O GARIMPO
A maioria dos peões que trabalhavam na empresa não tinha maiores
raízes ou compromissos. Normalmente de outros estados, sobretudo Maranhão e
Piauí, possuíam mulheres e filhos a milhares de quilômetros de distância. Agiam
conforme o vento. Na baixa dos rios, muitos costumavam pedir demissão para tentar
a sorte nos garimpos de ouro no rio Madeira. Retornavam a procurar emprego nas
mineradoras assim que o rio começava a encher.
O rio Madeira contava com garimpo mecanizado em função do
ouro se encontrar nos cascalhos do fundo do leito. Postadas sobre as águas, balsas
cobertas abrigavam bombas de sucção, bateias, equipamento completo. Longas
tubulações de borracha eram levadas da balsa até o fundo do rio e, através das
máquinas a diesel, o cascalho era sugado para cima. Um garimpeiro comandava
tudo na superfície enquanto outro permanecia no fundo dirigindo a sucção,
respirando através de um segundo cano que trazia o ar puro de cima.
O garimpeiro de cima concentrava o cascalho na bateia e
fazia análises prévias da qualidade do material coletado. Acontecia de o
garimpeiro de cima encontrar muito ouro na bateia e não desejar dividir com o
sócio de baixo. Ou ambos possuírem mágoas passadas mal resolvidas. Permanecendo
submerso durante horas, o garimpeiro de baixo se encontrava em situação para lá
de frágil, inteiramente nas mãos do sócio da superfície. E eis que esse
indivíduo, o de cima da balsa, decidia resolver as pendências na base do curto
e grosso. Bastava conectar o tudo de entrada de ar do sócio de baixo no
escapamento da bomba de sucção. O garimpeiro submerso inalaria combustível
queimado em vez de ar puro. Antes que pudesse se defender ou subir à superfície,
a fumaça lhe encheria os pulmões e o apagaria em segundos.
Em atividade recheada de casos fatais devido às precárias
condições de trabalho, a versão oficial de mais um “acidente” não surpreenderia
ninguém. E a maioria acreditava. Ou fingia acreditar. Segundo os peões com quem
conversei, tornavam-se frequentes ocorrências desse tipo e nada acontecia. Tudo
se mantinha na mesma. Afinal, era um a menos para dividir o ouro dos fundos do
rio Madeira.
Meu primeiro parceiro de exploração nas trilhas pediu as
contas no meio do ano. “Eu vou garimpar ouro no Madeira e resolver minha vida”,
me comunicou antes de ir embora. Não voltou mais. Segundo ouvi mais tarde, o
tal sócio da superfície da balsa, com quem tinha pendengas abertas, o largou no
fundo das águas. Os corpos, dele e dos demais descartados do garimpo, jamais
foram encontrados.
O GARIMPEIRO
O segundo e mais duradouro parceiro de caminhadas pelas trilhas
me enriqueceu com histórias de vida ainda mais escabrosas que o falecido
primeiro. Branco, baixo, atarracado, com cabelos pretos e lisos, feições
indígenas, o maranhense raramente desfazia a expressão enfezada, exibindo o
cenho constantemente franzido. Sempre calado, só falava se eu tomasse a
iniciativa. Mesmo assim, nos primeiros dias, foi difícil lhe arrancar frases.
Levou tempo para que se soltasse.
Valeu a pena esperar.
Muitos anos antes, ele atuara no garimpo de ouro no alto
rio Tapajós, sudoeste do estado do Pará. Verdadeira terra sem lei, a região
dividia-se em feudos, comandados a ferro e fogo pelos chamados “donos” dos
garimpos. Trabalhando como escravos para o dito cujo, embora oficialmente
livres para irem embora quando quisessem, os garimpeiros eram obrigados a
vender toda a eventual produção de ouro ao tal “dono”, por preços arbitrados
por este, assim como comprar apenas dele os gêneros de primeira necessidade e
ferramentas de trabalho, também por preços impostos ao bel prazer. Os
garimpeiros entravam em dívidas intermináveis, a não ser que, num ato de
ousadia extrema, tentassem fugir sem pagar e, mais importante, de posse do ouro
garimpado.
E foi o que o maranhense fez.
Escolheu o momento conveniente, escondeu o plano o mais
que pode dos companheiros de sofrimento, mais ainda do “dono” do pedaço, e
sumiu da área do garimpo se embrenhando pela floresta. Levara quase nada de
pessoal consigo. O ouro, coletado e bateado às duras penas dos barrancos, ele
enfiara entre as meias e o calçado. Com aquela quantidade, tinha a certeza, lhe
daria folga suficiente para recomeçar a vida em local distante e menos
opressivo. Evitou caminhos conhecidos, deu grande volta para despistar
possíveis perseguidores, antes de desembocar na rodovia BR-163, a famigerada
Cuiabá-Santarém, de onde pegaria transporte que o levaria para bem longe do
inferno do garimpo do alto Tapajós.
Sei lá como, por delação ou pura suspeita prévia do senhor
feudal do garimpo, mas ele foi descoberto. Tocaiaram-no na beira da rodovia
BR-163. Estavam em cinco indivíduos. Começaram a bater imediatamente, sem dó
nem piedade. Arrancaram toda a roupa dele, procuraram o ouro e dinheiro em
todos os lugares possíveis, enquanto não paravam com a agressão nem um minuto
sequer. Mesmo depois de terem recolhido o que pretendiam, prosseguiram o espancamento
com as mãos, pés, pedaços de pau, correntes, cintos. Os tipos carregaram o
corpo, desacordado e todo coberto do próprio sangue, jogando-o numa grota
próxima, certos que apagaria em minutos e apodreceria sem ser descoberto a
tempo.
O colega maranhense, contudo, sobreviveu àquela infinidade
de golpes, hematomas, sangue perdido, fraturas em geral. Não lembro o que ele me
contou, se foi encontrado ou se cambaleou rumo ao lugar que o salvaria da morte
certa. Só sei que tempos depois se recuperou dos ferimentos profundos,
impedindo a morte. Não mais tinha o ouro, as economias guardadas, as roupas que
vestia quando deixara o garimpo. Nem os planos de recomeçar a vida. Ele os
substituíra pela mais simples e pura vingança. Não queria perdoar ninguém, os
cinco que o espancaram, o “dono” do garimpo, os delatores prováveis e
possíveis, mais alguém que pudesse estar envolvido direta ou indiretamente.
Contabilizou dezesseis elementos que de alguma forma eram
responsáveis pela tragédia pela qual passara. Não tinha tempo a perder.
Determinado e munido do que mais precisava para a missão, ele partiu à caça.
Descobriu onde estava cada um deles. Muitos se espalharam por outros estados.
Mas a paciência e a obsessão o ajudaram a encontrá-los.
Ele me contava aquela história de maneira calma e resoluta
enquanto enganávamos o estômago com bolachas e duas latas de “arara”. Relatava
sem grandes emoções e fixava o olhar perdido em algum ponto da floresta. Só me
olhava se eu lhe dirigisse a palavra. E eu não desejava falar nada, apenas
queria ouvir mais. Estávamos sentados na margem de um dos inúmeros igarapés que
cruzávamos pelas trilhas. Não sei se mastiguei o lanche ou mesmo pisquei os
olhos durante aquela fala. Talvez eu até tenha suspendido a respiração. Não
sentia medo por estar sozinho com ele no meio da floresta amazônica, nem
tampouco da inseparável cartucheira que ele encostara junto à árvore. Apenas o
levei bastante a sério e o respeitei ainda mais.
Conforme salientou no relato, ele pouco disse ao se deparar
com cada um daqueles dezesseis homens. Assim que se apresentava e explicava as
razões, simplesmente executava o sujeito sem mais delongas. Confirmada a morte
do inimigo, deixava o recinto e partia para a etapa seguinte. Durante anos, a
vida do colega maranhense se resumiu a isso. Não descansaria enquanto um deles
ainda estivesse vivo. E foi assim, um por um. Cada um deles, morto friamente,
de maneira deliberada, planejada, calculada.
Até aquele ano, declarou que já se vingara de quinze dos
dezesseis procurados. Perguntei por perguntar, mais por tique nervoso, se
aqueles quinze estavam mesmo mortos. Apenas assentiu com a cabeça, antes de
elevar a voz e garantir, mais para si mesmo, que ainda faltava UM. E que esse UM
não ia escapar não. Balançava o braço esquerdo com o dedo apontado para o nada
e repetia que o último desgraçado não ia escapar não.
Não sei se pelo jeito natural de me relacionar com os
funcionários ou se pelo jeito submisso de ele me obedecer, mas jamais me senti
ameaçado. Ao contrário, ele sempre se mostrou educado e prestativo. Jamais
alguém poderia imaginar que aquela pessoa de comportamento tão inofensivo
guardasse dentro de si história de vida tão trágica.
continua...
Cruel e maravilhosa denúncia sobre nossos confins que não aparecem na mídia podre e monopolista. Parabéns pelo blog e pela visão crítica. Lei da mídia democrática já!
ResponderExcluirObrigado pelo comentário.
ResponderExcluirE isso que tentei descrever é apenas uma minúscula parte dos sofrimentos dos marginalizados deste Brasil.
Bem observado, essas notícias não são notícias para a mídia empresarial.
Precisamos urgentemente do marco regulatório dos meios de comunicação, assim como já existe em diversos países da América e Europa.
Valeu!