...continuação
Depois do almoço me dirigi à rodoviária de Macapá, pequena,
precária, em obras, sem sanitários. O ônibus velho saiu atrasado, sem banheiro
interno, geladíssimo pelo ar condicionado. Abri parcialmente as janelas
próximas para contrabalançar. A operação só foi possível devido à velhice do
veículo, sem os modernos e famigerados vidros fixos.
E não havia cobrador dentro do ônibus, apenas o motorista.
Em ônibus pinga-pinga, para cada passageiro que embarcava no meio do caminho,
com o ônibus parado, o motorista cobrava, emitia o bilhete, dava o troco,
atrasando demais a viagem.
Saindo de Macapá no rumo norte a estrada penetrou em
campos de cerrado, buritizais, matas ciliares de maior porte.
Nas imediações de Porto Grande, o deserto verde das
monoculturas de eucalipto, secando igarapés, sugando o lençol freático acima da
capacidade de regeneração, afastando a fauna e a flora regional. Crime
socioambiental sem máscaras.
Em Ferreira Gomes, a pequena hidrelétrica do rio Araguari,
ali largo, caudaloso, o mesmo que em confronto com o mar, em certas épocas do
ano, provoca o fenômeno da pororoca, atraindo surfistas e curiosos do Brasil e
exterior. Até ali o ônibus trafegava na BR-210, passando então para a BR-156.
Após atravessar o imponente rio Tartarugal, a cidade de
Tartarugalzinho, o único ponto de parada para banheiro de todo o percurso.
Feia, espalhada, decrépita, a cidadezinha se entupia de empresas evangélicas
sequestrando os bolsos e as mentes dos desavisados.
O cerrado reinava absoluto em vastas áreas desertas de
seres humanos, de agricultura, de criações de animais. Surgiram serras suaves e
a estrada apresentou curvas acentuadas entre ligeiros sobes e desces. Nesse
ponto a floresta de maior porte despontava e o verde intenso fascinava os
olhos.
Voltou a chover. Sequência de comunidades pequenas e pobres,
com embarque e desembarque de muitos passageiros. Em todas elas abundava a
praga das facções das empresas evangélicas.
Em cada vila ou cidade, o resgate ou a entrega dos
passageiros era praticamente em domicílio, porta a porta. O ônibus rodava uns
metros e parava novamente. E assim por diante, com o motorista parando para
cobrar, emitir a passagem e dar o troco a cada passageiro que embarcava.
O acesso à cidade de Pracuúba foi ignorado. O ônibus desviou
para a rodovia estadual AP-116 a fim de alcançar a cidade de Amapá. Nova série
de paradas para embarques e desembarques. Cidade plana, feia, espalhada, Amapá,
mantendo a triste sina, estava entupida de facções das empresas evangélicas
fundamentalistas. A lavagem cerebral dos ingênuos, e dos bolsos deles também,
não tinha limites ou pudores.
Chovia forte em noite avançada ao entrar em Calçoene. Após
incontáveis paradas pelas ruas, desembarquei em frente à pousada. Encarei a
chuva interminável e jantei bem em restaurante perto do hotel. Fui de arroz, feijão
preto, farinha, filé de gurijuba, saboroso peixe local.
Ao lado da pousada, espetáculo de horrores, gritos
histéricos, berreiros, choros, música insanamente alta. Era o fim do mundo
dentro de uma facção qualquer do fundamentalismo evangélico. Além dos
mandachuvas pilantras, ovelhinhas entregavam as consciências e os bolsos para
os chefes do crime organizado do comércio da fé.
Tirei toda a roupa molhada e as estendi pelo quarto do
hotel. Lá fora, a chuva caía firme e forte, sem parar. Adormeci ao doce ruído
da água, despencando dos céus sobre Calçoene, uma das cidades brasileiras de
maior índice pluviométrico.
Assim como em Tutóia, cidade do litoral leste do Maranhão,
que em minha primeira visita cheguei à noite diante do breu e somente pela
manhã descobri que dormira de frente para o mar, em Calçoene também
desembarquei à noite, sob a chuva torrencial que tampava a visão e abafava
outros sons. Pela manhã, descobri extasiado que o hotel ficava de frente para
as águas cristalinas do rio Calçoene, cuja margem oposta se cobria de floresta
de grande porte, entre aningas, cipós, árvores bem desenvolvidas. E, a jusante,
rochas formavam corredeiras e pequenas quedas d’água, enriquecendo a paisagem, massageando
os ouvidos, lavando a alma já lavada pelo visual ao redor.
Barcos de pesca oceânica, de formatos e propostas
distintas dos equivalentes pesqueiros fluviais, estavam atracados abaixo das
corredeiras. Pescadores reparavam eventuais danos das embarcações, consertando
e revisando longas redes de arrasto.
Muitas construções de madeira, com esteios para erguer as
casas e protegê-las das águas raivosas durante o inverno amazônico. Ruas de
cascalho ou de asfalto esburacado. Bastante barro e lama pelas chuvas
constantes. O clima instável vira e mexe trazia garoas ou precipitações mais
intensas.
Desenhei a pé grande círculo pelo lado leste da cidade,
procurando não me afastar da margem do rio. Em várias paredes das construções, comerciais
e residenciais, a frase “compra-se grude”. Grude era a membrana fina e interna de
alguns peixes de água salgada. Era retirada, secada e amarrada em sequência de
cordões. A China comprava a totalidade da produção a fim de utilizar na
alimentação dos chineses, sobretudo em sopas, e na indústria de cosméticos.
Saído ainda criança da cidade de Miguel Alves, agreste
piauiense, o funcionário da pousada, acompanhado de toda a família, foi morar
no oeste maranhense, região de Zé Doca, Araguanã e Nova Olinda do Maranhão. O
pai não se deu bem com as mudanças de clima, da posse e trato da terra, antes
própria e depois arrendada. Adoeceu e se invalidou para o trabalho. Se seguiu então
a diáspora da família. Ele veio ao norte do Amapá, num programa de
transferência de maranhenses esfomeados, considerados sem futuro no Maranhão. Vivia
com a mulher e filhos em Cunani, distrito ao norte de Calçoene.
Choveu praticamente a tarde toda e no começo da noite.
Estiou mais tarde, permitindo aos moradores saírem da toca no sábado à noite. Movimento
pequeno ao redor da grande, descuidada e abandonada praça da igreja Matriz. A
lua no alto do céu ameaçava, timidamente, ultrapassar as nuvens e dar o
espetáculo prateado.
Enquanto tomava o básico café da manhã da pousada, três
policiais rodoviários federais, hóspedes também, saíram para o serviço
fortemente armados, nas pernas, quadris, costas, sem mencionar a metralhadora a
tiracolo. Entraram em caminhonete cabine-dupla, toda equipada para as devidas funções,
partindo estradas afora. Investigavam entrada ilegal de armas no Brasil pela
Guiana Francesa. O garimpo de ouro na região do Lourenço era alvo constante de
ações policiais, que resultaram na prisão do prefeito de Oiapoque e de um
promotor de justiça.
Dei grande volta pela metade oeste de Calçoene, margeando
parte do rio, até o asfalto de entrada da cidade. Depois contornei ao início da
estrada de chão que levava à praia do Goiabal, a vinte e dois quilômetros e,
via outro ramal, prosseguia ao parque arqueológico do Solstício.
Depois de contemplar mais as corredeiras do rio Calçoene, me
sentei na frente da pousada. Entre conversas com o piauiense eu apreciava o
vaivém dos moradores, em carros, motos e, principalmente, bicicletas.
Não choveu à tarde e sim esquentou. Os mosquitos,
carapanãs, piuns e afins, se assanharam. Até ameaçou por do sol naquele poço de
umidade. À noite, sim, choveu tudo e mais um pouco. Depois a lua apareceu e despontaram
estrelas. Doce e breve ilusão. Em menos de dez minutos mudou tudo novamente. A
chuva, fraca ou forte, sempre vinha ajudando a esvaziar as ruas já esvaziadas
de Calçoene.
Pela manhã subi na garupa da moto de senhor idoso rumo aos
vinte e dois quilômetros de estrada encascalhada e trechos com barro mais mole.
Pequeno movimento na estrada, uma ou outra moto, um carro, uma senhora de
bicicleta, sentada no chão, esperando por ajuda devido ao pneu traseiro furado.
Campos de cerrado, buritizais, cursos d’água com matas ciliares, áreas extensas
e completamente alagadas já mais próximas à praia. Nesses trechos alagados,
cobertos por aguapés e cortados por igarapés sinuosos, apareciam criações de
búfalos.
O motoqueiro era politizado e ciente da exploração e
opressão como trabalhador rural. Sempre se referia a contatos proveitosos com a
Pastoral da Terra. Acusava paulistas e gaúchos de comprar todas as terras boas
a preços ínfimos. E resistia bravamente, tentando convencer do mesmo os colegas
restantes.
A praia do Goiabal se abria ao norte da foz do rio
Calçoene. A maré baixa afastava da visão as águas do mar. Sequência de casas de
aluguel, padronizadas e de madeira, um bar e restaurante fechado, e na ponta a
borda de uma fazenda de bois e búfalos.
Assim que apeei da moto, os maruins, piuns minúsculos,
atacaram pés e pernas, sem dó nem piedade. A picada era intensa e ardida. Eu somente
as notava depois do estrago feito.
Circulei lentamente por região sem acidentes de relevo,
avançando pela areia umedecida, e perto do igarapé que trazia água doce para o
mar. Na direção leste, o vazio, a imensidão, o nada, em tons cinzentos a
esbranquiçados, sem sinal das águas do mar. Nem me sentia em praia marinha.
Conversamos com morador local sob a sombra do alpendre do
bar fechado. A maré, lentamente, muito lentamente, começava a encher. As
conversas giravam em torno da posse da terra na praia, de eventuais projetos
turísticos para atrair visitantes, e não apenas durante as festas regionais do
final de julho.
Voltamos a Calçoene para o almoço. A turma do ICMBio, que
praticamente lotou o hotel para treinamento regional, trouxe comida e material
de cozinha, jantando na própria pousada.
Havia poucos ônibus de Calçoene a Macapá. Os horários eram
inconvenientes, pela madrugada, vindo de Oiapoque, sem hora certa para chegar,
fato agravado pelos atoleiros ao longo da estrada de chão ao norte de Calçoene.
Opções eram os piratas, lotações não oficiais que transportavam esmagados os
passageiros à capital. Também não partiam em horários marcados, aguardando encher
o veículo, mas se programavam para o triste horário das 5h da madrugada.
Surgiu a carona com o dono da pousada, o sessentão de
cabelo curto e tingido de preto, baixo e arredondado, rosto esférico e
expressão do tipo la-garantia-soy-yo.
O asfalto com raros buracos e irregularidades da BR-156, e
depois BR-210, garantiu viagem tranquila. Durante o trajeto, o
la-garantia-soy-yo, aposentado como delegado de polícia e advogado, tagarelou
sem parar. Explicava o óbvio como se fosse a novidade do século. Exagerava nos
detalhes inúteis. Eu virava o rosto para a paisagem lateral. A moça no banco de
trás, ciente da peça indigesta que se encontrava ao volante, entrou muda e saiu
calada.
Ao desembarcar, Macapá apresentava temperaturas muito
superiores, e ar mais seco, do que as de Calçoene.
O dia seguinte foi de luta pela educação em todo o
Brasil., com greves e manifestações de rua. Macapá parecia feriado de tão
morta. As lutas contra os cortes arbitrários e criminosos no orçamento da
educação no Brasil ocorreram na praça do Governo, centro de Macapá. Reuniram
milhares de manifestantes animados a resistir até o fim.
Circulei pelo calçadão da orla do rio Amazonas, na avenida
Beira Rio. Cobri da estação de captação de água ao trapiche Elyeser Levy, parando
no pequeno porto, com algumas embarcações, e nos arredores da fortaleza de São
José de Macapá. Observei a maré baixa, com os barcos encalhados na areia úmida,
em seguida a flutuar nas águas do rio à medida que a maré subia rapidamente. No
porto, o navio “Doutora” reunia figurões da administração municipal de Macapá. Tinha
até tendas para comes, bebes e discursos no cais de cimento.
Imensos navios cargueiros estacionados distantes. Pequeno
movimento no calçadão, já quente e abafado, apesar do pouco sol. Ao meu lado a
jovem obesa contava longa estória para os colegas, que não lhe tiravam os olhos
e os ouvidos. Eram estórias cheias de reviravoltas, ameaças, violências,
injustiças, ternuras, arrependimentos. Ela impunha ritmo leve e cadenciado, sem
perder o fio da meada, sem deixar perder a atenção da audiência. Incrível como atraem
os assuntos que envolvem amor e ódio, violência e paixão, ternura e crueldade.
Sempre assuntos privados, e dos outros. Nem sei se os ouvintes se importavam
com a veracidade dos fatos. Apenas se deixavam levar, se emocionavam.
A cuia de açaí encerrou o almoço em local ventilado
naturalmente, de frente para o rio. A paisagem infinita do rio Amazonas reinava
absoluta na visão e nas emoções.
continua...
Boa noite amigo Augusto, super relato de viagem!!!Parabéns !
ResponderExcluirÉ normal o motorista fazer esse trabalho para economica!
Como é bom um arroz com feijão e peixe frito...saudades D+
VC, não vai acreditar!?Sou Zedoquense, nasci EM Zé Doca Maranhão, e sempre quando tenho oportunidade visito!!!
Muito Obrigado por compartilhar tamanha sensibilidade🙏🏼🙏🏼🙏🏼🙏🏼🙏🏼🌏
Olá amigo maranhense!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Procuro escrever o que vejo e sinto. Depois é só arrumar as frases numa linha legível de raciocínio. Espontaneidade é o lema.
Vamos divulgar esse Brazilzão, como denúncia para que os brasileiros, ou grande parte deles, se envolvam na luta para preservar as coisas boas e transformar radicalmente as ruins.
Comente sempre!
❤❤❤❤🙏🏼🙏🏼🇧🇷🇧🇷🇧🇷🇧🇷🇧🇷
ResponderExcluirLindo 😍 a simplicidade descrita pelo olhar sensível do observador 🌹
ResponderExcluirOi Lucia!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Que bom que gostou do modo como escrevo. Procuro registrar aquilo que vejo e sinto, da maneira mais espontânea possível.
Coemnte sempre!
Que delícia de texto, estou viajando junto, conheço muito estas paisagens Não achei o início, embarquei na rodoviária de Macapá.Seguindo aqui.Obrigada.
ResponderExcluirOi Carmen! Obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirPelo computador ou pelo celular, acessando a versão web, nos menus à direita, você verá todas as partes do relato que estiver lendo. Aí é só clicar e seguir na sequência.
Qualquer coisa, me chame...
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