OS TRABALHOS
DE CAMPO
As atividades de campo eram verdadeiras expedições
no sentido estrito da palavra. Como líder do projeto, eu deveria pensar em
tudo, da alimentação a equipamentos de coletas de amostras, dos meios de
transportes, combustível e peças de reposição da caminhonete e barcos a
medicamentos, dos pontos de acampamento móvel ou fixo a controle de pessoal via
folhas de ponto, avaliação do andamento e qualidade dos trabalhos. Sem esquecer
a prospecção mineral, como o objetivo central das explorações na floresta
amazônica.
Os locais de pesquisa variavam de áreas próximas, aonde eu
conseguia ir e voltar ao alojamento no mesmo dia, a, mais comumente, destinos
afastados, para os quais exigiam logística complexa. Muitas vezes o acesso
incluía caminhonete até a beira de um igarapé, barco com motor de popa por
horas rio abaixo ou acima, caminhada por quilômetros pela selva até o centro
base do projeto a ser limpo e aberto.
Meus colegas geólogos chegaram a liderar atividades em
áreas ainda mais distantes. Um deles me convidou a sobrevoar a área onde seria
desenvolvido novo projeto. A ideia era investigar a topografia, a hidrografia e
levantar possíveis pontos de acampamento. Seguimos de avião bimotor eu, ele, o
piloto e outro colega. A ventilação natural vinha com o abrir das janelas
laterais. A aeronave possuía asas abaixo das janelas, prejudicando a
visibilidade do terreno de quem sentava no banco de trás, como eu. Os dois da
frente comentavam o que se passava lá embaixo e eu nada via. Ao saber do meu
problema, o piloto não teve dúvidas. Inclinou bruscamente o avião noventa graus
para a direita a fim de liberar minha visão e depois, mais bruscamente ainda,
para a esquerda, também facilitando para o outro colega. E perguntava aos
berros: “viram agora?”. Nos segurávamos para não despencarmos pela janela. E o
piloto se acabava de rir. A visão da floresta daquela baixa altitude
impressionava pela riqueza dos detalhes.
Os técnicos de mineração desempenhavam a função de
coordenar a topografia, a exatidão da coleta das amostras de solo segundo a
malha pré-determinada, acondicioná-las, etiquetá-las e recolhê-las depois de
concentradas na bateia. Utilizávamos o trado manual, espécie de enorme
saca-rolha, para a coleta de amostras de solo a um metro de profundidade.
Contrariando a lógica de coletar amostras dos sedimentos de corrente, a empresa
transnacional, via o gerente incompetente, nos obrigava ao vexame daquela metodologia
ineficaz para minerais pesados. Até os peões, capatazes e técnicos de mineração,
sabiam de cor e salteado que, continuando assim, jamais concluiríamos
nada.
Saíamos para trabalhar bem cedo, quando o sol mal
penetrava pelas árvores. Os peões, os capatazes, os técnicos de mineração se
dirigiam rumo à abertura e demarcação topográfica de picadas, à coleta de
amostras através do trado. Acompanhado de outro peão, armado de cartucheira para
eventuais surpresas ou para caçar o jantar, eu seguia pelas picadas demarcadas,
mapeava o terreno, coletava amostras significativas. Levávamos apenas bolachas
e enlatados de conserva, as chamadas “araras”, para comer. Bebíamos água
diretamente dos igarapés límpidos e retornávamos ao acampamento antes das 16h.
Frequentemente a picada cruzava igarapés ou rios que não
davam pé. Meu parceiro improvisava pinguelas com o terçado a fim de não
molharmos as roupas, demais materiais ou mesmo evitar eventuais surpresas com
piranhas ou sucuris. Ou então entrávamos de roupa e tudo, atravessando com água
no pescoço ou nadando quando não alcançávamos o fundo. O mais difícil era
preservar a bússola e a caderneta de campo.
Pior situação, encontrávamos diante de lagoas e
alagadiços, dos quais não conseguíamos enxergar o contorno e a profundidade.
Normalmente de águas pretas, de fundo lodoso e entupido de galhos secos, com
folhas flutuantes, esses obstáculos nos obrigavam a caminhar atolados até o
peito de água e lama, lentamente, desviando de árvores maiores, atentos a
alterações do fundo, empurrando sólidos com a barriga e pernas, sem a mínima ideia
de onde púnhamos o pé, apreensivos pela indesejada aparição de sucuris. O
parceiro apimentava o clima de suspense, contando estórias tenebrosas sobre
ataques do doce ofídio em áreas alagadas como aquela. Eu disfarçava o pavor,
tentando pensar em outras coisas, acelerando o passo através da viscosidade.
Mas essas travessias duravam horas. Ao retornarmos à terra firme, arrancávamos
as botas e as meias, expondo os pés a qualquer nesga de sol. A pele ficava
esbranquiçada e rachada pelo excesso de umidade. Eu recolhia os detritos
acumulados dentro das roupas, meias, botas, enquanto me sentia aliviado de,
pelo menos daquela vez, tudo ter corrido sem sustos maiores.
Durante as chuvas torrenciais, eu tinha que
fazer acrobacias para anotar as observações na caderneta de campo sem molhá-la.
Às vezes o companheiro de trilhas improvisava uma cobertura com folhas para que
eu pudesse escrever. De nada valiam as capas impermeáveis. O calor abafado
impedia que vestíssemos mais roupa. Caminhávamos debaixo do aguaceiro e nada do
corpo e das roupas, absolutamente nada, ficava seco, exceto a caderneta de
campo. As chuvas nos encharcavam, e encharcados ficávamos até o retorno ao
acampamento, a menos que nos deparássemos com uma clareira ensolarada, raridade
em meio à densa floresta.
Os peões, capatazes, e até os técnicos de mineração,
insistiam em me tratar por “doutor” e “senhor”. Eu explicava que não era
médico, nem tampouco senhor de idade. A maioria era mais velha do que eu.
Poderiam me chamar pelo nome e me tratar por “você”. Nem sempre eu os convencia
na primeira tentativa, mas não os deixava em paz até acabar com aquele
anacronismo.
Não faltavam casos de abusos trabalhistas contra os peões
que se matavam de trabalhar na selva. A empresa estrangeira orientava os chefes
a marcarem nas folhas de ponto dos peões menos horas do que as efetivamente
trabalhadas no campo. A injustiça e a humilhação vinham acompanhadas de ameaças
de demissão por justa causa e de sujar a carteira de trabalho dos que não
concordassem, impedindo-os de conseguirem emprego nas redondezas.
Segundo eles, a transnacional estrangeira cometia aquele
crime com frequência. Eu jamais admitiria tal absurdo. Orientei todos a marcar,
a partir daquele momento, as horas efetivamente trabalhadas nas folhas de
ponto.
Mesmo assim, algo ainda me incomodava. E as horas
trabalhadas e não pagas nos projetos anteriores? A transnacional embolsaria
aquele roubo sem mais nem menos? Os gringos aumentariam os lucros impunemente à
custa de mais miséria dos trabalhadores braçais? Chamei o capataz mais
confiável, depois os demais. Pedi sigilo absoluto, sob o risco de sobrar feio
para todos. Até então, a transnacional estrangeira impunha trabalho de 12 horas
por dia, mas marcação de apenas 10 horas nas folhas de ponto. Eu simplesmente
orientei que invertessem a situação. Que trabalhassem 8 horas por dia e
marcassem 10 horas. Assim o mesmo total de sempre de horas a serem pagas não
chamaria atenção do patrão. Os capatazes se animaram com a minha proposta,
repassaram-na aos peões, com a recomendação de boca de siri.
A novidade passou a valer na manhã seguinte. O ambiente no
acampamento ficou mais alegre.
Em projeto envolvendo cerca de cem funcionários,
contávamos com trator abridor de estradas. O projeto prometia ser de longa
duração acarretando isolamento dos peões da vida social. Propuseram que
aproveitássemos o trator para abrir uma clareira na mata do tamanho de meio
campo de futebol, perto do acampamento, para os peões se divertirem. Passei a
ordem ao tratorista. Providenciei a bola de futebol, as traves foram erguidas e
já tínhamos atividades aos finais de tarde.
Implementei outras medidas para tentar humanizar os projetos. As caças e pescas pelos peões mais aptos empolgavam nossos
jantares de fim de tarde. Diante de qualquer problema de saúde, impossível de
resolver no acampamento, eu convocava o barqueiro a levar o paciente a
atendimento médico na vila da empresa. Suspendia os trabalhos tão logo chovesse
demais e as picadas alagassem.
Os atrasos no andamento do projeto, mais que justificados
em inúmeros relatórios, irritavam o gerente geral, aquele do QI de ameba. De
nada adiantava eu explicar pelo rádio, eu ali no meio do mato, ele lá na
inseparável sala com ar condicionado na vila principal. Eu respondia seriamente
ao mala-sem-alça enquanto fazia caretas ao microfone para delírio dos peões em volta.
Às vezes, doido para chutar o pau da barraca, levantava a voz e insinuava que
ele, o gerente incompetente, desconhecia as condições de trabalho, as
características da floresta, os imprevistos físicos e humanos. Ou então,
impaciente de ouvir tanta besteira, simulava qualquer defeito no rádio,
cortando sumariamente a comunicação.
UM BAITA SUSTO
Apesar da relativa tranquilidade de caminhar nas trilhas
da região, eu andava demais e gastava bastante energia. Chegava a percorrer vinte
quilômetros ou mais em cada dia, no fim dos quais as pernas bambeavam e todo o
corpo pedia por repouso.
Num dado final de tarde, fiz a besteira de ignorar o
esgotamento físico e quase mudei para o andar de cima. Tinha marcado com o
barqueiro de me encontrar na margem do rio. Naquele dia eu devo ter caminhado
quase trinta quilômetros, sem contar os obstáculos que saltei, atolei, desviei,
agachei, aumentando, e muito, o desgaste. Atingimos a margem bem antes do
horário marcado, cansados, famintos, impacientes de esperar o barqueiro. Achei
melhor atravessar o rio a nado mesmo. O parceiro topou e lá fomos nós.
Embalei os apetrechos mais sensíveis em saco
plástico e, de roupa, botas e tudo, entrei na água. O início da travessia, em
águas calmas e próximas à margem, não ofereceu resistência e as braçadas me
fizeram avançar alguns metros, ainda que lentamente. Foi assim até atingir o
canal do rio. A partir dali a história foi outra. A correnteza me desviava
violentamente. A velocidade das águas, tanto na superfície como abaixo, entontecia
e desequilibrava, me impedindo de progredir. O corpo e as roupas pesavam cada
vez mais. As pernas, fatigadas de tanto andar na floresta, não obedeciam. Os
braços mais se debatiam que propriamente praticavam movimentos sincronizados. Comecei
a ser levado pela correnteza, a afundar. E o pânico impediu de o cérebro
funcionar corretamente. Balançava desesperadamente os braços.
Afundei várias vezes. Engoli muita água. Vi trechos
do filme contendo pessoas e fatos mais marcantes da minha vida. Parte de mim
queria se entregar, outra teimava em resistir. Entre movimentos histéricos,
avistei meu parceiro, já seguro na margem desejada. Ele me fazia sinais
atrapalhados, tentando me orientar. Mas eu não entendia nada.
À medida que descia a correnteza, me aproximei de galhos
pensos vindo de árvores da margem, observação que me desanuviou a mente. Me preocupei
apenas em manter a flutuação, sem gastar energias. Esperei um galho mais firme
e conveniente, me esticando o mais que pude, e o agarrei. Pronto. Já não
afundava ou era arrastado pela correnteza. Me acalmei, ou quase. Não alcançaria
a outra margem através daquele galho. Não tinha outra opção a não ser esperar
pelo barqueiro. Permaneci pendurado no galho envergado, com o corpo
parcialmente submerso no rio. Meu parceiro, também esgotado, me observava com o
olhar esbugalhado. E o barqueiro chegou, não sei quanto tempo depois, me resgatando
para a margem tão sonhada.
Não sei quem estava mais assustado. Se eu, que
quase partira desta para uma melhor, o barqueiro ou o parceiro de caminhada,
ambos mudos e estupefatos. Minha visão ainda se mantinha turva, pois meus
óculos tinham afundado nas águas do rio. Algum peixe deveria estar nadando de
óculos. Até voltar à vila da empresa, onde guardava óculos reservas, sofri um
bocado tentando contornar a miopia.
Por pouco, muito pouco mesmo, eu não estaria aqui
para contar a história. E por absoluta falta de bom senso. O mais simples e
óbvio bom senso.
continua...
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