros das marcas de cada pata
impunha respeito.
O cozinheiro me contou que uma onça se aproximara da
cozinha do acampamento numa manhã. Notou ao assustá-la com os chiados do rádio
ao mudar de estação. Acontece que o cozinheiro, o tal que adorava berrar
cantorias do fundamentalismo religioso, vivia acompanhado de dois cachorros.
Imediatamente percebi o que atraía as onças. Embarquei os cachorros na primeira
viagem do barqueiro, o mesmo que nos transportava e nos abastecia de insumos.
Nem os jacarés,
inofensivos, encontrados em grupos nas praias fluviais no final da tarde. Nem
as cobras, pouco avistadas nas trilhas ou proximidades do acampamento. Nem as
onças, virtuais ou não. Nem as piranhas, com as quais nadei, lado a lado,
várias vezes, nos igarapés maiores, e que apenas me analisavam ou me tocavam
com a boca fechada, sem jamais me morderem. Nem as raras aranhas ou os
escondidos escorpiões. Nem os espessos e extensos cortejos de incansáveis
formigas, me obrigando a pegar impulso para saltar correndo sem atingi-las.
Nenhum desses bichos, que atacam somente quando se
sentem atacados, chegariam perto das torturas praticadas pelos insetos
voadores. Viviam em nuvens e existiam em praticamente todos os lugares onde
estive, nos acampamentos, nas trilhas, nas imediações das vilas. Não deixavam
ninguém em paz, atazanando sempre e em todo lugar. E de todos os tipos e
tamanhos imagináveis. Havia os que picavam e os que não picavam. E mesmo os que
não picavam, estouravam os limites da paciência. Vinham aos milhares. Pousavam
nos braços, mãos, pernas, rosto. Entravam nos cabelos, mergulhando rumo ao
couro cabeludo. Em determinado acampamento não conseguia comer fora do
mosquiteiro, pois milhares de mosquitos entrariam na boca assim que eu a
abrisse para colocar a comida.
O tempo e a falta de alternativas me ensinaram a
não resistir, a me entregar, a desistir de lutar. Vez ou outra, eu me via
coberto deles pelo corpo todo e, impassível, fingia que não era comigo.
Nunca, porém, peguei malária, seja da falciparum
ou da vivax. Ao contrário dos peões que adoeceram em mais de uma
oportunidade, criando esquema de emergência para transportá-los a um
atendimento mais ou menos decente na vila da empresa. Me protegia preferindo
calças e camisetas de mangas compridas, me recolhendo à rede, dentro do
mosquiteiro, ao amanhecer e ao entardecer.
Sobretudo nos acampamentos recém-montados, as
abelhas, longas e rajadas em preto e branco, infernizavam. Eu era picado duas a
três vezes por dia, nos dedos ou na palma das mãos, ardendo e inchando
imediatamente. Então distribuíamos latas de compotas, cheias do caldo açucarado
restante, em cantos afastados do acampamento. As coitadas faziam fila para
mergulharem e se prenderem no líquido viscoso. No dia seguinte, centenas delas
estavam atoladas e mortas, dentro da calda da lata.
Estava eu numa trilha situada não muito distante da
vila da empresa, permitindo ir e voltar no mesmo dia, sem precisar acampar. Eu
deixara a caminhonete estacionada na margem da estrada larga que seguia em
direção a uma das principais minas ativas da empresa. Eu ia à frente conduzindo
os demais ao ponto para coletar amostras de solo com o trado. Caminhávamos cada
um mantendo boa distância do outro.
Árvore de grande porte, chegando a cinquenta metros
de altura, mas com raízes pouco profundas, a castanheira comumente caía com as
intensas ventanias que se antecipavam às tempestades amazônicas. E foi com uma
dessas imensidões que me deparei, caída e atravessada na trilha. A fim de
evitar contorná-la, preferi pulá-la. Mesmo deitada, a árvore atingia a altura
do meu peito. Não daria para simplesmente saltar. Tive que escalá-la, quase me
sentar sobre ela, para depois pular do outro lado. Os musgos que a cobriam me
fizeram escorregar e tentar mais de uma vez. Ao alcançar a parte superior,
antes de poder saltar, senti o estalo seco e o tombo. A castanheira estava
podre, me fazendo despencar dentro do tronco. Bem no meio da árvore, senti queimações
pelo corpo. Parecia que eu tocara em algo corrosivo. Mas bastaram segundos para
concluir que eram marimbondos, dezenas, centenas, milhares deles, a me envolver
e a me picar sem dó nem piedade. Eu despencara no oco da castanheira, justamente
onde havia um enxame de marimbondos.
Comecei a me debater alucinadamente, tentando de
todas as maneiras sair de dentro do oco. Voei dali enlouquecido, aos berros,
nas carreiras, enquanto esfregava desesperadamente o corpo, arrancando as
centenas de marimbondos que se fixaram sobre mim. Picavam furiosamente as mãos,
braços, rosto, couro cabeludo, até por cima da camiseta de algodão. Não parava
de correr e retirar os marimbondos do corpo. Sentia toda pele ardendo que nem
fogo. Sonhava com um igarapé no qual eu pudesse mergulhar, afogar os
marimbondos, me livrar daquele ardor. Mas nada de água, pequena ou grande.
Corri centenas de metros, aos tropeços. Caí
diversas vezes, me levantava e continuava a correr. Nem sentia dor pelos golpes
da queda ou dos arranhões na terra e galhos. A queimação insuportável, me
infernizando cada milímetro da pele, da cabeça ao cós da calça, não me deixava
pensar em outra coisa que não fosse correr e arrancar os marimbondos do corpo.
Algo como um quilômetro depois eu finalmente parei,
esgotado, com sede, sem ar ou resistência para prosseguir. Vi apenas ferrões e
restos mortais de marimbondos espalhados sobre a pele, a camiseta, o rosto,
dentro dos cabelos, na superfície do couro cabeludo. E como tudo queimava! O
que mais queria era serrar a parte superior do corpo e me livrar daquele ardor.
E me sentia febril, com tonturas, mal parava em pé. Acabei por cambalear e cair
novamente no chão úmido da floresta.
O técnico de mineração e os peões que me
acompanhavam, assim que desandei a correr aos gritos, também saíram em
disparada sem saber por que. Acharam que, pelos berros, eu tinha me deparado
com uma onça pintada. Passou um tempão até nos juntarmos novamente no local
onde eu ruíra no chão. Se aproximaram lentamente, com os olhos arregalados, me
fitando como quem observa um desenganado. Eu não falava coisa com coisa,
reclamava muito da queimação na pele, não conseguia me firmar em pé. A sede
aumentava a sensação de ardor interno.
Tomamos o caminho de volta, rumo à estrada, à
caminhonete. Os colegas me conduziram à enfermaria do pequeno hospital da segunda
vila. A enfermeira me deitou e aplicou soro para combater a febre e a
desidratação já em estado avançado. Permaneci hospitalizado por mais de 48
horas.
A enfermeira contou mais de cento e cinquenta
ferrões de marimbondo na minha pele. Sem contar os que eu arranquei durante a
fuga. Eram marimbondos pequenos e avermelhados e, para minha sorte, de veneno
fraco. Se fossem as abelhas rajadas que me picavam diariamente nos
acampamentos, eu não teria sobrevivido para contar a história.
continua...
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