terça-feira, 26 de março de 2013

Um Ano em Rondônia (parte 5/5)

...continuação
O TEMPO LIVRE

Nem só de trabalho se vivia por aquelas bandas de Rondônia. Na vila da empresa, cumpríamos o horário comercial, mas as opções de lazer eram mínimas. Mesmo no setor dos funcionários de nível superior das duas vilas artificiais da empresa.
Jogávamos vôlei ou futebol nas quadras de areia, aproveitávamos as piscinas, frequentávamos o clube social, comparecíamos aos monótonos e repetitivos churrascos, invariavelmente com os mesmos rostos de sempre, conversando os mesmos assuntos de sempre, bebendo bastante como sempre. O assanhamento brotava quando alguém de fora, parente ou não, aparecia para oxigenar o ambiente, sobretudo se mulher disponível e um pouquinho atraente. Sim, pois, naquela colônia penal, o nível de exigências caía com o passar do tempo.

Quando juntavam vários geólogos, bebíamos todas e mais um pouco, enquanto debatíamos as origens da cassiterita e as mais apropriadas técnicas de prospecção mineral. O álcool e o assunto nos enlevavam. Discutíamos de maneira tão exaltada que assustávamos os das mesas vizinhas. Ou então jogávamos sinuca, tênis de mesa, víamos filmes pelo videocassete, então uma novidade, sobretudo no interior de Rondônia.

Num dado dia livre eu e mais três colegas decidimos sumir das vilas artificiais. Subimos na caminhonete e pegamos a estrada de saída rumo a BR-364. Não havia grandes opções. Ou parávamos nos bares de beira de estrada para encher a cara de bebida ruim na companhia de putas feias, sujas e banguelas ou seguíamos até a cidade de Ariquemes, algumas horas dali por estradas de terra. Por exclusão escolhemos a segunda opção.

Embora sede de município, nada se podia esperar de Ariquemes além de miséria, poeira, construções de madeira, aspecto de terra sem lei, olhares e comportamentos suspeitos. Os cinco anos de emancipação não foram suficientes para lhe dar aparência de cidade. O local estava mais para clareira na floresta, parca e desordenadamente ocupada. Mas, surpreendentemente, foi lá que pela primeira vez comi em restaurante de comida japonesa.

Assessorado pelo técnico de mineração paraense, um nissei, resolvemos enfrentar a parada em instalações precárias e pouco confiáveis, de madeira obviamente. Porém a comida compensou. Enchemos a barriga de variedades em grande quantidade e de boa qualidade.

Saímos à tarde do restaurante meio sem rumo. Decidimos dar a última volta pelo emaranhado de ruas empoeiradas de Ariquemes. Eu estava no volante e na ruazinha esburacada, caminhando pelo rascunho de calçada, uma morena, cabelos pretos e longos, roupas compatíveis com o calor que massacrava. Fui notado por olhares insinuantes. Sinalizei que queria algo mais concreto. Não senti recusas. Larguei meus colegas no primeiro bar que apareceu e voltei para resgatá-la do sol forte.

Subiu na cabine e nos refugiamos nos arredores da cidadezinha, em local sem alma humana por perto. Não houve tempo para preâmbulos e apresentações. Usamos e abusamos na cabine e na carroceria, mesmo debaixo daquele sol de rachar mamona. E nos lambuzamos até dizer chega.

Apesar da facilidade e falta de resistência, não me pareceu puta, não no sentido profissional da palavra. Pau para toda obra na região provavelmente, mas não puta. Não me pediu nada em troca e nem lhe oferecia nada.

Só sei que o fato rendeu histórias nas duas vilas da empresa por muito tempo. Meus colegas de aventuras jamais iriam deixar por menos. Ainda mais que os odores característicos, decorrentes dos acasalamentos na caminhonete, marcaram toda a viagem de volta.


ELAS

Muitas mulheres moravam na segunda vila artificial. Além das esposas e filhas dos funcionários, de quem mantínhamos a distância regulamentar, havia as que também trabalhavam na empresa. Eram professoras, médicas, enfermeiras, trabalhadoras de escritório. Paranaenses, paraenses e maranhenses compunham a maioria das professoras, a função em maior número por ali. Como todo o respeito a elas e, principalmente, ao estado de perigo que a maioria dos homens vivia, se juntássemos todas não montaríamos uma sequer. Conservadoras, carolas, reprimidas, restritas intelectualmente, as colegas em nada amenizavam a dramática a situação dos solteiros. E, paradoxalmente, loucas para casar.

Ocorria que, acidentalmente, permanecesse apenas uma delas na sala de jogos do clube entre um ou mais homens. Assim que a dita cuja se apercebia, se levantava subitamente, se apressando no caminho da porta. À minha pergunta do motivo daquele pânico, respondeu: “uma mulher não pode ficar sozinha com outro homem”. Eu não sabia se ria ou chorava. Não entendíamos como uma mulher de vinte e poucos anos, saída do interior e disposta a ensinar em escola no meio da floresta amazônica, a milhares de quilômetros de casa, obcecada por casamento, pudesse se comportar de maneira tão medieval. Ao não ficarem sozinhas entre homens, porém, gostavam de se aproximar e conversar assuntos insípidos e sonolentos.

O consumo contínuo e excessivo de álcool, o afastamento da vida urbana, a solidão, a carência afetiva, entre outros problemas, atingiam de maneira intensa e diversa cada um dali. O engenheiro civil, carioca, além de beber bastante, vivia com frequentes dores no estômago e no intestino. Uma das professoras, maranhense, oportunista, confortava-o nas horas mais delicadas. Em pouco tempo começaram a namorar. Ela não largava do pé dele, envolvendo-o nas próprias teias. Em pouco tempo, o coitado já não respirava sem a autorização dela. Todos percebiam que o que os unia era a profunda carência decorrente do confinamento forçado naquela vila da transnacional. Logo surgiram alianças nas mãos direitas do casal. E começaram a planejar casamento.

Notei a arrumadeira dos quartos. Baixinha, substanciosa, morena, olhar perigoso. Em condições normais de temperatura e pressão, provavelmente não a consideraria. A situação, porém, estava grave. Insinuei minhas intenções. Ela não disse nem sim nem não. Peguei-a no final do expediente e fomos a uma estradinha local, estreita, com movimento zero, ainda mais ao anoitecer. Deixamos as burocracias de lado e partimos direto ao ponto. Saímos outras vezes. Optávamos ora pela cabine da caminhonete ora pela carroceria, mais ventilada e espaçosa.

E havia a famosa enfermeira do ambulatório. Magra, alta, tipo indígena, rosto gasto e sem beleza, jeito para lá de oferecido, corria fama entre os funcionários. Pelos indícios, jamais negara carinhos a quem solicitasse. Nunca descobri o motivo do número 2000 após o nome dela. Muitos garantiam que derivava da quantidade de clientes atendidos intimamente.

Num final de projeto, enquanto elaborávamos relatórios, cresceu a demanda por desenhistas para a confecção de mapas e perfis. A equipe fixa da vila principal não dava conta do recado e a empresa recrutou mais recursos na sede do Rio de Janeiro.

Entre os desenhistas estava uma balzaquiana, de estatura média, corpo suculento, sorriso sempre presente, charme à flor da pele. Não sei se pelo isolamento na colônia penal ou pela carência incurável da idade, mas logo começamos a babar pela desenhista. Dizia ser separada, com filhos, independente e mostrava olhares para lá de insinuantes. Virou o assunto e o desejo da maioria dos solteiros. E talvez dos casados também.

Minhas visitas ao departamento de desenhos aumentaram e algo sinalizava que ela tinha ido com minha cara. Sorrisos, olhares, movimentos de corpo, balançar dos cabelos volumosos me deixavam ainda mais empolgado. Devia dar o bote antes que alguém o fizesse.

Num sábado à noite, a empresa organizou a festa do Havaí. Ninguém podia perder e lá estava eu no clube da vila principal. E a desenhista também. Trocamos olhares e logo tratei de marcar presença e terreno. A atração transbordava pelos poros de ambos.

Em pouco tempo nos agarrávamos no canto do salão. A festa ficou pequena e muitos eram os olhares curiosos. Levei a donzela à minha suíte na segunda vila, quase uma hora por estrada de chão, ainda mais à noite e com umas na cabeça.

A empresa não permitia que funcionários solteiros do sexo oposto dormissem ou permanecerem no mesmo quarto sob quaisquer circunstâncias. Ainda mais naquelas condições de pura excitação e terceiras intenções. Mandei às favas o regulamento hipócrita dos estrangeiros. E a noite foi curta. Antes do café da manhã do domingo, ela saiu e tentamos disfarçar o indisfarçável. Ainda ficamos juntos em outras noites.

Mas tive que ficar fora por duas semanas, no acampamento do projeto de campo. Quando voltei, a carioca já havia retornado ao Rio de Janeiro. Fizeram fila para se aninhar com ela. Poucos os que não conseguiram. A desenhista serviu a quase todos. Na verdade, não se sabe quem serviu a quem. Ambos os lados aproveitaram e se deliciaram.

Certa noite, alguns amigos do gerente administrativo estavam em visita pela segunda vila. Entre eles, uma falsa loira, trintona, atraente, simpática, comunicativa. Era candidata à vereadora em Ariquemes pelo partido oficial da ditadura. Apesar de casada, não trouxera o marido a tiracolo e parecia disposta a agradar os eleitores da melhor maneira. Trocamos olhares e começamos a conversar animadamente. Ambos se interessaram pelos temas políticos, mas logo percebi que deveria evitá-los. A nobre candidata recitava lemas fascistas sobre o Brasil e os brasileiros, sobretudo no que se refere à situação do campo, na qual demonstrava ser herdeira de teses escravistas. Além de minhas opiniões se situarem a cento e oitenta graus daquilo, me atraí mais por outras posições dela, que não as políticas. Em meio ao discurso para lá de reacionário, a aspirante à política exalava charme enquanto abria os lábios, movimentava o corpo, mexia nos cabelos, me lançava olhares cheios de segundas intenções. Até rolou clima para, quem sabe, mais tarde, esquentar a noite em local mais discreto.

Não me permiti, porém, tirar os pés do chão, temendo aonde me meteria. Como latifundiária, ligada à pior corja de invasores de terras, grileiros, pistoleiros, policiais e juízes corruptos, criminosos em geral, aquelas atitudes fascistas não se restringiam ao discurso eleitoral. A beldade à minha frente pertencia literalmente à classe que usava e abusava da violência para manter e ampliar o poderio econômico. Quanto mais ela se abria, mais me conscientizava que, caso prosseguisse, me enroscaria em teias podres, das quais não sairia ileso. Decidi recuar, esfriar a quentura, inventar qualquer desculpa e pular fora. Ela nem percebeu, ou fingiu não perceber.

Claro que depois me bateu arrependimento ou, no mínimo, dúvidas. Ainda mais vivendo naquela estiagem crônica de mulheres. Porém, como um amigo costumava afirmar: “Nessas horas, é melhor não”. Foi uma pena, mas saí vivo e sem escoriações.


O FINAL

Ainda não completara um ano de atuação nos projetos de prospecção mineral da transnacional em Rondônia e a chapa já esquentara. O péssimo relacionamento com o gerente ameba, o isolamento social, a vida vazia e sem perspectivas, que não fossem me alcoolizar e me amarrar àquelas mulheres pavorosas, tornaram minha permanência insustentável.

Troquei ideias com outro geólogo também descontente e não vimos luz no fim do túnel. De qualquer maneira, decidimos tentar a última cartada. Frente às incontáveis barbaridades cometidas pelo gerente, unanimemente repudiadas, dos peões aos geólogos, escrevemos longa carta ao diretor de mineração da empresa, então lotado no Rio de Janeiro. Expusemos detalhadamente, item por item, cada ato de incompetência técnica e administrativa cometida pelo sujeito, seguidas das providenciais propostas de solução. Escolhemos uma noite tranquila para datilografá-las nas máquinas de escrever do escritório da vila principal. Não esquecemos o papel-carbono a fim de ficarmos com a cópia fiel dos textos. Lemos e relemos dezenas de vezes. Ponderamos isso e aquilo. Além dos riscos que corríamos com a contundência das afirmações, não queríamos passar por levianos ou mentirosos. Tudo que escrevíamos ali deveria ser passível de imediata comprovação. Enviamos finalmente ambas as denúncias no primeiro malote. E só aguardando o estouro.

E a reação veio em poucos dias. Fui sumariamente demitido sem maiores explicações. Meu colega ainda teve semanas para respirar antes da bordoada. Em ambos os casos, a transnacional nem sequer expôs os motivos ou comentários a respeito do conteúdo das denuncias que escrevêramos. Jamais tive notícias do tal diretor. Não nos surpreendeu o fato do gerente ameba estar muito solidamente atado à cúpula estrangeira. Sabíamos que não teríamos força. As cartas serviram mais para desabafar e tirar o peso da consciência. Ninguém poderia nos acusar de indiferença ou ausência de iniciativa diante do caos pelo qual passavam os projetos e da insatisfação da maioria dos funcionários.

Me despedi de todos. A maioria me elogiou pela ousadia. Outros enfiaram a cabeça no buraco e me evitaram, temendo se contagiar pelo profissionalismo. Me senti aliviado pela melhor decisão tomada. E sairia da colônia penal da transnacional. Nada contra as maravilhas da floresta amazônica e os povos originais que nela habitam, mas sim pelos crimes que os estrangeiros cometiam impunemente à natureza e aos seres humanos que lá viviam e trabalhavam.

Assinei o que tinha que assinar e voei dali o mais rápido possível. Nem precisei ir ao Rio para sacar meus direitos. Em São Paulo mesmo consegui tudo o que precisava.

Reconquistara minha vida no final de 1982 depois de quase um ano confinado.

10 comentários:

  1. Parabéns... Pessoa duplamente corajosa.
    ;)

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  2. Olá, Graça Marques, obrigado pelo comentário.
    Antes a experiência tivesse sido a partir de viagens a passeio, atividade que realizei tantas vezes depois pelos quatro cantos da Amazônia, todas elas relatadas neste blog.
    Mas essa aí de cima foi para morar e trabalhar.
    De qualquer maneira, valeu e voltei mais vivido, amadurecido e experiente.
    Abraços!

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  3. Vou começar a ler seu blog, post por post...

    ;)

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  4. Olá, Ju Lehmen, obrigado pela atençäo.
    Espero seus comentários.
    Abraços!

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  5. Olá,
    Tudo bem?

    Meu nome é Vinicius, queria parabenizar o Viajante Sustentavel. Ando visitando muitos blogs relacionados a viagem por motivos de trabalho e o seu me chamou a atenção pelo qualidade do conteúdo.

    Acho que você fez um ótimo trabalho com ele e gostaria de propor uma parceria; sou ligado a uma seguradora de viagem, e estamos sempre buscando sites interessantes para fecharmos parcerias de infográficos, artigos, etc.

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    O que você acha, podemos conversar mais? Seria um prazer conhecer melhor a equipe por trás do Viajante Sustentavel, e criarmos conteúdo interessante para seus leitores!

    Agradeço desde já.

    Abraços,

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  6. Muito bom de ler, texto claro, dá vontade de continuar a leitura.

    www.reginalemos.blogspot.com

    Este é o meu blog.

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  7. Olá, Vinicius. Obrigado pelos comentários.
    Neste blog, entre outros temas, memórias, reflexões e fotos de minhas viagens pelos interiores do Brasil e de outros países da América, Europa e Ásia, contendo questionamentos e análises sociais e ambientais.
    Fique à vontade para pesquisar, ler, comentar, divulgar. Boas leituras!!!

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  8. Olá Regina, obrigado pelos comentários.
    Leia e comente sempre.
    Abraços!

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  9. Olá! Gostei do conteúdo, vou continuar lendo seus post. Gostaria de saber qual seria o nome desta mineradora em que você trabalhou nesta região de Ariquemes na década de 80? Conheci um sr. há uns 3 anos q trabalhou na área administrativa ou contabilidade(não me lembro bem como ele contou), numa mineradora lá em RO também nesta época, e me relatou sobre as endemias da época, enfim, sobre os riscos de saúde na região, numa época em que o estado estava ainda dando seus primeiros passos e consequentemente sem recursos.

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  10. Olá, qual o seu nome?
    Obrigado pelos comentários.
    A empresa era uma associação entre uma transnacional inglesa e uma transnacional canadense, batizada de um nome brasileiro.
    Tudo que escrevi é a pura verdade, mas bem resumida. O detalhado era bem mais intenso.
    Você mora em Rondônia?
    Leia e comente sempre...
    Abraços!

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