...continuação
Cruzei a porta da fortificação murada e entrei no complexo
de ruínas pertencentes à Ani, antiga capital da Armênia e datada de cerca de
mil anos. A cidade que chegou a abrigar cem mil habitantes foi abandonada e
estava completamente deserta. Somente meia dúzia de turistas isolados
perambulava pelas trilhas. Erguidas espaçadamente na ampla área da cidade
murada, as construções apresentavam diferentes estágios de conservação.
Me perdi durante horas pelos caminhos que levavam de uma
construção a outra, analisando carinhosamente uma a uma, não deixando de
contemplar a garganta profunda pela qual corria riacho sinuoso e de águas
nervosas, compondo acidente geográfico que dividia a Turquia da Armênia. Andei livremente,
sem pressa e sem o roteiro pré-definido das páginas dos guias previsíveis. O
tempo ajudava, nem frio, nem calor.
Além das construções levantadas em escarpas improváveis,
quase despencando paredão abaixo, me atraíram as duas igrejas de São Gregório,
contendo afrescos e relevos ainda visíveis, além do Caravançarai, da Mesquita e
da Catedral. O castelo, situado na extremidade alta e oposta ao portão de
entrada, se resumia a escombros. Dali, visão panorâmica e completa de Ani,
através da qual se poderia recompor na mente e no espaço a disposição de cada
uma das construções, dos resquícios das muradas, do rio correndo veloz no vale
profundo e contendo também ruínas da ponte de pedra, da desolação do lado
armênio, da antiga e pequena igreja armênia inacessível e erguida acima da
escarpa rochosa vertical, de outros vales ressecados e ocupados por rebanhos
conduzidos por pastores que cantavam e gritavam. Eu e a companhia somente da
paisagem, das ruinas históricas, do sol tépido, do vento incessante.
Como parte da antiga Rota da Seda durante séculos, de
acordo com a placa indicando a trilha original, Ani funcionou com ponto de
parada e reabastecimento, de trocas comerciais, culturais, filosóficas,
religiosas, e outros tantos intercâmbios em ambos os sentidos, entre os povos
ocidentais e orientais.
Do lado de fora, o motorista me aguardava numa improvisada
casa de chá. Ambos para lá de famintos nos dirigimos à cidade de Kars, onde entramos
em restaurante de esquina em que o proprietário e o único garçom exibiam
expressões sonolentas. Comi bastante e bem, depois de escolher entre os pratos
sob o balcão de vidro. Muitos pães, inclusive um longo, delgado e acinzentado,
mais parecendo tecido de algodão de tão fino.
Andei sozinho pelos arredores do centro de Kars, por entre
ruas comerciais e becos calçados de pedra. Casario antigo, muitos de origem
russa, outros mesclados por influências armênias, persas, georgianas, da virada
dos séculos XIX e XX, muitas das vezes utilizando rochas escuras nas paredes
internas e externas. Mesquitas diversas, igrejas armênias exibindo o
tradicional formato cilíndrico e de cúpula cônica, ladeiras com casas caindo
aos pedaços que levavam aos altos da cidade, em cujo topo se erguia o castelo
de Kars. Cafés, casas de doces, restaurantes, lojas de queijos e mel, a maioria
bem decorada e prestigiada pelos moradores, se distribuíam pelas ruas centrais refletindo
a variedade de culturas que a influenciaram ao longo da história.
Mais uma noite bem dormida sob o silêncio do hotel e da
cidade.
No salão do café da manhã estava um grupo de europeus
loiros. O que mais chamou a atenção, no entanto, foi o cheiro horrível que exalava
do corpo deles. Um odor azedo, profundo, de vários dias ou semanas sem banho e troca
de roupas. Fediam pavorosamente. O ambiente do salão, fechado pelo frio
externo, beirava o insuportável. Assim que quatro turcos hóspedes entraram e
sentiram a pestilência do salão, imediatamente franziram o cenho e tamparam os
narizes. E abriram uma das janelas, justamente a mais próxima dos europeus
fedorentos. O ar gelado e desconfortável do começo da manhã era infinitamente
mais tolerável que a fedentina dos gringos provenientes do assim chamado primeiro
mundo civilizado. Ao deixarem o salão, o mau cheiro começou a se dissipar,
aliado à entrada de ar frio e fresco pela janela. Eu e os turcos respiramos
aliviados e pudemos comer em paz, sem o risco de vomitar.
A partida de Kars ocorreu sob o céu nublado. À medida que
a rodovia avançava para o oeste, subindo gradualmente o relevo, o céu começou a
escurecer. No planalto, perto do acesso a Keçivan, a chuva caiu e irrigou
naturalmente os campos sem fim em fase de semeadura da primavera. Junto com a
chuva, a queda brusca da temperatura, forçando o fechamento das janelas do
carro e o acionamento do aquecedor.
A viagem continuou por vale estreito e profundo, cercado
por escarpas rochosas que afunilavam as águas do rio correndo ao lado esquerdo.
Após o trevo para Sarikamis a chuva cessou, o relevo baixou gradualmente e a
temperatura começou a amenizar.
A rodovia cruzou a cidadezinha de Horasan pela rua
principal, movimentada pelo comércio e pelas inúmeras casas de chá, em frente
das quais senhores sisudos e vestidos de cores escuras bebiam um copo atrás do
outro, sempre dedilhando as contas na mão entre orações mentais, silenciosas,
sussurradas.
Montanhas nevadas abauladas, sem cumes agudos e
pronunciados, irrompiam em cada nova subida do relevo. E apontou no horizonte a
cidade de Erzurum. O céu escurecia, as nuvens engrossavam e baixavam, ameaçando
tempestades. Mesmo assim, abri bem as janelas do quarto do hotel para afastar o
odor de cigarro impregnado.
Eu e o curdo andamos por ruas e avenidas na busca do
típico prato de Erzurum, o cag kebap,
preparado com carne de carneiro. Comemos muito e bem em restaurante decorado
alegremente, cujas mesas externas se dispunham debaixo de tendas de madeira,
contando com assentos atapetados e estofados e com o privativo samovar para
tomarmos o chá.
A peça do carneiro era grelhada em fogo baixo ao redor de
espeto alongado. Exceto pela posição horizontal da carne, o procedimento e o
visual lembravam o famigerado churrasquinho grego de São Paulo e região. O
gosto empolgou demais. As entradinhas do meze,
entre iogurtes, pastas disso e daquilo, apimentadas na medida certa, arrombaram
o apetite já aberto. E veio também a tigela repleta com o pão regional, alongado,
largo, macio e finíssimo tal tecido de algodão. Para hidratar, água e copos de
chá preto.
Erzurum se mostrava mais conservadora nos costumes que as
demais cidades turcas pelas quais eu passara. Era menor o número de muçulmanas
não praticantes. Menos mulheres com os cabelos e rostos descobertos. Aumentara
a quantidade daquelas com rostos cobertos parcial ou totalmente, além dos
mantos de cores leves, sobre a cabeça e os cabelos. E mais mulheres vestidas
inteiramente de roupas pretas, compridas e largas, a fim de tapar tudo, deixando
apenas a linha estreita para os olhos.
De expressões e posturas mais sisudas, os homens se
vestiam de roupas escuras, tendo às mãos as inseparáveis contas de oração. Muitos
se deixavam ficar horas e horas dentro das espartanas casas de chá, conversando
em grupos, quietos com olhares parados, rezando em pensamento ou aos sussurros
e, é claro, tomando sucessivos copos de chá preto. O costume dos homens andarem
de braços dados se mantinha em Erzurum. O mesmo ocorria com os beijos nas duas
faces do rosto quando eles se encontravam ou se despediam.
A despeito da aparência mais rigorosa, elas e eles se
mostravam prestativos e acolhedores. Sorriam sempre aos encontros e despedidas.
Em todas aquelas semanas pela Turquia, jamais me senti hostilizado ou mal
tratado diante de nenhuma mulher ou homem, jovem ou adulto. Muito pelo
contrário, os turcos e as turcas deixariam saudades pelo carinho, educação e
simpatia.
Embora houvesse trabalhos de restauração nos principais
monumentos históricos, como na madraça Çifte Minaroli, por exemplo, o casario
antigo da parte velha da cidade estava sendo posto abaixo. Avistei sobrados
abandonados, outros queimados ou em ruínas, a maioria faltando portas, janelas,
paredes.
A modernização deliberada da Turquia, fato notado em
várias cidades do interior e até mesmo nas imediações do bairro histórico de
Sultanahmet em Istambul, vinha imposta, sem qualquer consulta ou debate com as
populações afetadas. Como nos demais países da periferia do capitalismo, as
demolições do antigo e as construções do novo atendiam ao grande capital
financeiro de mãos dadas com o setor imobiliário. Do jeito que a coisa andava,
pouco ou nada sobraria. Em futuro próximo, a Turquia contaria com ilhas de
patrimônio histórico, dos quais a indústria do turismo aufere lucros
astronômicos não revertidos para a população, mas cercadas por cidades
modernizadas, padronizadas, sem personalidade. Os turistas em hordas visitariam
as atrações turísticas isoladas, separadamente, e voltariam aos respectivos
países sem qualquer contato com a Turquia real, com o povo e a cultura turca.
Problema social e cultural que não se restringe à Turquia
e ao povo turco. A situação se repete pelo mundo afora. Em graus e ritmos
distintos, mas está praticamente em todos os lugares.
E fez lembrar o instigante documentário A Síndrome de Veneza, exibido em
festival de cinema em São Paulo. Embora não haja, por enquanto, previsões de
demolições do casario veneziano, a busca do lucro a qualquer preço, o mercado imobiliário
e a indústria predatória do turismo também têm implicado em sérios danos à
população local. O documentário defende a tese de que o acelerado processo de
fuga forçada dos moradores originais, em função da alta dos preços e da
especulação imobiliária, transformará Veneza em cidade cenográfica antes de
2023. Uma Veneza sem venezianos. Veneza deixaria de ser uma cidade viva, mas
apenas cenário de visitação.
Depois de cortar a planície fértil ao norte de Erzurum a
rodovia começou a subir. À medida que aumentava o relevo, a temperatura
diminuía e o vento gelado se acentuava. A estrada atingiu o topo no passo Kop
Geçidi. Placas de neve cobriam a montanha árida e se aproximavam do leito da
rodovia. Fora do carro e da casa de chá onde nos refugiamos fazia um frio
terrível agravado pelo vento incessante. Os cachorros dos arredores nem
pareciam sentir as baixas temperaturas, perambulando ou dormindo tranquilamente
ao ar livre. Os copos de chá e o ambiente interno amenizaram o frio externo.
Pouco após o passo e estrada desceu lenta e sinuosamente. Depois
de cruzar Bayburt, cidade guardada pela fortaleza no topo do morro, a estrada,
entre altos e baixos do relevo, alcançou Gumushame, vila encravada no fundo do
vale e cercada por escarpas rochosas.
Mais um passo, o Zigana Geçidi, a partir do qual a rodovia
em obras desceu vertiginosamente, cortando vários túneis recém-construídos e
serpenteando zonas úmidas, com florestas temperadas e muito verdes, casas
esparsas posicionadas nas encostas, riachos com corredeiras.
Paramos para comer em restaurante simples e eficiente na
beira da estrada com vista para as montanhas verdejantes. Fomos de carne de
carneiro e koften grelhados,
acompanhados de salada e cesta de pães abundantes e variados.
Mais abaixo, a vila de Maçka, onde dobramos rumo ao
mosteiro de Sumela, via estradinha sinuosa e margeada por bosque de pinheiros,
montanha acima, ao lado de riacho encachoeirado. O caminho ziguezagueava ao
longo de vale estreito e profundo, entre curvas fechadas e precipícios,
cruzando pontes frágeis, até o limite. A partir dali, somente a pé até o
mosteiro.
O mosteiro de Sumela, construído por religiosos gregos no
século X, e abandonado em 1923, quando da fundação da república da Turquia, foi
erguido em posição improvável e espetacular na parede vertical da rocha, num
claro desejo de isolamento de tudo e de todos.
Dentro, apenas a capela principal chamou a atenção,
coberta de afrescos coloridos com temas religiosos, entre santos, cenas, textos,
objetos sagrados. Infelizmente tudo estava violentamente depredado por turistas
irresponsáveis e, conforme informações recebidas, por militares estadunidenses,
sempre eles, durante exercícios militares na década de 1960.
Após a descida emocionante e não menos espetacular que a
subida, e a passagem pelo vilarejo de Maçka, de volta à rodovia principal serra
abaixo.
As ruas e avenidas de Trabzon surgiram ao entardecer. Fui esticar
as pernas pela cidade na margem do Mar Negro. Mas nada atraía na beira nas
águas. Largas e extensas avenidas, incluindo aí um minhocão ou viaduto
longitudinal às vias e paralelo ao mar, verdadeiras aberrações urbanísticas,
isolavam a população das águas marinhas.
Sob o céu nublado com chuviscos intermitentes visitei o
museu da Aya Sophia que, assim como o homônimo em Istambul, já foi igreja
cristã e mesquita. A construção, pequena
e charmosa, se erguia sobre colina com vistas para o Mar Negro.
Enchi o bucho com lamahcum
e me hidratei com ayran em
estabelecimento tocado pelo comunicativo e fanático torcedor do Trabzon, time
de futebol muito popular na região. Pena que eu não falava e nem entendia
turco.
Ao contrário da conservadora Erzurum, a cidade de Trabzon
exibia leveza e descontração na aparência geral dos moradores. Claro, lá estavam
eles e elas praticantes do islamismo, vestindo roupas indicativas. O jeitão
geral, porém, apontava para o contrário. O urbanismo ao longo das encostas das
colinas, em direção ao mar Negro sem praias, abrigava gente que também queria
viver e se divertir livremente, se vestindo e se comportando mais ousadamente,
pouco se importando com os ditames de comportamento religioso.
Acordei bem cedo para pegar o voo de volta a Istambul. Enganei
o estômago sem café da manhã com um simit
fresquinho e vendido próximo ao portão de embarque.
Fazia calor suave em Istambul, denunciando o avanço da
primavera. As barraquinhas de castanhas assadas dos meses anteriores iam dando
lugar às de melancias cortadas. Parecia impossível, mas Istambul no início do
mês de maio estava mais cheia de turistas do que em março e abril. Mal se podia
andar pelas ruas e becos de Sultanahmet. Os rebanhos de turistas eram vomitados
dos ônibus, todos com as câmeras fotográficas nas mãos, armadas para disparar e
registrar qualquer coisa que aparecesse pela frente, de qualquer maneira. Na
verdade, mais se fotografavam próximos às atrações turísticas. Estas
funcionavam apenas como pretextos ou cenário para poses e sorrisos previsíveis.
E tudo rápido, muito rápido, pois o guia, hasteando a bandeirola de
identificação, os tocava para seguir em frente a fim de ticar na lista a
próxima atração do roteiro.
Me despedi da noite de Istambul dando uma caminhada sem
pressa pela praça do Hipódromo, de onde se tinha visão privilegiada das colunas
milenares dos conquistadores de Bizâncio e Constantinopla, da mesquita de Sultanahmet
(Azul), da Aya Sophia, ambas charmosamente iluminadas.
Voltei ao hotel para madrugar na manhã seguinte.
Ainda estava escuro quando entrei na plataforma do bonde, que
me levaria ao metrô e este ao aeroporto.
Encontrei o casal que viajara comigo pela Anatólia
ocidental no acesso ao controle de passaportes. A fila quilométrica
ziguezagueava pelas cordinhas de segurança. Muitos selvagens do chamado “mundo
civilizado”, todos loiros e de olhos azuis, a furavam descaradamente, diante da
complacência de alguns e a indignação de outros.
O voo correu tranquilo. Aproveitei para detonar o Ópera dos Mortos, de Autran Dourado. Li o
livro de ponta a ponta entre as refeições, uns breves cochilos, providenciais esticadas
de braços e pernas. Virei a última página antes do pouso em São Paulo no começo de maio.
Oi Ana Lúcia, obrigado pelos comentários e os elogios!
ResponderExcluirO que escreve se torna um baita incentivo para eu continuar viajando, observando e refletindo, continuar escrevendo e relatando, continuar divulgando meus olhares e passar a todos as subjetividades do que vejo e sinto nessas experiências pelo Brasil e, nesse caso, pelos meandros de outros países pelo mundo afora.
Valeu e comente sempre!
Uma maneira de viajar ,sem precisar ir,adoravel!!!!inteligente,bem pontuado.Obrigada. Parabens.......apenas continue.Abs mara de vuono
ResponderExcluirOlá, Mara, obrigado pela visita e pelos elogios. Servirão como incentivo a prosseguir viajando e relatando o que vejo e sinto nessas experiências culturais.
ResponderExcluirPubliquei relatos de viagens para todos os gostos, pelos interiores do Brasil e outros países da América, Europa, Ásia.
Conto com seus comentários.
Abraços!
Olá Viajante, passei para lhe desejar o mais doce dos Natais, com toda a família reunida. E porque Natal é também tempo de agradecer, aproveito para dizer "obrigada" pela sua amável presença n'O Berço ao longo do ano.
ResponderExcluirUm abraço desde Luanda
Ruthia d'O Berço do Mundo
http://bercodomundo.blogspot.com/
Oi Ruthia,
ResponderExcluirObrigado pelos votos que retribuo para todos vocês.
Um 2015 cheio de solidariedade e viagens de aprendizado.
Está em Luanda?
Abraços de São Paulo.
Parabéns pelo blog e pelos relatos. Encontrei vocês na internet e não paro de ler. São tantas opções bem escritas e registrados com reflexões pertinentes.
ResponderExcluirLindo o texto e as fotos sobre a Turquia. Os anteriores também.
Viaja por conta própria?
Abração.
Olá, valeu pela visita e pelos comentários. Obrigado!
ResponderExcluirViajo por conta própria na maioria dos casos. Mas também, quando compensa contratar uma agência ou guia local, opto por essa alternativa.
Publiquei diversos relatos aqui, seja dos interiores do Brasil, seja de outros países da América, África, Ásia, Europa. Leia, comente, divulgue..
Abraços!