segunda-feira, 15 de novembro de 2010

do Amazonas a Sergipe (parte 3/7)

...continuação
Os tripulantes comunicaram que ninguém mais poderia permanecer com redes e bagagens no piso superior. Já era tempo de corrigir tamanho absurdo que eu nunca presenciara em dezenas de viagens de barco pelos rios da Amazônia. Ficou no discurso. Não tiveram autoridade ou vontade de limpar a área. O café da manhã foi adiado sob a alegação de falta de pão. O navio Clívia piorava a cada dia da viagem. Era disparado o pior barco em que eu viajara, com a pior tripulação, a pior comida, os piores e raros banheiros, a pior frequência, a pior segurança. Após o almoço novamente ruim, corri ao camarote e comi gulosos pedaços do queijo de coalho comprado em Santarém. O navio partiu somente no começo da tarde e a fechadura da porta do meu camarote estava novamente mexida.
Em razão do roubo no camarote ao lado, da apreensão das drogas, da frequência barra pesada, o clima geral do barco esfriou e a maioria se fechou. A largura do rio, o distanciamento das margens, a familiaridade com a paisagem repetida nos anos anteriores, me tiravam a curiosidade e a empolgação.
À noite o navio atracou no moderno e organizado porto de Monte Alegre. A área portuária fora toda remodelada em estação hidroviária, com lanchonetes e espaços livres ao lado. A lua cheia, avermelhada, enorme, linda, surgia lentamente, acima das águas do rio.
Um sujeito de calça e camisa social distribuía folhetos coloridos aos passageiros mais simples, tentando vender passagens em transportes rodoviários clandestinos a partir de Belém, rumo ao interior do Pará e principalmente ao interior do Maranhão, destino de grande parte dos passageiros. Dois baianos, trabalhadores braçais, recrutados para a região de Juruti como funcionários temporários de transnacional que prospectava bauxita, não receberam o valor previamente combinado. Nem as horas extras ou adicionais garantidos por lei. Inconformados, tentaram puxar greve e foram sumariamente demitidos.
Parada no meio do dia na pequena e simpática Gurupá. À tarde o navio entrou no estreito de Breves. Dezenas de canoas a remo partiram dos casebres na beira do rio. Vinham em direção ao navio pedindo esmolas, comidas, roupas. Alguns passageiros lançavam sacos plásticos recheados. Canoas atracavam no navio permitindo meninos ou meninas subirem a fim de vender banana, creme de açaí, camarão. As casinhas de onde vinham se erguiam isoladas ou em pequenas comunidades dentro da mata rica em açaizeiros. O navio passou a navegar em canais estreitos, por entre ilhotas ao sul da ilha do Marajó. Das margens desfilavam a floresta, casebres de madeira cobertos de palha com canoas de madeira à frente, minúsculas comunidades, buritizais, açaizais, ramagens, cipós, tudo imbricado, de verde intenso. A proximidade da floresta permitia quase tocá-la, cheirá-la, ouvi-la.
O navio parou no início da noite em Breves, cidade vistosa, arrumada, exibindo praças e fontes luminosas.
Amanheceu em baía imensa, de onde mal se via a terra. Depois, outros canais com mais crianças pedintes vindas em barcos a remo a partir de casinhas erguidas sob a sombra dos açaizeiros.
Mesmo com a expectativa da chegada, não arrefecia a indignação com o péssimo navio Clívia, que merecia punições da capitania dos portos. E noventa horas após a partida de Manaus, o navio atracava nas docas do porto de Belém.
Voei à estação das Docas onde a divina comida paraense me esperava no sistema de bufê. E me empanturrei de peixe no tucupi, arroz, jambu, farinha grossa. Depois veio a preguiça e o sono reparador.
Circulei a esmo por ruas arborizadas e deliciosamente sombreadas pelas mangueiras centenárias dos bairros de Campina, Nazaré, Batista Campos, São Braz. Quanta diferença das ruas, avenidas, praças de Belém, tomadas por árvores frondosas, garantindo sempre prazeres visuais e sombras refrescantes, em contraste com a feia, cinzenta e tórrida Manaus, sem árvores, praças ou sombras. O Amazonas ganhava disparado do Pará, porém Belém humilhava Manaus.
O vento constante na Estação das Docas mantinha temperaturas suportáveis nas mesas de fora, mesmo sob o calor intenso de Belém. Era noite e na mesa em frente a minha sentaram-se três estrangeiros falando em francês. Não demorou muito para duas putas, jovens demais, vestidas a caráter, se juntarem aos gringos. As mesas ao redor, ocupadas por famílias, casais, grupos de amigos, lançavam olhares de espanto e indignação à mesa do turismo sexual.
Caminhei pela manhã até o Mangal das Garças. Cercado, exageradamente vigiado por dezenas de seguranças, ainda pelado de verde. O local agradava pela intenção de mais uma área de lazer verde na margem da baía de Guajará. A passarela de madeira que se projetava nas águas tornou-se ideal para relaxar sob a sombra e vento refrescantes.
Comprei um litro de creme de açaí fresco, açúcar, farinha de goma de tapioca. Misturei e engoli toda aquela delicia em menos de cinco minutos. Entre leituras diversas, eu permaneci no quarto do hotel e não saí mais.
À noite, ao descer à recepção do hotel, cruzei na porta do elevador com um sujeito baixo, trinta e poucos anos, pele clara, olhos azuis, jeito de sulista. Estávamos no terceiro andar e ele apertou o botão para o elevador subir. Reclamava que o elevador nunca parava no andar. Insistiu que queria descer. Apertou o botão para subir porque o elevador estava no térreo e ele no terceiro andar. E o indivíduo perguntou ao recepcionista onde ficava a unidade daquela rede transnacional de sanduíches. O funcionário provavelmente não compreendia como, diante de tantas opções da culinária paraense, uma das mais variadas e saborosas do mundo, alguém pretendesse, de livre escolha, se envenenar naquele lixo estadunidense. O pobre coitado queria jantar sanduíche de carne de minhoca, batatas transgênicas, refrigerante feito à base de cocaína, e, de sobremesa, sorvete de gordura, açúcar e corante.  
Reservei a manhã para circular pela cidade velha, o Mercado Municipal, todo em ferro, com carnes penduradas à meia luz, o mercado Ver-o-Peso, limpo e organizado, os quiosques de verduras, frutas, polpas de frutas, comidas, garrafadas e demais itens medicinais, artesanatos, peixes e mais peixes. Mais adiante, o forte do Presépio, a casa das Onze Janelas, a catedral de Belém em reforma, o museu de Arte Sacra. E segui por becos cada vez mais estreitos, ao lado de armazéns antigos, sujos, ruas vazias, ruas movimentadas, dezenas de pontos de venda de creme de açaí, mais becos, mais armazéns, cais de barcos de carga, até atingir, desta vez por outro caminho, o Mangal das Garças.
Em Belém não faltavam bairros, logradouros e prédios públicos com nomes de políticos profissionais, ainda vivos, em plena atividade política. Os mais cotados eram Jader Barbalho e Almir Gabriel, este candidato a governador do estado pela terceira vez. E nem se incomodava por ter estado à frente, como governador, do massacre de 19 trabalhadores rurais sem terra, assassinados pela polícia militar sob o seu comando em Eldorado dos Carajás em 1996. A impunidade dos crimes da classe dominante e o silêncio criminoso da imprensa burguesa garantiam-lhe vida tranquila e sem remorsos.
Passeio sem pressa em Icoaraci, também na margem da baía de Guajará. Pequena e simpática, a vila atraía visitantes de finais de semana a fim de aproveitar a despretensiosa praia, com dezenas de bares, quiosques e restaurantes ao longo da orla, urbanizada com calçadão, ciclovia, bancos, árvores frondosas. O vento quase constante ajudava a refrescar a quentura. A cidade também ganhava fama pela produção de cerâmica marajoara e tapajônica. Saboreei risoto de camarão em mesa estrategicamente sombreada.
Embarquei no ônibus rumo a Marudá que cortou relevo aplainado com criações de gado, pomares, pastos vazios, trechos curtos de floresta secundária. Mais à frente aumentaram as casas de taipa ou madeira, espaçadas em meio à vegetação arbustiva e abundante. Desembarquei bem na beira da água, junto ao ancoradouro. Pulei em barco pequeno rumo à travessia por mar raso e agitado. Fui na popa me segurando em pé nas madeiras transversais. Desci na praia da vila de Algodoal e segui até pousada.
A vila de Algodoal estava praticamente vazia de turistas. À noite nada se ouvia nas ruas de areia fofa, pelas quais não circulavam veículos motorizados, apenas pedestres, bicicletas e carroças a cavalo. O vento balançava as folhas dos cajueiros e mangueiras. Jantei saboroso peixe frito, acompanhado de copos de suco natural dos cajus colhidos no quintal. 
As praias secavam demais na maré baixa, aumentando a faixa de areia plana e afastando bastante a linha da água. Cruzei o canal a pé, o que seria impossível na maré alta, e segui à famosa praia da Princesa, plana, com ondas fracas, dunas altas na parte de trás. Não faltavam bares construídos em madeira e cobertos de palha, alguns de formatos estranhos, todos fechados. A descaracterização se escancarava pela moradia construída ilegalmente sobre a duna que avançava sobre a praia. De madeira e com objetos de gosto duvidoso nas proximidades, a construção já fora notificada e contava com prazo de desocupação para futura demolição.
Caminhei com um paulista pelas dunas até a lagoa da Princesa. De água refrescante e escura, com aguapé nas bordas, cercada de dunas e vegetação arbustiva, a lagoa tinha tudo para ser o paraíso, mas os três bares nas margens, mesmo fechados, destoavam e agrediam a natureza. O retorno massacrou sob o calor do meio-dia. A maré baixara ainda mais, a água do mar fugira para bem longe da praia. Uma moqueca de pescada amarela nos reconfortou.
À tarde dois barqueiros nos levaram de canoa a remo pelos braços do manguezal. A tranquilidade do passeio, sem motor, sem pressa, permitiu apreciar a vegetação, peixes, caranguejos, aves, durante horas. O canal cruzava a ilha de ponta a ponta. Os barqueiros animavam com informações importantes e conversas descontraídas.
Ao retornar à pousada ao anoitecer, novos hóspedes se instalaram nos quartos vizinhos. O som desagradável dos televisores quebrou o silêncio relaxante de Algodoal. As ruas de areia da vila, no entanto, permaneciam vazias no início da noite. Os cajueiros do quintal da pousada renderam muitos frutos, enchendo vários baldes. Chupei vários deles, ente amarelos e vermelhos, doces e suculentos.
Parti eu e o paulista pela trilha à vila de Fortalezinha. Cruzamos com moradores a pé, em bicicletas, carroças puxadas a cavalo. Invariavelmente de taipa, casas isoladas apareciam espaçadas. Os altos da vila de Fortalezinha propiciavam visão privilegiada das praias e manguezais. Quando a maré vazava e se afastava da costa, expunha lagoas e canais estreitos de água. Entramos em bar muito simples para matar a sede, descansar na sombra e receber o vento refrescante soprado do mar. Conversamos com moradores, contemplamos a paisagem, traçamos uma dúzia de bananas. Percorremos o caminho de volta em ritmo mais leve, com paradas providenciais sob as sombras. A merecida refeição na vila de Algodoal nos recuperou na base de robalo assado com molho de camarão, purê e arroz.
Pulei da cama cedo e caminhei até o ancoradouro. Logo um barqueiro se adiantou e, mesmo com o barco vazio, me levou pelo preço normal. Embarquei em Marudá no micro-ônibus e antes do almoço dava entrada no hotel de sempre em Belém.
continua...

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