...continuação
Os tripulantes comunicaram que ninguém mais poderia
permanecer com redes e bagagens no piso superior. Já era tempo de corrigir
tamanho absurdo que eu nunca presenciara em dezenas de viagens de barco pelos
rios da Amazônia. Ficou no discurso. Não tiveram autoridade ou vontade de
limpar a área. O café da manhã foi adiado sob a alegação de falta de pão. O
navio Clívia piorava a cada dia da viagem. Era disparado o pior barco em que eu
viajara, com a pior tripulação, a pior comida, os piores e raros banheiros, a
pior frequência, a pior segurança. Após o almoço novamente ruim, corri ao
camarote e comi gulosos pedaços do queijo de coalho comprado em Santarém. O
navio partiu somente no começo da tarde e a fechadura da porta do meu camarote
estava novamente mexida.
Em razão do roubo no camarote ao lado, da apreensão das
drogas, da frequência barra pesada, o clima geral do barco esfriou e a maioria
se fechou. A largura do rio, o distanciamento das margens, a familiaridade com
a paisagem repetida nos anos anteriores, me tiravam a curiosidade e a empolgação.
À noite o navio atracou no moderno e organizado porto de
Monte Alegre. A área portuária fora toda remodelada em estação hidroviária, com
lanchonetes e espaços livres ao lado. A lua cheia, avermelhada, enorme, linda,
surgia lentamente, acima das águas do rio.
Um sujeito de calça e camisa social distribuía folhetos
coloridos aos passageiros mais simples, tentando vender passagens em
transportes rodoviários clandestinos a partir de Belém, rumo ao interior do
Pará e principalmente ao interior do Maranhão, destino de grande parte dos
passageiros. Dois baianos, trabalhadores braçais, recrutados para a região de
Juruti como funcionários temporários de transnacional que prospectava bauxita,
não receberam o valor previamente combinado. Nem as horas extras ou adicionais
garantidos por lei. Inconformados, tentaram puxar greve e foram sumariamente
demitidos.
Parada no meio do dia na pequena e simpática Gurupá. À
tarde o navio entrou no estreito de Breves. Dezenas de canoas a remo partiram
dos casebres na beira do rio. Vinham em direção ao navio pedindo esmolas,
comidas, roupas. Alguns passageiros lançavam sacos plásticos recheados. Canoas
atracavam no navio permitindo meninos ou meninas subirem a fim de vender
banana, creme de açaí, camarão. As casinhas de onde vinham se erguiam isoladas
ou em pequenas comunidades dentro da mata rica em açaizeiros. O navio passou a
navegar em canais estreitos, por entre ilhotas ao sul da ilha do Marajó. Das
margens desfilavam a floresta, casebres de madeira cobertos de palha com canoas
de madeira à frente, minúsculas comunidades, buritizais, açaizais, ramagens,
cipós, tudo imbricado, de verde intenso. A proximidade da floresta permitia quase
tocá-la, cheirá-la, ouvi-la.
O navio parou no início da noite em Breves, cidade
vistosa, arrumada, exibindo praças e fontes luminosas.
Amanheceu em baía imensa, de onde mal se via a terra.
Depois, outros canais com mais crianças pedintes vindas em barcos a remo a
partir de casinhas erguidas sob a sombra dos açaizeiros.
Mesmo com a expectativa da chegada, não arrefecia a
indignação com o péssimo navio Clívia, que merecia punições da capitania dos
portos. E noventa horas após a partida de Manaus, o navio atracava nas docas do
porto de Belém.
Voei à estação das Docas onde a divina comida paraense me
esperava no sistema de bufê. E me empanturrei de peixe no tucupi, arroz, jambu,
farinha grossa. Depois veio a preguiça e o sono reparador.
Circulei a esmo por ruas arborizadas e deliciosamente
sombreadas pelas mangueiras centenárias dos bairros de Campina, Nazaré, Batista
Campos, São Braz. Quanta diferença das ruas, avenidas, praças de Belém, tomadas
por árvores frondosas, garantindo sempre prazeres visuais e sombras
refrescantes, em contraste com a feia, cinzenta e tórrida Manaus, sem árvores,
praças ou sombras. O Amazonas ganhava disparado do Pará, porém Belém humilhava
Manaus.
O vento constante na Estação das Docas mantinha
temperaturas suportáveis nas mesas de fora, mesmo sob o calor intenso de Belém.
Era noite e na mesa em frente a minha sentaram-se três estrangeiros falando em
francês. Não demorou muito para duas putas, jovens demais, vestidas a caráter,
se juntarem aos gringos. As mesas ao redor, ocupadas por famílias, casais,
grupos de amigos, lançavam olhares de espanto e indignação à mesa do turismo
sexual.
Caminhei pela manhã até o Mangal das Garças. Cercado,
exageradamente vigiado por dezenas de seguranças, ainda pelado de verde. O
local agradava pela intenção de mais uma área de lazer verde na margem da baía
de Guajará. A passarela de madeira que se projetava nas águas tornou-se ideal
para relaxar sob a sombra e vento refrescantes.
Comprei um litro de creme de açaí fresco, açúcar, farinha
de goma de tapioca. Misturei e engoli toda aquela delicia em menos de cinco
minutos. Entre leituras diversas, eu permaneci no quarto do hotel e não saí
mais.
À noite, ao descer à recepção do hotel, cruzei na porta do
elevador com um sujeito baixo, trinta e poucos anos, pele clara, olhos azuis,
jeito de sulista. Estávamos no terceiro andar e ele apertou o botão para o
elevador subir. Reclamava que o elevador nunca parava no andar. Insistiu que
queria descer. Apertou o botão para subir porque o elevador estava no térreo e
ele no terceiro andar. E o indivíduo perguntou ao recepcionista onde ficava a
unidade daquela rede transnacional de sanduíches. O funcionário provavelmente
não compreendia como, diante de tantas opções da culinária paraense, uma das
mais variadas e saborosas do mundo, alguém pretendesse, de livre escolha, se
envenenar naquele lixo estadunidense. O pobre coitado queria jantar sanduíche
de carne de minhoca, batatas transgênicas, refrigerante feito à base de
cocaína, e, de sobremesa, sorvete de gordura, açúcar e corante.
Reservei a manhã para circular pela cidade velha, o
Mercado Municipal, todo em ferro, com carnes penduradas à meia luz, o mercado
Ver-o-Peso, limpo e organizado, os quiosques de verduras, frutas, polpas de
frutas, comidas, garrafadas e demais itens medicinais, artesanatos, peixes e
mais peixes. Mais adiante, o forte do Presépio, a casa das Onze Janelas, a
catedral de Belém em reforma, o museu de Arte Sacra. E segui por becos cada vez
mais estreitos, ao lado de armazéns antigos, sujos, ruas vazias, ruas
movimentadas, dezenas de pontos de venda de creme de açaí, mais becos, mais
armazéns, cais de barcos de carga, até atingir, desta vez por outro caminho, o
Mangal das Garças.
Em Belém não faltavam bairros, logradouros e prédios
públicos com nomes de políticos profissionais, ainda vivos, em plena atividade
política. Os mais cotados eram Jader Barbalho e Almir Gabriel, este candidato a
governador do estado pela terceira vez. E nem se incomodava por ter estado à
frente, como governador, do massacre de 19 trabalhadores rurais sem terra,
assassinados pela polícia militar sob o seu comando em Eldorado dos Carajás em
1996. A impunidade dos crimes da classe dominante e o silêncio criminoso da
imprensa burguesa garantiam-lhe vida tranquila e sem remorsos.
Passeio sem pressa em Icoaraci, também na margem da baía
de Guajará. Pequena e simpática, a vila atraía visitantes de finais de semana a
fim de aproveitar a despretensiosa praia, com dezenas de bares, quiosques e
restaurantes ao longo da orla, urbanizada com calçadão, ciclovia, bancos, árvores
frondosas. O vento quase constante ajudava a refrescar a quentura. A cidade
também ganhava fama pela produção de cerâmica marajoara e tapajônica. Saboreei
risoto de camarão em mesa estrategicamente sombreada.
Embarquei no ônibus rumo a Marudá que cortou relevo
aplainado com criações de gado, pomares, pastos vazios, trechos curtos de
floresta secundária. Mais à frente aumentaram as casas de taipa ou madeira,
espaçadas em meio à vegetação arbustiva e abundante. Desembarquei bem na beira
da água, junto ao ancoradouro. Pulei em barco pequeno rumo à travessia por mar
raso e agitado. Fui na popa me segurando em pé nas madeiras transversais. Desci
na praia da vila de Algodoal e segui até pousada.
A vila de Algodoal estava praticamente vazia de turistas.
À noite nada se ouvia nas ruas de areia fofa, pelas quais não circulavam
veículos motorizados, apenas pedestres, bicicletas e carroças a cavalo. O vento
balançava as folhas dos cajueiros e mangueiras. Jantei saboroso peixe frito,
acompanhado de copos de suco natural dos cajus colhidos no quintal.
As praias secavam demais na maré baixa, aumentando a faixa
de areia plana e afastando bastante a linha da água. Cruzei o canal a pé, o que
seria impossível na maré alta, e segui à famosa praia da Princesa, plana, com
ondas fracas, dunas altas na parte de trás. Não faltavam bares construídos em
madeira e cobertos de palha, alguns de formatos estranhos, todos fechados. A
descaracterização se escancarava pela moradia construída ilegalmente sobre a
duna que avançava sobre a praia. De madeira e com objetos de gosto duvidoso nas
proximidades, a construção já fora notificada e contava com prazo de
desocupação para futura demolição.
Caminhei com um paulista pelas dunas até a lagoa da
Princesa. De água refrescante e escura, com aguapé nas bordas, cercada de dunas
e vegetação arbustiva, a lagoa tinha tudo para ser o paraíso, mas os três bares
nas margens, mesmo fechados, destoavam e agrediam a natureza. O retorno
massacrou sob o calor do meio-dia. A maré baixara ainda mais, a água do mar
fugira para bem longe da praia. Uma moqueca de pescada amarela nos reconfortou.
À tarde dois barqueiros nos levaram de canoa a remo pelos
braços do manguezal. A tranquilidade do passeio, sem motor, sem pressa, permitiu
apreciar a vegetação, peixes, caranguejos, aves, durante horas. O canal cruzava
a ilha de ponta a ponta. Os barqueiros animavam com informações importantes e
conversas descontraídas.
Ao retornar à pousada ao anoitecer, novos hóspedes se
instalaram nos quartos vizinhos. O som desagradável dos televisores quebrou o
silêncio relaxante de Algodoal. As ruas de areia da vila, no entanto,
permaneciam vazias no início da noite. Os cajueiros do quintal da pousada
renderam muitos frutos, enchendo vários baldes. Chupei vários deles, ente
amarelos e vermelhos, doces e suculentos.
Parti eu e o paulista pela trilha à vila de Fortalezinha.
Cruzamos com moradores a pé, em bicicletas, carroças puxadas a cavalo.
Invariavelmente de taipa, casas isoladas apareciam espaçadas. Os altos da vila
de Fortalezinha propiciavam visão privilegiada das praias e manguezais. Quando
a maré vazava e se afastava da costa, expunha lagoas e canais estreitos de
água. Entramos em bar muito simples para matar a sede, descansar na sombra e
receber o vento refrescante soprado do mar. Conversamos com moradores,
contemplamos a paisagem, traçamos uma dúzia de bananas. Percorremos o caminho
de volta em ritmo mais leve, com paradas providenciais sob as sombras. A
merecida refeição na vila de Algodoal nos recuperou na base de robalo assado
com molho de camarão, purê e arroz.
Pulei da cama cedo e caminhei até o ancoradouro. Logo
um barqueiro se adiantou e, mesmo com o barco vazio, me levou pelo preço
normal. Embarquei em Marudá no micro-ônibus e antes do almoço dava entrada no
hotel de sempre em Belém.
continua...
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