sexta-feira, 22 de março de 2013

Um Ano em Rondônia (parte 4/5)

...continuação
O GARIMPO

A maioria dos peões que trabalhavam na empresa não tinha maiores raízes ou compromissos. Normalmente de outros estados, sobretudo Maranhão e Piauí, possuíam mulheres e filhos a milhares de quilômetros de distância. Agiam conforme o vento. Na baixa dos rios, muitos costumavam pedir demissão para tentar a sorte nos garimpos de ouro no rio Madeira. Retornavam a procurar emprego nas mineradoras assim que o rio começava a encher.

O rio Madeira contava com garimpo mecanizado em função do ouro se encontrar nos cascalhos do fundo do leito. Postadas sobre as águas, balsas cobertas abrigavam bombas de sucção, bateias, equipamento completo. Longas tubulações de borracha eram levadas da balsa até o fundo do rio e, através das máquinas a diesel, o cascalho era sugado para cima. Um garimpeiro comandava tudo na superfície enquanto outro permanecia no fundo dirigindo a sucção, respirando através de um segundo cano que trazia o ar puro de cima.

O garimpeiro de cima concentrava o cascalho na bateia e fazia análises prévias da qualidade do material coletado. Acontecia de o garimpeiro de cima encontrar muito ouro na bateia e não desejar dividir com o sócio de baixo. Ou ambos possuírem mágoas passadas mal resolvidas. Permanecendo submerso durante horas, o garimpeiro de baixo se encontrava em situação para lá de frágil, inteiramente nas mãos do sócio da superfície. E eis que esse indivíduo, o de cima da balsa, decidia resolver as pendências na base do curto e grosso. Bastava conectar o tudo de entrada de ar do sócio de baixo no escapamento da bomba de sucção. O garimpeiro submerso inalaria combustível queimado em vez de ar puro. Antes que pudesse se defender ou subir à superfície, a fumaça lhe encheria os pulmões e o apagaria em segundos.

Em atividade recheada de casos fatais devido às precárias condições de trabalho, a versão oficial de mais um “acidente” não surpreenderia ninguém. E a maioria acreditava. Ou fingia acreditar. Segundo os peões com quem conversei, tornavam-se frequentes ocorrências desse tipo e nada acontecia. Tudo se mantinha na mesma. Afinal, era um a menos para dividir o ouro dos fundos do rio Madeira.

Meu primeiro parceiro de exploração nas trilhas pediu as contas no meio do ano. “Eu vou garimpar ouro no Madeira e resolver minha vida”, me comunicou antes de ir embora. Não voltou mais. Segundo ouvi mais tarde, o tal sócio da superfície da balsa, com quem tinha pendengas abertas, o largou no fundo das águas. Os corpos, dele e dos demais descartados do garimpo, jamais foram encontrados.

 
O GARIMPEIRO

O segundo e mais duradouro parceiro de caminhadas pelas trilhas me enriqueceu com histórias de vida ainda mais escabrosas que o falecido primeiro. Branco, baixo, atarracado, com cabelos pretos e lisos, feições indígenas, o maranhense raramente desfazia a expressão enfezada, exibindo o cenho constantemente franzido. Sempre calado, só falava se eu tomasse a iniciativa. Mesmo assim, nos primeiros dias, foi difícil lhe arrancar frases. Levou tempo para que se soltasse.

Valeu a pena esperar.

Muitos anos antes, ele atuara no garimpo de ouro no alto rio Tapajós, sudoeste do estado do Pará. Verdadeira terra sem lei, a região dividia-se em feudos, comandados a ferro e fogo pelos chamados “donos” dos garimpos. Trabalhando como escravos para o dito cujo, embora oficialmente livres para irem embora quando quisessem, os garimpeiros eram obrigados a vender toda a eventual produção de ouro ao tal “dono”, por preços arbitrados por este, assim como comprar apenas dele os gêneros de primeira necessidade e ferramentas de trabalho, também por preços impostos ao bel prazer. Os garimpeiros entravam em dívidas intermináveis, a não ser que, num ato de ousadia extrema, tentassem fugir sem pagar e, mais importante, de posse do ouro garimpado.

E foi o que o maranhense fez.

Escolheu o momento conveniente, escondeu o plano o mais que pode dos companheiros de sofrimento, mais ainda do “dono” do pedaço, e sumiu da área do garimpo se embrenhando pela floresta. Levara quase nada de pessoal consigo. O ouro, coletado e bateado às duras penas dos barrancos, ele enfiara entre as meias e o calçado. Com aquela quantidade, tinha a certeza, lhe daria folga suficiente para recomeçar a vida em local distante e menos opressivo. Evitou caminhos conhecidos, deu grande volta para despistar possíveis perseguidores, antes de desembocar na rodovia BR-163, a famigerada Cuiabá-Santarém, de onde pegaria transporte que o levaria para bem longe do inferno do garimpo do alto Tapajós.

Sei lá como, por delação ou pura suspeita prévia do senhor feudal do garimpo, mas ele foi descoberto. Tocaiaram-no na beira da rodovia BR-163. Estavam em cinco indivíduos. Começaram a bater imediatamente, sem dó nem piedade. Arrancaram toda a roupa dele, procuraram o ouro e dinheiro em todos os lugares possíveis, enquanto não paravam com a agressão nem um minuto sequer. Mesmo depois de terem recolhido o que pretendiam, prosseguiram o espancamento com as mãos, pés, pedaços de pau, correntes, cintos. Os tipos carregaram o corpo, desacordado e todo coberto do próprio sangue, jogando-o numa grota próxima, certos que apagaria em minutos e apodreceria sem ser descoberto a tempo.

O colega maranhense, contudo, sobreviveu àquela infinidade de golpes, hematomas, sangue perdido, fraturas em geral. Não lembro o que ele me contou, se foi encontrado ou se cambaleou rumo ao lugar que o salvaria da morte certa. Só sei que tempos depois se recuperou dos ferimentos profundos, impedindo a morte. Não mais tinha o ouro, as economias guardadas, as roupas que vestia quando deixara o garimpo. Nem os planos de recomeçar a vida. Ele os substituíra pela mais simples e pura vingança. Não queria perdoar ninguém, os cinco que o espancaram, o “dono” do garimpo, os delatores prováveis e possíveis, mais alguém que pudesse estar envolvido direta ou indiretamente.

Contabilizou dezesseis elementos que de alguma forma eram responsáveis pela tragédia pela qual passara. Não tinha tempo a perder. Determinado e munido do que mais precisava para a missão, ele partiu à caça. Descobriu onde estava cada um deles. Muitos se espalharam por outros estados. Mas a paciência e a obsessão o ajudaram a encontrá-los.

Ele me contava aquela história de maneira calma e resoluta enquanto enganávamos o estômago com bolachas e duas latas de “arara”. Relatava sem grandes emoções e fixava o olhar perdido em algum ponto da floresta. Só me olhava se eu lhe dirigisse a palavra. E eu não desejava falar nada, apenas queria ouvir mais. Estávamos sentados na margem de um dos inúmeros igarapés que cruzávamos pelas trilhas. Não sei se mastiguei o lanche ou mesmo pisquei os olhos durante aquela fala. Talvez eu até tenha suspendido a respiração. Não sentia medo por estar sozinho com ele no meio da floresta amazônica, nem tampouco da inseparável cartucheira que ele encostara junto à árvore. Apenas o levei bastante a sério e o respeitei ainda mais.

Conforme salientou no relato, ele pouco disse ao se deparar com cada um daqueles dezesseis homens. Assim que se apresentava e explicava as razões, simplesmente executava o sujeito sem mais delongas. Confirmada a morte do inimigo, deixava o recinto e partia para a etapa seguinte. Durante anos, a vida do colega maranhense se resumiu a isso. Não descansaria enquanto um deles ainda estivesse vivo. E foi assim, um por um. Cada um deles, morto friamente, de maneira deliberada, planejada, calculada.

Até aquele ano, declarou que já se vingara de quinze dos dezesseis procurados. Perguntei por perguntar, mais por tique nervoso, se aqueles quinze estavam mesmo mortos. Apenas assentiu com a cabeça, antes de elevar a voz e garantir, mais para si mesmo, que ainda faltava UM. E que esse UM não ia escapar não. Balançava o braço esquerdo com o dedo apontado para o nada e repetia que o último desgraçado não ia escapar não.

Não sei se pelo jeito natural de me relacionar com os funcionários ou se pelo jeito submisso de ele me obedecer, mas jamais me senti ameaçado. Ao contrário, ele sempre se mostrou educado e prestativo. Jamais alguém poderia imaginar que aquela pessoa de comportamento tão inofensivo guardasse dentro de si história de vida tão trágica.
continua...

2 comentários:

  1. Cruel e maravilhosa denúncia sobre nossos confins que não aparecem na mídia podre e monopolista. Parabéns pelo blog e pela visão crítica. Lei da mídia democrática já!

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  2. Obrigado pelo comentário.
    E isso que tentei descrever é apenas uma minúscula parte dos sofrimentos dos marginalizados deste Brasil.
    Bem observado, essas notícias não são notícias para a mídia empresarial.
    Precisamos urgentemente do marco regulatório dos meios de comunicação, assim como já existe em diversos países da América e Europa.
    Valeu!

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