Em agosto iniciei em Manaus mais uma viagem pelos
interiores do Brasil.
O ônibus urbano no metrô Tatuapé me deixou no aeroporto de
Cumbica em São Paulo. Apenas a barra de cereais e o copo de suco em voo de
quatro horas, pago com milhas acumuladas. Devorei os artigos da revista Caros
Amigos. Da janela vi a floresta amazônica, muitas queimadas, sobretudo no norte
do Mato Grosso, o rio Solimões, o rio Negro com Manaus na margem esquerda. A
fim de evitar o assalto de mais de quarenta reais de táxi no aeroporto, esperei
pelo ônibus urbano que me levou ao centro de Manaus por um real e oitenta
centavos.
Entrei no hotel de sempre e bem localizado. Jantei em
restaurante simples, especializado em peixadas amazônicas. A caipirinha,
imperdoavelmente coada, desanimou, mas a caldeirada de tucunaré, farta e
saborosa, foi aprovada.
Pela manhã, caminhei à margem do rio Negro. O sol e calor
sufocantes não tiravam o brilho e o encanto do porto de Manaus, a Escadaria,
talvez a única região da cidade que realmente me empolgava. Lanchei tapioca com
tucumã e queijo de coalho, tigela de açaí com farinha granulada.
Vinte estudantes italianos, pós-adolescentes, se
hospedavam no hotel com o suposto objetivo de praticar ecologia entre as
comunidades tradicionais da Amazônia. Padres italianos e outros radicados no
Brasil os acompanhariam nas incursões pela floresta e territórios indígenas. Se
reuniam sempre comandados pelos padres, para cantar e rezar.
A Companhia Estadual de Água e Saneamento do Amazonas fora
privatizada e entregue a transnacional francesa Suez. A mesma Suez que, após
tomar as águas da Bolívia, causou sucessivas manifestações populares,
desencadeando a deportação e a deposição do fantoche presidente boliviano que a
protegia. Lá como cá, os preços do bem público subiram, a qualidade dos
serviços caiu, parcela significativa da população pobre teve a água
arbitrariamente cortada pela transnacional. Agora só faltava os amazonenses
seguirem o belo exemplo do povo boliviano, expulsar a transnacional, reaver o
patrimônio público e colocá-lo a serviço da população.
Perambulei sem ambições pelo centro da cidade e depois me
sentei sob a sombra no largo de São Sebastião, finalmente todo revitalizado. A
vendedora de planos de saúde, química formada, vivia de bicos enquanto não se
alocava na própria área, na qual obtivera experiência nos campos petrolíferos
da Petrobrás em Urucu. O largo atraía centenas de moradores e turistas durante
as noites. Filmes, apresentações musicais, comes e bebes, tudo ao ar livre, sem
lotações ou tumultos. A iluminação amarelada realçava o charme do entorno do
teatro Amazonas. A cidade aproveitava o espaço público e democrático.
O barco partiu com destino a Tefé com três horas de
atraso. A tempestade que se avizinhava no rio Solimões só ameaçou, passando ao lado,
com muito vento. Os passageiros aproveitaram a leve queda de temperatura e
mergulharam nas redes. Tudo caiu em silêncio profundo. Ouvia-se apenas o som
relaxante das águas na proa do barco. O jantar foi servido no final da tarde.
Matei a fome que começava a apertar. Após o jantar os passageiros novamente se
recolheram às redes. Um tripulante tentava, em vão, acertar a posição da antena
parabólica no piso superior. Bastava o leme do barco virar para os chuviscos
voltarem com tudo.
O dia amanheceu calmo, com as águas espelhadas do
Solimões. Na subida dos rios, os barcos se aproximavam das margens a fim de
evitar as zonas de maior correnteza, permitindo imagens privilegiadas da
floresta, canoas de pesca, cabanas isoladas, raras e minúsculas comunidades erguidas
no alto dos barrancos do rio. Surgiam conversas leves e estimulantes com os
colegas de bordo, vindos dos quatro cantos. Passageiros, tripulação, incluindo
o comandante do barco, lançavam lixo diretamente nas águas do rio. Impunemente.
Eu e raros passageiros utilizávamos as lixeiras espalhadas nos três pisos da
embarcação.
Depois da parada matinal em Codajás e do almoço servido
antes do meio-dia, todos se renderem à preguiça e leves cochilos. Nos trechos
sem ilhas, o Solimões exibia toda a largura e a margem mais distante não
passava de mancha no horizonte, pequena e difusa. O nível das águas barrentas
baixava e expunha barrancos destruídos pela correnteza. Arbustos, folhas,
troncos, árvores inteiras despencavam para serem carregadas pelas águas. Crianças
se banhavam nas águas do rio próximas às pequenas comunidades ribeirinhas. Não
havia uma das paredes da escola de primeiro grau situada em comunidade abaixo
de Coari. E era justamente a parede de frente para o rio. Somente seis
estudantes assistiam à aula, em carteiras precárias, com direito a ventilação
natural e à vista do Solimões.
Mais desembarque de carga e passageiros na parada em Coari
no começo da noite.
Era enorme e entusiasmada a simpatia da maioria dos
passageiros pelo presidente Lula do PT. Afirmavam que ele fizera muito pelo
Amazonas e pelos amazonenses e tinham certeza da reeleição. No outro extremo, o
senador e candidato a governador do Amazonas pelo PSDB Artur Virgílio, mais
conhecido como Artur Neto, era execrado pelo povo amazonense. Assim como Geraldo
Alckmin e José Serra, também do PSDB, os quais não queriam ver nem mortos.
Alguns passageiros e tripulantes também mostravam simpatia pela candidatura de
Heloísa Helena do PSOL.
O barco atracou no areal de Tefé no meio do dia.
Imediatamente desembarquei, troquei de balsa flutuante e subi no barco pequeno,
com apenas dois níveis. Ainda estava vazio e escolhi bom lugar para atar a
rede. Saí nas ruas de Tefé para almoçar. A cidade continuava grande, feia,
barulhenta, suja, cheia de urubus. As motos voavam pelas ruas, cruzavam as
esquinas a toda velocidade, ignoravam os pedestres. Um idoso foi atropelado por
um motoqueiro bem defronte ao restaurante em que eu almoçava. A maior cidade do
Solimões completava dois meses sem voos. A Infraero interditara o aeroporto
pelo recorrente motivo de acúmulo de urubus nas proximidades da pista.
Acidentes não faltaram em vários anos. Tefé estava isolada pelas vias aéreas.
Praias apareciam acompanhadas de barracas de bebidas e som alto na beira da
água do lago que margeia a cidade.
O segundo barco partiu cheio de gente simpática e boa de
papo rumo a Maraã. Cortou caminho por furos estreitos nas primeiras horas da
viagem. A seca avançava, as águas baixavam e faltou pouco para encalharmos.
Anoiteceu e a maioria se recolheu às redes depois do jantar. Tirei bons
cochilos, apesar do vento frio. O barco parou muitas vezes durante a noite nas
comunidades, para embarque e desembarque.
O baixo rio Japurá mostrava-se largo e caudaloso. Rio
acima, o barco cortava sucessivamente lagos imensos. A floresta erguia-se em
ambas a margens. Pássaros de diversos tipos, formatos, tamanhos e cores voavam
sobre as copas das árvores ou mergulhavam no rio à procura de alimentos. Os
barrancos do rio expunham raízes das grandes árvores, as quais, caídas nas
margens, indicavam a permanente acomodação do vale do rio.
O barco atracou no porto flutuante de Maraã no
início da tarde seguinte. Subi em moto-táxi e voei para talvez o único hotel
aceitável da cidade. Os sete quartos disponíveis estavam ocupados. Fui à casa
da enfermeira com quem conversara durante a viagem, mas se passava por
reformas, se cobrindo de areia e pó. Retornei ao porto e consultei o dono do
barco se poderia dormir no convés aquela noite. Ele alertou para o ataque
incessante de carapanãs durante a noite em região com surto de malária. A
esposa dele me indicou hospedaria perto da igreja matriz. A entrada do
estabelecimento desanimava pela má aparência. Depois de escalar a escada
íngreme, estreita e apertada, atingi os quartos de cima, de madeira, sujos, com
camas deformadas, cobertas por lençóis encardidos, ventilador velho no chão. O
minúsculo banheiro coletivo fedia e a descarga não funcionava. As frestas das
ripas de madeira nas paredes permitiam a entrada de bichos em geral. O andar
superior talvez inibisse ratos e baratas, mas não bichos menores e insetos. Mas
sabia que não encontraria nada melhor por aquele preço irrisório. Só me restava
encarar o buraco.
Circulei levemente pelas ruas, ao redor da igreja,
próximas à margem do rio, à hospedaria. Nenhuma rua, construção, calçada,
praça, me atraía. Logo de saída apareceu um pedinte alegando isso e aquilo para
ele, mulher e filhos. E eu virara a atração da cidade. Todos me olhavam
perplexos, paravam de conversar, tentando entender o que um tipo como eu fazia
por aquelas bandas.
No quarto ao lado da hospedaria havia um casal e dois
filhos. Pelas frestas das ripas de madeira do quarto eu ouvia e via parte do
quarto deles. E, obviamente, também era visto. O marido se apresentou como
funcionário dos Correios. Afirmou ter outro imóvel, mas preferia utilizar
aquele quarto para cozinhar. Cozinhar com fogareiro improvisado em quarto e
construção toda de madeira. Temia não encontrar a hospedaria após as caminhadas
pela cidade, mas apenas os escombros torrados. Ele me entupia de perguntas,
queria saber de onde eu vinha, para onde eu ia, no que trabalhava, quantos dias
ficaria.
Encarei o cubículo do banheiro coletivo. Saía pouca água
do chuveiro, não havia onde pendurar roupas. Latão de água e a caneca indicavam
que a água encanada não era adotada pelos hóspedes. Faltou energia na cidade,
voltando somente bem mais tarde.
Originada a partir das comunidades de castanhais, a
pequena Maraã se erguia no alto de barranco na margem esquerda do rio Japurá.
Traços indígenas profundos marcavam os rostos, tons de pele mais escuros,
cabelos da maioria dos moradores. A prefeitura construíra praça de alimentação
na cidade, onde se vendiam, durante as noites, lanches, grelhados, salgados,
doces, bebidas. Cada espaço ligava o próprio aparelho sonoro, criando poluição
sonora indescritível. As bebidas alcoólicas lideravam entre os itens
oferecidos. O movimento daquela noite de sábado prometia avançar pela
madrugada.
Retornei cedo ao barraco de madeira. Só queria dormir
bastante e profundamente. Evitei os lençóis sujos e ásperos. E também não
queria pegar malária. Vesti calça comprida, camiseta de mangas longas, meias.
Aproximei o ventilador ajustado na menor velocidade e deitei sobre a cama, na
verdade bancada deformada pelas espumas velhas sobre as tiras de madeira. O sono acumulado ajudou e desmaiei na cama
dura. Nada soube de insetos pelo quarto. E não sei se acordaria a tempo no caso
dos vizinhos incendiarem a hospedaria.
O restaurante em frente, de propriedade de um casal
colombiano, se tornou o meu ponto de refeições na cidade. Canções colombianas
com letras simples e sem apelações, mas de ritmos contagiantes, temperavam o
ambiente básico e limpo. No café da manhã devorei três ovos fritos, três pães médios,
um deles recheado de presunto, copo de suco artificial, caneca de café com
leite. Tudo pela fortuna de dois reais.
Desde o início da manhã, rojões estouravam pelas ruas da
cidade. Grupos de moradores e de moto-táxis seguiam o candidato a deputado estadual
em pequena passeata. O sujeito cumprimentava os passantes, abraçava, adulava,
prometia, sorria, concordava, conchavava, cochichava, prometia mais. Muitos
idosos, homens e mulheres, o seguiam de perto, implorando migalhas. O nobre
candidato despediu-se dos seguidores no topo da escadaria do porto da cidade.
Desceu os degraus rumo às águas do rio Japurá, virou-se, acenou mais vezes,
abraçou os cabos eleitorais e embarcou em hidroavião, especialmente fretado
para a campanha. As portas do hidroavião se fecharam. A aeronave deslizou nas
águas do rio e voou, para longe de Maraã. De queixos caídos, os últimos
integrantes da passeata ainda acenavam para o hidroavião na esperança de dias
melhores após as eleições.
Ao meu lado, assistindo àquela cena, o vigia da fábrica de
gelo sussurrava que o tal candidato, depois de tocar e abraçar o povo, iria se
desinfetar com álcool, esquecendo assim tudo o que prometera aos moradores
carentes e abandonados, não só de Maraã, mas de todas as cidades por onde
passasse. E assim seguia, com pequenas nuances e diferenças, a carruagem da
suposta democracia representativa por todo o Brasil.
O abandono da região, sobretudo na assistência médica,
predominou entre os temas das conversas com outros moradores. Maraã ficava a
quinze horas de descida de barco de Tefé, a qual, sem voos, a mais de trinta e
seis horas de descida de barco de Manaus. Em casos de emergência, fato comum em
região infestada pela malária e demais doenças tropicais, nem sempre
corretamente diagnosticadas, ao paciente restaria demorados deslocamentos
fluviais. A maioria morria no meio do caminho. Não faltaram histórias reais de
casos escabrosos de parentes e conhecidos. A solução apontada pelos moradores
seria várias unidades móveis de saúde, inteiramente equipadas, em circulação
por todo o estado, subindo e descendo os rios.
continua...
muito bom os relatos dessa 1ª parte ! valeu ! fernandoo goncalves, de bom jesus do amparo-mg ferghuma@yahoo.com.br
ResponderExcluirGrande Fernando, obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirNa parte amazônica dessa longa viagem, o ponto alto foi o rio Japurá e a cidade de Maraã. Não houve conforto, mais muita emoção, observação e aprendizado.
Abraços!
Fantástico! Gostei muito. O meu livro "Pelos Rios ao Sabor da Fruta" conta a nossa viagem de Rio Branco à Ilha de Itamaracá, com flashes históricos e alguns poemas surgidos na viagem. As crônicas do livro estão no Blog Alma Acreana do amigo Isaac Melo - https://almaacreana.blogspot.com/2016/10/na-ilha-da-lia-de-itamaraca.html
ResponderExcluirOlá Eliana!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Reparou que este e os demais relatos contam com vários capítulos, ou partes? Essa foi a primeira de sete partes dessa viagem. Use os menus na parte direita da tela e avance nos relatos.
Vou, sim, explorar o seu livro. Depois conto como foi.
Comente sempre!
Ah, Eliana, esqueci o principal. Publiquei no blog diversos relatos de minhas viagens ao Acre, por vários rios e cidades ribeirinhas. Pesquise e se delicie...
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